O Argentaurum

O Estado de S. Paulo, 2 de julho de 1897

Uma revista de créditos firmados, La Nature, noticia-nos em seu último número uma descoberta notável e inesperada.

O dr. Emmens — membro da Sociedade de Química, do American Institute of Mining Engineers e da Sociedade Internacional dos Eletricistas —, autor de memórias valiosíssimas, um homem cuja reputação científica está acima de qualquer suspeição, acaba de descobrir o processo para a transformação da prata em ouro.

E não se trata de mais um sonho de alquimista revestido apenas da aparência da realidade e destinada a dissolver-se no rigor das análises; o argentaurum tem, favorável, um argumento prático e seguro: o governo norte-americano aceita-o como ouro natural.

A este fato alia-se uma consideração teórica brilhante: o dr. Emmens, que é um partidário franco da concepção do químico russo Mendeleev, admitindo que as propriedades dos corpos constituem uma função periódica dos pesos atômicos correspondentes, demonstra que o argentaurum vem justamente ocupar o espaço até então vazio entre a prata e o ouro na tabela de há muito organizada à luz daquela concepção.

É este novo corpo simples tendo as propriedades médias da prata e do ouro que, depois, suficientemente condensado, perde as daquela e adquire exclusivamente as do ouro, resistindo vitoriosamente a todas as provas.

No dia 16 de abril deste ano a Repartição de Ensaios de Nova York comprou ao “Argentaurum Syndicate” a primeira barra de ouro, prata transformada no laboratório do grande experimentador.

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Pondo de lado as consequências econômicas da descoberta, afigura-se-nos dificílimo prever as suas consequências filosóficas e a nova feição impressa às investigações da química.

Porque o que ressalta evidente dela é a revivescência vigorosa da teoria atraente da unidade da matéria, e o que realizou o digno sábio americano em seu laboratório de homem de ciência moderno, rodeado de todos os elementos fornecidos pela indústria, foi, em parte, a utopia dos infatigáveis alquimistas, tenazes experimentadores mal percebidos, hoje; na história — formas indistintas de duendes agitando-se ao reverberar os fornos cabalísticos, na imensa penumbra da Idade Média…

A transmutação dos metais…

Levado à Europa pelo árabes, cujo papel civilizador é tão notável como mediadores entre duas grandes fases sociais, ligando a fecunda agitação intelectual do Oriente e da Grécia à irrupção triunfante do pensamento humano no Ocidente, aquele problema, que tinha inegavelmente, na sua forma primitiva uma base racional, estabelecendo em princípio que as substâncias de idêntica composição podem diferir pelas propriedades físicas, desfigurou-se, velado pelas fantasias científicas da época — feitas de concepções místicas, num delírio extraordinário de interpretar os fenômenos pela consideração de influências sobrenaturais.

Os experimentadores austeros, tão bem definidos na figura de Geber, transformaram-se nos sopradores ridículos.

Tragicamente cômicos, velhos aos trinta anos, depauperados e exaustos, sob a obsessão persistente de uma idealização indefinida, desorientados num dédalo de imaginosas receitas — vivendo através de uma vertigem — aberraram dos antigos métodos e descambaram para a magia, lançando sobre os cadinhos rutilantes, sobre os metais fundidos como principal reagente, as fórmulas consagradas da espagírica.

Deprimiram-se, nulificaram-se.

Tudo quanto descobriram de útil, materiais mais tarde aproveitados na constituição positiva da química, foi feito acidentalmente, por acaso, fora do objetivo capital nunca realizado.

Alberto, o Grande, descobrindo o meio de purificar as ligas do ouro e as da prata; Roger Bacon tornando conhecidas as propriedades do salitre; Raimundo Lúlio, preparando os óleos essenciais; Basílio Valentim, obtendo o éter sulfúrico; Paracelso, levando à medicina o uso dos compostos inorgânicos; Van Helmont, descobrindo os gases; Brandt, isolando o fósforo e outros e tantos outros até Becher e Stahl, arrebatados pela mesma ideia fixa, foram colaboradores inconscientes da ciência que surgiu sob o influxo da bela organização cerebral de Lavoisier.

Todos passaram pela terra num investigar persistente; envoltos, porém, nos deslumbramentos de uma utopia maravilhosa, fitaram os fenômenos que se lhes desdobravam em frente com a vista perturbada dos sonâmbulos.

