O valor de um símbolo

O Estado de S. Paulo, 23 de dezembro de 1907

Relato, como exemplo, este incidente expressivo:

Há dois anos, num entardecer de julho, eu chegava, com os restos de uma comissão exploradora, à foz do Cavaljani, último esgalho do Purus, distante 3.200 quilômetros da confluência deste último no Amazonas; e tão perdido naquelas solidões empantanadas que nenhuma carta o revelava.

Éramos nove apenas: eu, um auxiliar dedicadíssimo, o Dr. Arnaldo da Cunha, um sargento, um soldado e cinco representantes de todas as cores reunidos, ao acaso em Manaus.

E ali chegáramos absolutamente sucumbidos. A nossa comissão dispersara-se, coagida pelas circunstâncias: naufragáramos em caminho; e os salvados da catástrofe mal bastariam àquele reduzido grupo de temerários. De sorte que ao atingirmos aquela estância remota já nos íamos, há dias, num terrível quarto de ração, de restos de carne-seca e restos de farinha que eram o nosso desespero e a nossa única salvação, sem nenhum outro gênero atenuando-nos a dieta inaturável.

Para maior desdita os empecilhos à marcha cresciam com o avançamento; maiores à medida que diminuíam os recursos. O rio, cada vez mais raso, quase estagnado nos estirões areientes, ou acachoando em corredeiras intermináveis, requeria trabalhos crescentes e verdadeiros sacrifícios.

Já não se navegava: as duas pesadas canoas de itaúba iam num arrastamento a pulso, como se fossem por terra; e os remos, ou os varejões transformavam-se em alavancas, numerosíssimas vezes, para a travessia dos trechos mais difíceis. Ao descer das noites, os homens, que labutavam todo o dia, metidos n’água, sem um trago de aguardente, ou de café, que lhes mitigasse aquele regímen bruto, acampavam soturnamente. Mal se armavam as barracas. Na antemanhã seguinte, cambaleantes e trôpegos — porque as areias do rio navalhando-lhes a epiderme punham-lhes os pés em chagas — retravavam, desesperadamente, a luta da subida do rio que não se acabava mais, tão extenso, tão monótono, tão sempre mesmo, na invariabilidade de suas margens, que tínhamos a ilusão de nos andarmos numa viagem circular; abarracávamos; descampávamos; e ao fim de dez horas de castigo parecíamos voltar à mesma praia, de onde partíramos, numa penitência interminável e rude…

Contrastando com esta desventura, a comissão peruana, que acompanhávamos, estava íntegra, bem abastecida, robusta. Não sofrera o transe de um naufrágio, eram vinte e três homens válidos, dirigidos por um chefe de excepcional valor.

Assim todas as noites, naquelas praias longínquas, havia este contraste: de um lado, um abarracamento minúsculo e mudo, todo afogado na treva; de outro, afastado apenas cinqüenta metros, um acampamento iluminado e ruidoso, onde ressoavam os cantos dos desempenados cholos loretanos.

A separação entre os dois era completa. As relações quase nulas: a altaneira castelhana, herdada pelos nossos galhardos vizinhos, surpreendia-se ante uma outra, mais heroica, do exíguo acampamento miserando, altivamente retraído na sua penúria e tenebroso em ultimar a sua empresa, como a efetuou, sem dever o mínimo, ou mais justificável auxílio, ao estrangeiro que se lhe associara.

Mas ao chegar naquela tarde à foz do Cavaljani, considerei a empresa perdida. Palavras soltas, de irreprimível desânimo, e até apóstrofes mal contidas, de desesperados, fizeram-me compreender que ao outro dia só haveria um movimento, o da volta vertiginosa, rolando pelos estirões e cachoeiras que tanto nos custaram vencer, acabando-se os nossos esforços numa fuga.

Os meus bravos companheiros rendiam-se aos reveses. Atravessei, em claro, a noite.

Na manhã seguinte procurei-os na tentativa impossível de os convencer de mais um sacrifício.

Acocoravam-se à roda de uma fogueira meio extinta; e receberam-me sem se levantarem, com a imunidade de seu próprio infortúnio.

Dois tiritavam de febre.

Falei-lhes. A honra, o dever, a pátria e outras magníficas palavras ressoaram longamente, monotonamente.

Inúteis. Permaneceram impassíveis.

Quedei-me, inerte, em uma tristeza exasperada.

E como a aumentá-la, notei, dali mesmo, voltando-me para a direita, que os peruanos se apresentavam à partida.

Desarmavam-se as barracas; reconduziam-se para as ubás ligeiras os fardos retirados na véspera. Em pouco, os remos e as tanganas compridas, alteados pelos remeiros, fisgavam vivamente os ares…

E atravessando pelos grupos agitados, um sargento — passo grave e solene, como se estivesse em uma praça pública, à frente de uma formatura — cortou perpendicularmente a praia, em rumo à canoa do chefe, tendo ao braço direito, perfilada, a bandeira peruana, que deveria içar-se à popa da embarcação.

De fato, em chegando, hasteou-a. Passava um sudoeste rijo. O belo pavilhão vermelho e branco desenrolou-se logo, todo estirado, rufando…

E acudiu-me a ideia de apontar aquele contraste aos companheiros abatidos. Mas ao voltar-me não os reconheci. Todos de pé. A simples imagem do estandarte estrangeiro, erguido triunfal, como a desafiá-los, galvanizara-os. Num lance, sem uma ordem, precipitaram-se os aprestos da partida. Em segundo, a nossa bandeira, que jazia, enrolada, em terra, aprumou-se por seu turno em uma das canoas, patenteando-nos aos olhos.

As promessas divinas da esperança!

E partimos, retravando, desesperadamente, o duelo formidável com o deserto…

Como citar
CUNHA, Euclides da. O valor de um símbolo. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Crônicas. São Paulo, 2021. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/cronicas/o-valor-de-um-simbolo/. Acesso em: [data]. Publicado originalmente em: O Estado de S. Paulo, 23 dez. 1907. Reprod. Oblata do Instituto Geográfico da Bahia, Bahia, 19 nov. 1915, em homenagem a Euclides da Cunha e comemoração do Dia da Bandeira.