Numa volta do passado

Kosmos, Rio de Janeiro, ano 5, nº 10, outubro de 1908

Talvez ainda assista um decaído sítio perto de Silveiras, o Capitão Antônio Pinto da Silveira, que se sobrenomeia como aquela vila paulista fundada pelos seus maiores. Vi-o e conversei-o em 1903 num dos lances desta minha engenharia andeira que acertara de varar naqueles lugares.

Cheguei à estância solitária ao cair da noite, exausto de fadiga, ao cabo de dez horas a fio de marcha aos boléus pelos borocotós de um desvairado atalho do mais antigo e esquecido caminho de rodagem do Brasil. E, certo, a não faltar ainda longo estirão de três léguas para ir-se até Areias, ou a não serem de todo impraticáveis à noite aquelas veredas que os tabocais cegavam, invadindo-as — eu teria prosseguido suplantando o cansaço, fugindo à espora fita do mal-assombrado pouso que se me oferecera. Na verdade, era preferível qualquer rancho aberto de tropeiros, varado das chuvas e dos ventos, àquela tapera desgostante. Como tantas outras, que se topam de longe em longe ao longo das trilhas multívias daquele trato de São Paulo, ela me aparecia como um espantalho de grandeza decaída: desgracioso casarão antigo, de paredes esborcinadas e pensas, sob telhado levadio de beirais saídos, bojando no recosto de um morro no breve claro de um carrascal bravio. À frente da porta principal, sobre um monte de seixos, um cruzeiro alto, sacudindo aos ventos o estropalho de um sudário em tiras. A uma banda à esquerda, uma tiguera pobre de mandiocal raquítico, onde fora vasto pomar aprazível. À outra, adivinhavam-se os restos de um jardim invadido das samambaias. Ao fundo, desmoronando, um terreiro de pedra, feito enorme muradal de lájeas disjungidas. Mais longe, por todos os lados, cobrindo a morraria até ao pino, os galhos caóticos e sem folhas de um vasto cafezal seco, de cem anos. Nada mais. Pelo menos nada mais vi relanceando o cenário que o crepúsculo entristecedoramente empastara…

Transpus estreito pontilhão sem guardas sobre um córrego entupido de tábuas, ao compasso martelante de um monjolo, que se não via, muito embaixo no grotão mascarado de inhames bravos e sororocas.

Desapeei no terreiro deserto. O camarada bradou o “ó de casa!” tradicional, batendo as palmas; e logo desmontando, amarrou a um moirão de cabiúna as nossas cavalgaduras abombadas.

A acolhida, como sempre acontece entre os nossos patrícios sertanejos, foi carinhosa e simples.

Mas ao penetrar o repartimento principal da vivenda, mal atentei no hospedeiro que me acolhera, rodeado de três ou quatro netos ou bisnetos.

Estropiara-me demasiado a sobrecarga muscular da travessia exaustiva, sob o rescaldo das soalheiras. Renuí, por isto, a tudo, a começar pelo oferecimento de um jantar “que se arranjaria em um instantinho”; e atalhando logo as costumeiras desculpas antecipadas, que aquelas gentes boas com tantos requisitos de gentileza sempre apresentam ao forasteiro que agasalham, expus para logo um empenho único, improrrogável, urgentíssimo: dormir. Mas que não se incomodassem: eu me recostaria por ali em qualquer banco com o travesseiro de lombilho retovado, e dormiria de botas e esporas — montado heroicamente nas fadigas — para acordar cedo e prosseguir, reavivando-me à rota escoteira e rápida para a frente. E assim dei as boas-noites ao nonagenário tranqüilo que me contemplava complacentemente, sorrindo.

Felizmente ele se não picara de tamanha incivilidade. Arcado, como se o dobrasse o peso da candeia de azeite suspensa a uma das mãos, foi até à porta; retribuiu-me a saudação; e foi dirigindo-se para o interior da casa.

