O Estado de S. Paulo, 9 de julho de 1902
A catástrofe da Montagne Pelée vai determinar talvez uma revisão completa da geologia dinâmica.
Camillo Flammarion descreveu-a de modo admirável.
Não o faria melhor o mais ilustre desses sábios massudos, de estilo seco e gramática suspeita, cujo fim essencial parece ser o de tornar rebarbativa a ciência, se nos apresentasse o fenômeno enleado nas tortuosidades inúmeras das linhas sismais enredadas, ou longamente extravasasse numa erupção de fórmulas químicas, no caracterizar as reações operadas na retorta estupenda da cratera…
O fato foi exposto como o devia ser: emocionante, dramático, e tendo, superior às induções da ciência, mas ligando-as melhor e tornando-as mais incisivas, a síntese de uma impressão verdadeiramente artística.O notável pensador, porém — um poeta, que a exemplo de Humboldt fez da ciência a sua musa predileta — não foi além de uma exposição belíssima.
Firmemente esteado na hipótese clássica do calor central surgindo dessa pirosfera combusta sobre que se estira, quebradiça, a película dos continentes, não viu no quadro outra coisa além do preconcebido pela rotina acadêmica: mais um extravasamento da massa líquida candente encarcerada; mais uma válvula de segurança em boa hora aberta sacrificando a Martinica, mas salvando o Planeta; mais um vulcão revivente, desmedida chaminé golfando nuvens de vapores, de cinzas, de pedras em esquírolas ou em blocos e de gases, riçados pelas linhas fulgurantes das recomposições elétricas.
Não acrescentou uma linha às teorias geológicas. Deixou-as como estavam — tendo ainda, fortalecendo-lhe a atitude, dois eminentes representantes da ciência oficial, conservadora e rígida: Lapparent e John Milne.
O primeiro agitou a antiga explicação plutônica da massa ígnea desbordando por uma frincha, numa fratura de chofre escancelada na linha de menor resistência que a profundura do Atlântico origina nas Antilhas; o segundo repisou a velha teoria química das erupções: a infiltração das águas do mar levadas de improviso ao contato de uma massa superaquecida de 1500 a 1800° e distendendo-se, vaporizada, numa tensão formidável, fazendo explodir a cratera e atirando pelos ares um pedaço da montanha…
Deste modo o fenômeno a que se prende de modo tão íntimo à existência universal, fico como dantes era: sem uma teoria firme facultando a previsão mais pálida e sujeito ao acaso das fraturas repentinas, entregue ao caprichoso jogar das forças naturais, desencadeadas, sem leis…
Felizmente, alguém soube tirar daquele cataclismo elementos para que as indagações seguissem novo rumo.
Um naturalista sem renome, Arthur Taquin, teve uma visão mais ampla.
É, certo, um revolucionário que a Revue Scientifique imprudentemente acolheu entre colunas destinadas a afixar as mais sólidas criações do espírito contemporâneo.
Mas foi bom que o acolhesse.
A ciência deve muito aos sonhadores que a invadem sem licença e com escândalo dos sábios mesureiros e cautelosos que muitas vezes a monopolizam: a matemática não perdeu com as loucuras geniais de [Hoëné-]Wronsky; a química, foi, afinal, a pedra filosofal que se precipitou na retorta de alquimista de Roger Bacon; e o evolucionismo, a base mais firme da filosofia moderna, deve muito à imaginação romântica de Goethe.
E Arthur Taquin tem a envergadura de um desses rebeldes providenciais…
Pelo menos, diante dos sucessos cuja narrativa comoveu a todos os povos, conseguiu descobrir nova vereda a estes estudos.
E abriu-a com brilhantismo raro.
Para isto, porém — e nisto está fundamentalmente a sua rebeldia extraordinária — teve que se contrapor a velhíssimas noções, quase hereditárias pela fixidez com que há muito trabalham o espírito humano.
A hipótese do estado de ignição da massa central da Terra é uma delas.
Combate-a, com singular vantagem, apelando para fatos positivos, de observação direta, que ninguém hoje nega: a temperatura extremamente baixa dos mares profundos e a escala cada vez mais morosa com que sobe o termômetro à medida que as observações se avantajam procurando o centro da Terra.
Firmado, à luz de dados que temos por escusado citar, em tal ponto de vista, completa-o, mostrando o absurdo de se indicar como causa do vulcanismo, a pressão exercida sobre a massa interior, em fusão, pelo peso enorme da crosta terrestre.
E demonstra-o baseado num princípio de hidrostática, o de Pascal, ante o qual — estabelecida a uniformidade com que se transmite em todos os sentidos uma pressão qualquer exercida na superfície de um corpo líquido em equilíbrio — é forçoso concluir que as erupções devem irromper ao mesmo tempo em todos os lugares, por todas as crateras abertas e em comunicação com o reservatório interior.
É, realmente, uma conclusão sob todos os aspectos lógica. Mas com ela não se harmoniza a teoria antiga.
Não pode em tal caso explicar a localização das erupções.
Por outro lado, é impotente para remover outra objeção igualmente séria:
Sendo de 510 milhões de quilômetros quadrados a superfície da Terra — a pressão que determine o deslocamento geral diminutíssimo e imperceptível de um milímetro determinaria, segundo um cálculo bem simples, um extravasamento de 510 quilômetros cúbicos de massa em fusão — número espantoso que ultrapassa ao golfado por todos os vulcões da Terra desde os começos da história…
*
Estabelecidas estas conclusões, Arthur Taquin, lança os lineamentos da sua teoria, depois de resumir os caracteres principais observados na catástrofe da Martinica:
Os sismólogos devem ter sido impressionados, há muito, com a violência dos fenômenos elétricos durante as erupções vulcânicas. Todas as narrativas mencionam a violência das tempestades e os relâmpagos enormes que irrompem das crateras.
