Democracia, Rio de Janeiro, 3 de março de 1890
Os nossos ilustres colegas do Correio do Povo dizem hoje que “consta que o sr. ministro da Fazenda já redigiu e apresentou à assinatura do chefe de Governo Provisório o decreto concedendo 100:000$ a d. Pedro de Alcântara, como adiantamento do espólio de seus bens, assim como mais de 30:000$ mensais pelo mesmo princípio”.
Custa a crer que semelhante medida seja tomada pelo Governo da República, por esse mesmo Governo que, depois de deportar, como lhe cumpria, o velho rei e sua família, baniu-os do território nacional, por haver o ex-monarca rejeitado a grande soma que lhe era oferecida.
Por que razão, com que fundamento, apoiado em que direito se concede hoje a um homem deportado e banido do território da República a enorme soma de cem contos de réis e de trinta contos mensais?
Por conta dos bens que aqui deixou?
Mas se o sr. Pedro de Alcântara é possuidor de bens, faça o que fazemos nós outros, os particulares que, diretamente vendemos ou hipotecamos o que possuímos, para pagar o que devemos.
Não deixou o ex-imperador os seus procuradores legalmente constituídos?
Não sabe o sr. barão, visconde ou conde de Nogueira da Gama quais os meios de que lançar mão para fazer dinheiro dos bens do seu ex-senhor?
Pediu o sr. d. Pedro de Alcântara ao seu bastante procurador que se entendesse com o Governo Provisório da República para que lhe adiantasse, por conta dos bens aqui deixados, a quantia de cem contos de réis, dando em hipoteca valor que salvasse a transação?
Duvidamos.
E demais: o Estado pode imiscuir-se nessas questões de adiantar dinheiro a um homem, a um indivíduo — porque o sr. d. Pedro de Alcântara — é hoje um homem particular, sem maior direito ao respeito humano do que quanto o que provém da sua ilustração, da sua velhice e dos seus merecimentos individuais.
Os cem contos irão; irão os trinta contos mensais.
Mas qual será o prazo durante o qual o dinheiro da República dos Estados Unidos do Brasil continuará a subvencionar a monarquia que eles próprios abateram, deportaram, e baniram, em hora feliz para todos nós?
Pode saber o Governo Provisório quantos meses terá de vida o ancião que na Europa não está decerto a morrer de sentimentalismo pela direção que vão tomando as coisas públicas de nossa terra?
É preciso que tenhamos orientação; que reflitamos sobre esses atos em pleno desacordo com o que se estatuiu nos dias subsequentes a quinze de Novembro.
Alferes aluno,
Euclides da Cunha
Democracia, Rio de Janeiro, 20 de março de 1890
Nós não pertencemos ao grupo dos que, num excesso de zelo, ideando problemáticos sebastianistas, revivem a toda hora uma questão vencida, martelando despiedadamente sobre o velho assunto da renovação monárquica.
Iniciada a regeneração da Pátria, entregue afinal a seus próprios recursos, o futuro se nos antolha por demais trabalhoso, para que não se justifique o malbaratear sequer a niilidade de um minuto na consideração de assunto tão insignificante.
No momento atual sobretudo — em que a cisão dos partidos se deve aniilar ante a necessidade da máxima harmonia de esforços pela causa comum, toda a preocupação dos que lutam deve ser esta: trabalhar para que a República, amanhã — seja, não uma ficção, mas o complemento moral da Pátria.
Por isto mesmo que a feição racional da democracia está na investidura direta dos governantes pela sociedade, deve ser esta a única a receber a ação contínua e poderosa das ideias para que se eleve, se nobilite e possa discernir os que melhor direção estabeleçam à resultante de seus esforços.
O nosso objetivo é pois simples: sem tentarmos a demonstração axiomática quase da supremacia do nosso ideal político, conscientes dos altos destinos que aponta à atividade humana, auxiliar aos que incumbiram-se de até ele elevar inteira um[a] nacionalidade.
Múltiplas, portanto, são as questões subordinadas aos que assim se definem e não é para estranhar-se que apesar de não idearmos fictícias conspirações e de todo deslembrados mesmo do extinto regímen, concentremo-nos um instante ante o boato, que ora circula, de volta do ex-imperador.
Seria por certo um belíssimo exemplo, este; as velhas nacionalidades europeias, que atualmente desonram a história humana, pelo tristíssimo espetáculo de civilizações firmadas no aço das espadas, quedar-se iam pávidas ante este supremo impulso de perdão e amor e o século XIX encerrar-se-ia nobilitando a história, pelo ato singular de um povo, amparando a amargurada velhice do monarca decaído com as mesmas forças que lhe desmantelaram o trono!…
A deposta família imperial, purificando-se nos prélios incruentos do trabalho e erguendo-se a rude honestidade do povo, seria a mais brilhante conquista, a dádiva mais elevada de uma nação à Humanidade.
É, porém, isto possível?… Deve ser permitida a volta do ex-imperante?…
Respondamos francamente — não.
Atendêssemos à pureza das nossas ideias e à atitude moral, que pelo menos tentamos possuir, a qual obriga-nos a curvarmo-nos ante as amarguras de um velho, em cujos cabelos brancos divisamos as cinzas dos sonhos e ilusões extintas; — e diríamos sinceramente — sim.
Porque para nós, os republicanos por índole e por educação — este homem, que ora alimenta a curiosidade das capitais da Europa, começou a possuir uma auréola, no dia em que a perdeu para os seus adeptos.
Entretanto atendendo às condições delicadíssimas do momento e ao meio em que agimos é preciso a todo o transe, reagir contra o justíssimo desejo, agora manifestado, de extinguir esta imensa e dolorosa saudade da pátria, que enluta-lhe as últimas horas da vida.
Digamos a verdade — a opinião nacional ainda não se pode dizer a opinião republicana; o estado atual traduz, da parte de uma minoria ousada, feita dos elementos civil e militar, uma conquista sobre o resto do país; conquista admirável e heroica mas que ainda não se pode dizer — vitória. Esta vitória virá forçosamente, mas após uma reação brilhantíssima e a transfusão completa de tudo que sentimos, de tudo que pensamos.
Até lá para que estimular-se o sentimentalismo de uma nacionalidade?… Para que criar-se ainda que insignificantes, manifestações estranhas ao desideratum comum?…
Além disto, a nossa sociedade heterogênea, sem aspirações definidas e sem um caráter que a qualifique, não permite estabelecer-se a mais leve previsão acerca das consequências que se poderiam originar.
As culpas — e não as rememoremos nunca — do imperador destronado têm a absolvição inviolável das grandes dores, que compreendemos e respeitamos; — é preciso, porém, que emudeça inteira a afetividade, pois que evidentemente — nós ainda não vencemos e são de todo de[…] precipitados elogios dos que começam a agitar turíbulos em torno da vaidade dos atuais diretores da opinião, entoando simultaneamente loas a uma elevação social que ainda está, sejamos francos — muito longe.
Alferes aluno,
Euclides da Cunha
CUNHA, Euclides da. O Ex-Imperador. EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Crônicas. São Paulo, 2021. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/cronicas/o-ex-imperador. Acesso em: [data]. Reprod. de CUNHA, Euclides da. Obra completa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1. pp. 721-2. Publicado originalmente em Democracia: órgão de orientação republicana, Rio de Janeiro, n. 1, 3 mar. 1890. p. 2 e ano 1, n. 16, 20 mar. 1890, p. 2.