A meio caminho, porém, estacou; e como em irreprimível desabafo ouvi-lhe, que resmoneava:

— Moços de hoje… já nascem velhos…

Depois, em tom mais alto, levemente irônico:

— Olhe, meu senhor, aqui onde me vê já vi muito graúdo, que anda hoje na memória do mundo. Sou mais velho do que a Independência… e digo-lhe que ficaria passado se depois de torar por essas bibocas brabas ficasse tão mofino e sem talento…

Disse; e as fadigas, o sono pesadíssimo que me chumbava os olhos, as irritações da viagem, foram-se-me, por verdadeiro encanto. Vi-me de golpe, de pé, ao lado do velho surpreendido e desorientado por não sei quantas perguntas ansiosíssimas que me acorriam desconexas e várias; e minutos depois achei-me, de improviso, ali, naquela beira do caminho desfrequentado, à margem da nossa história. E lá me fui numa viagem maior e mais indefinida, pelos tempos em fora, sem notar a tardeza das horas a escoarem-se vagarosamente, ao compasso das pancadas tristonhas no monjolo batendo, fora, ao longe, à surdina, na noite…

Fora uma invocação. Na estrada que passava cerca — naquelas mesmas trilhas quase impraticáveis, balizadas de santas cruzes agoireiras e onde disparam em pinchos desabalados as mulas sem cabeça da bronca mitologia sertaneja — começaram a derivar então, indistintos nos seus traços dúbios, a diluírem-se em formas vagas, a aparecerem para logo depois ralearem diluindo-se em neblinas, e a reaparecerem e a descomporem-se, entrelaçando-se, confundindo-se ou desatando-se em longas filas silenciosas, as voltas singularíssimas de uma cavalgata de redivivos. Imagens esfumando-se vagamente no escuro a recordarem as figuras destingidas de antiquíssimos quadros descoloridos, — sem contornos, sem gradações, sem relevos, imperfeitamente esbatidos na memória desbotada do narrador, ou embruscando-se no esquecimento completo, mal pude restaurá-las a todo poder da fantasia, atônito e comovido diante da antiga e maravilhosa realidade…

*

Desfilaram-se fugitivas e breves.

Foi numa noite qualquer de meados de setembro de 1822. O meu interlocutor era “dest’amaninho” — esclareceu-me espalmando a mão à pequena altura do assoalho — quando o sobressalteou e a toda a família havia muito recolhida, o inopinado estrupido de uma cavalaria estranha a tropear pelos caminhos e avançando num crescendo vertiginoso: a princípio surdo rumor distante; logo depois o estrépito acentuado de centenas de cascos sobre pedras; por fim o estrondo de um trovão repentino denunciando que o esquadrão fantástico rolava ruidosamente sobre o tabuleiro reboante da ponte. Sobreveio o silêncio; uma parada; um esbarro violentíssimo de dezenas de ginetes desensofridos. A patrulha misteriosa estancara de golpe no terreiro.

Calcule-se o assombro da obscura família sertaneja.

Mas o seu chefe, paulista de peito largo e coração firme, mediu-me galhardamente pela conjuntura: pulou do peito; correu às armas; furtou-se de arremesso aos braços da esposa e dos filhos pequeninos, que o enleavam retranzidos de espanto, aperrou o bacamarte, e arremeteu, resolutamente, com a porta da entrada mal garantida por uma tranca insegura. Predispusera-se num relance para o que desse e viesse.

Fora, no relativo silêncio que se formara, ouviam-se estalidos de loros e cabeças entrebatidos, resfôlegos e manotaços de cavalos irrequietos, palavras precípites, breves, entrecruzando-se, e risos — inexplicáveis risos em tão temerosa conjuntura! Por fim três aldravadas intimativas e rijas.