Por outro lado, sabe-se que as auroras boreais e austrais, as tempestades e as erupções ocasionam perturbações mais ou menos fortes, e, a grandes distâncias, desvios das agulhas imantadas.
Admite-se sem contestação que as auroras e as tempestades são originadas pela eletricidade terrestre. Por que os paroxismos vulcânicos, causas de idênticos efeitos, se excluiriam de tal origem?
Ninguém dirá que são eles mesmos a causa das tempestades e violentas descargas elétricas que os acompanham de ordinário, pois que numa erupção pouco importante, não acompanhada de tempestades, causa do mesmo modo a perturbação das agulhas.
Sabe-se que o nosso globo é percorrido por verdadeiras correntes elétricas; conhecem-se os pólos magnéticos e estabeleceram-se meridianos cuja direção e desvios são indicados pela bússola de declinação — sendo pela de inclinação conhecidas outras manifestações das mesmas correntes.
Sabe-se ainda que a direção e a intensidade da força elétrica terrestre variam nos diferentes pontos da Terra: que são locais, diurnas, anuais e seculares; e que reagem sobre aquela direção a natureza do solo, a configuração das costas, a altitude, a latitude e, principalmente, as montanhas seguidas de preferência pelas correntes, como se fossem enormes condutores.
Suponhamos agora que em virtude de causas ainda ignoradas, mas que são de origem extraterrestre (dada a variação diurna da declinação traindo a influência do sol) a intensidade elétrica aumente em proporções consideráveis em certa região da Terra.
Esta corrente elétrica de alta tensão, percorrendo um condutor, uma cadeia de montanhas, por ex.: produzirá os mesmos efeitos que se revelam nas aplicações da eletricidade, desde que depare com uma resistência qualquer à sua passagem: o fluido se transforma em calor e em luz, e a corrente funde o condutor em determinado lugar.
Sob os influxos da corrente, a água subterrânea decompõe-se em seus elementos. Ora, a eletrólise da água (H2O) fornece dois volumes de hidrogênio para um de oxigênio, isto é, a composição de um gás detonante que explode violentamente pelo calor ou pela faixa elétrica, e recompõe a água.
Por isto, a despeito do calor, vemos sair dos vulcões torrentes de água e lama, formando-se mesmo verdadeiros lagos no cimo dos vulcões, como acaba de suceder, agora, na Montagne Pelée.
Progredindo a intensidade elétrica, aumenta o calor; parte da água se reduz a vapor; decompõem-se os elementos geológicos; formam-se a uma temperatura elevadíssima numerosos gases, cuja tensão se exagera; procurando escapar, estes operam sublevações e irrompem arrebatando todas as matérias pulverulentas, resultantes da dissociação dos elementos terrestres. As rochas e metais entram para logo em fusão e formam a lava que se escoa, viscosa, graças à dilatação causada pelo calor.
Quando se termina o período da formação de gases, pode-se considerar passado o perigo: mas, enquanto existe a água, renovam-se os ruídos subterrâneos e as explosões.
…Finalmente, após as últimas convulsões pouco importantes, determinadas por súbito recrudescer da intensidade elétrica, o vulcão se apazigua, torna-se dormente, como o Vesúvio, e pode-se dizer que ele não inspira mais temores.
Ora, a causa de todos esses fenômenos elétricos, observados no curso das erupções, transparece, clara: todos os [?]raidos precursores nada mais são que verdadeira tempestade subterrânea acompanhada de gás detonante.
Compreende-se, assim, facilmente a morte instantânea dos habitantes de Saint-Pierre. Testemunhas afirmam que morriam como moscas; estavam simplesmente fulminados pelo contato daquelas nuvens de gás e vapor carregados de fluido elétrico.
A hipótese elétrica permite ainda compreender-se a distribuição dos vulcões segundo linhas que se abriram dos meridianos magnéticos e mesmo com eles coincidentes; e também o despertar simultâneo de muitos vulcões da mesma cadeia, com exclusão de todos os que demoram noutras paragens da Terra.
…Como as correntes elétricas percorrem o solo em diversas profundidades, ora à superfície, ora profundamente, o foco vulcânico, o gigantesco laboratório onde se realizam estas portentosas reações, pode se achar a várias profunduras, que tornarão variáveis todas as manifestações da erupção.
De qualquer modo, o foco vulcânico é sempre mais ou menos superficial, digamos em linguagem médica, um abscesso superficial, e tudo leva a admitir-se exequível o cavar-se, sob a maior parte das crateras, um túnel sem que se encontre traço algum das famosas chaminés de segurança, ou sem que se corra perigos pelos fenômenos que se desenrolam em cima.
Cedo ou tarde se afirmará tal fato no correr dos grandes trabalhos executados nas paragens vizinhas dos vulcões extintos.
Os vulcões são verdadeiros bornes elétricos dos quais o homem tirará um dia a energia de que necessita para mover todas as suas máquinas. [ * ]
*
Aí está, na transcrição de suas linhas essenciais, uma teoria extraordinariamente bela.
Não a comentaremos.
Recuamos também diante de uma interrogativa que nos impressiona profundamente:
Traçado vitorioso curso à nova explicação, eliminada a existência do calor central, a que proporções se reduzirá a mais alta — a suprema concepção de toda a ciência humana — a hipótese de Laplace?
[ * ] Citado e traduzido por Euclides da Cunha (com modificações) de: TAQUIN, Arthur. Physique du globe: La théorie des volcans. In: Revue scientifique (Revue Rose). Paris, n. 24, 4ª série, t. XVII, p. 741-2, 14 jun. 1902. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k215136m/f744. Acesso em: mar. 2021. N. do E.