Pelo jogo espontâneo das forças moleculares, pela afinidade largamente estimulada nos corpos em contatos e fundidos, surgiram-lhes, nos cadinhos, novos compostos ou desdobravam-se outros em seus elementos irredutíveis, traduzindo leis invioláveis e invariáveis; não as perceberam nunca.

Comprimia-os o misticismo vago e nebuloso da época difundido nas idealizações científicas mais estranhas.

Era no tempo em que homens da estatura do ilustre Boerhaave quedavam-se, absortos, tentando resolver este problema bizarro: “As imagens dos objetos naturais refletidos nos espelhos côncavos terão uma alma?”

Ora todo esse mundo desabou ante o aparecimento revolucionário e triunfal dos enciclopedistas e com ele caíram os extravagantes filósofos herméticos que tão bem completam a feição lendária de uma idade sonhadora e romanesca.

A agitação social do século XVIII completou a evolução científica e ao surgir a nossa época, cujo traço mais acentuado está nesta subordinação nobilitadora e sistemática da inteligência às leis naturais, mal eram perceptíveis, através do exagero das lendas os desvairados discípulos de Hermes — formas indistintas de duendes agitando-se silenciosos, ao reverberar dos fornos cabalísticos, na imensa penumbra da Idade Média…

Entretanto a alquimia, na sua primeira fase, no século VIII, tinha como base o princípio de que as substâncias podem variar externamente, tendo a mesma composição íntima; todos os corpos formavam-se de um só elemento diversamente condensado.

E o que é notável é a confirmação pelas descobertas ulteriores da química daquele princípio essencial, base teórica da transmutação dos metais.

Os exemplos modernos de isometria constituem uma demonstração eloquente.

Por outro lado, do seio mesmo dos químicos deste século surgiram, desenvolvidas com brilhantismo, hipóteses visando francamente a unidade da matéria. Fora escusado reproduzir a luminosa exposição de Proust definindo o hidrogênio como a matéria primordial, o radical irredutível por excelência.

Agora, a descoberta inesperada do dr. Emmens vem simultaneamente revigorar a teoria do químico inglês e — o que é mais — justificar de um modo singular as tentativas dos velhos sonhadores.

Porque o argentaurum, tendo normalmente propriedades vizinhas das do ouro e da prata e, com um ligeiro grau de condensação, toda a aparência e todas as propriedades físicas daquele, é, sob este aspecto, o ouro alquímico, na significação rigorosa do termo.

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Confirmada esta notícia, não parece que a fecunda elaboração teórica dos discípulos de Geber cujo último representante foi Roger Bacon no século XIII, época em que o magno problema foi mascarado por estranhas fantasias, não parece que ela se liga de um modo admirável às investigações modernas e positivas, depois de um longo hiato, através de cinco séculos sombrios?

Há dessas ressurreições interessantes nas regiões luminosas da ciência.

As ideias como que precisam evolver com a humanidade, presas pela atração irresistível do futuro, crescendo com o pensamento humano, identificando-se o mais possível ao meio universal, de modo a perderem muitas vezes a paternidade de um só espírito, um nome perdido no passado, que muitas vezes só serve para demarcar-lhes o ponto de partida.

Pitágoras é um exemplo clássico. Combateu o erro geocêntrico e imaginou a dinâmica dos mundos expressa mais tarde na legislação de Newton.

E quantos séculos afastam o eminente geômetra de Galileu e Copérnico?

Existe, assim, entre as ideias e na mais elevada escala, a condição geral da concorrência vital; lutam como organismos e vencem segundo a energia própria e a adaptação às condições exteriores.

O cérebro humano reflete-as não raro com a passividade de uma câmara escura; não as impõe, não as pode impor, não as vivifica; elas erigem-se como organismos superiores adstritos às condições do meio e quando se alevantam vitoriosas não marcam a altitude de um espírito, definem uma fase da consciência humana.

Há no seio da sociedade como que um secreto instinto que só lhes permite o advento definitivo quando aquelas têm energia bastante para suportar-lhes as consequências.

E dada a veracidade da descoberta do dr. Emmens, afastando as consequências filosóficas do fato que não podemos avaliar e o desmesurado heroísmo aberto às indagações dos químicos, quem pode avaliar as consequências econômicas do descobrimento, que transformam cada laboratório em um Transvaal inexaurível?