E o sitiante destemeroso não titubeou: depôs o candeeiro em terra; fez o “pelo-sinal”, correu as vistas pela fecharia prateada do trabuco; abeirou-se da porta; destrancou-a. Escancarou-a, toda, temerariamente… e quedou estuporado, com a arma inútil quase a escapar-se-lhe dos dedos trêmulos, tolhido de surpresa indescritível: estavam-lhe adiante vinte, ou cem, talvez mil cavaleiros garbosos e magníficos. Não havia contá-los. A luz escassa dos quatro bicos de candeia morrendo num raio de dez passos, parecia extinguir-se mais depressa, subdividida num espadanar de lampejos dourados, joeirando-se num círculo coruscante de jaezes de prata e nos alamares de um sem-número de fardas refulgentes. Ao fundo, aos lados, por toda a cercadura do terreiro, até à ponte, e pela ponte em fora, desbordando dela para a estrada, e estirando-se talvez pela estrada, enchendo-a, numa massa compacta e informe, onde se riscavam a súbitas repentinos brilhos de dragonas e talins metálicos — adivinhava-se uma legião ao parecer inumerável toda afogada na treva.

À frente, num redomão lavado de suor e freios brancos de espuma, destacava-se envolta nas dobras de amplo ponche de viagem, uma figura varonil, de moço. Inclinava-se-lhe à nuca o sombreiro de moles abas derrubadas, irradiando no fulgor dos olhos dominadores, muito negros e vivos. As largas botas russilhonas colavam-se firmes às espendas do selim, denunciando nos respingos de lama que as salpintavam desde o alto do cano às rosetas das esporas, o dilatado da viagem. À mão esquerda, preso de uma corrente de prata, um rebenque de couro cru.

Nada mais notou, ou departiu, a criança amedrontada, naquela figura estranha, cuja lembrança a acompanharia pela existência em fora. Ficou-lhe apenas aquele vulto de estátua mutilada, meio delida, entre o sonho e a realidade na noite.

Também não reteve um só palavra do rápido diálogo para logo entretido entre o estranho recém-vindo à testa de tão formidável escolta e o seu progenitor surpreso.

Apenas considerou que, ao se trocarem as primeiras palavras, este último — que ele até então vira sempre altivo e quase um rei naquela redondeza, imperando sobre a escravatura numerosa e os agregados submissos — que o seu pai tão altaneiro e bravo se desbarretou numa atitude a bem dizer humilde, que nunca lhe notara, e se acercou timidamente do garboso adventício fazendo menção de beijar-lhe a destra, o que este impediu, furtando-lha; ao mesmo passo que, inclinando-se agilmente nos arções colheu o sertanejo nos braços vigorosos, soerguendo-o por momentos num grande abraço gentilíssimo e amigo.

A cena foi instantânea. Logo depois com um gesto rápido, de despedida, o cavaleiro deu de rédeas, voltando-se, com uma palavra breve, de mando, para o séquito numeroso, que se abriu logo em extensa ala respeitosa; e correu a chilena no bojo do cavalo, transpondo em dois galões impetuosos a ponte, encalçado de pronto pelos condutícios.

Depois: uma imensa confusão de corpos obscurecidos sarjados dos reflexos vivos das espadas; o trovejar estrepitoso de centenares de cascos entaloados rufando no tabuleiro ressoante da ponte transposta num disparo; e o estrupido do esquadrão fantástico esfarelando os calhaus esparsos dos caminhos — cada vez menor, amortecendo, lento e lento em ressoar a mais e mais imperceptível e surdo, até desaparecer de todo ao longe, perdendo-se entre os rumores indefinidos da noite — desaparecendo ao longe, para sempre, o Imperador Pedro I e a sua comitiva romântica, na volta gloriosa do Ipiranga…

*

Fora as pancadas monótonas do monjolo soavam estristecedoramente; e figuraram-se-me as de um pêndulo invertido, que marcasse um recuo misterioso do tempo, batendo todos os segundos atrasados de um século desaparecido.

Como citar
CUNHA, Euclides da. Numa volta do passado. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Crônicas. São Paulo, 2021. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/cronicas/. Acesso em: [data]. Publicado originalmente em: Numa volta do passado. Revista Kosmos, Rio de Janeiro, ano 5, nº 10, out. 1908. Sem paginação. Reprod. de Obra completa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1. pp. 599-602.