Instituto Politécnico

[I]

O Estado de S. Paulo, 24 de maio de 1892

Sem nos filiarmos a escolas filosóficas — o que é um verdadeiro absurdo na mocidade, na quadra exuberante em que, para a formação imprescindível da consciência, nos voltamos indistintamente para todas as ideias, abrindo com igual interesse e igual curiosidade todos os livros, ouvindo com igual respeito todas as crenças e tributando igual veneração a todos os sábios — vamos definir o nosso modo de pensar acerca do projeto apresentado pelo sr. dr. Paula Souza ao congresso do Estado, assistindo-nos, a nós que estas linhas traçamos, para isso, mais do que o fato insignificantíssimo de um bacharelado em matemática e ciências físicas, o direito de crítica, dessa crítica ousada e intransigente, destinada a desaparecer no futuro — mas que é ainda um mal necessário, o defeito mais brilhante e indispensável das sociedades modernas.

Levamos a imparcialidade mesmo ao ponto de afastar do início do assunto, a questão fundamental que se refere à intrusão do Estado no desenvolvimento do ensino. Está hoje limpidamente demonstrado que este cresce na razão inversa da proteção daquele; e que os programas oficiais, estáveis, mudando-se com intervalos mais ou menos longos, por meio das reformas periódicas, imobilizam a instrução, no meio da movimentação sempre ascensional e crescente dos conhecimentos. Muito menos estabeleceremos em abono destas ideias, o paralelo entre as universidades francesas — sem autonomia, afogadas pelo protecionismo oficial, esterilizadas por uma uniformidade aniquiladora de métodos imutáveis — e as escolas alemãs, quase que autônomas, em cujo seio para cada ramo de conhecimentos existem muitas vezes duas ou três cadeiras rivais — estabelecendo assim franca a máxima variação de métodos, uma grande concorrência de ideias, o que na crise moderna, é de muito mais fecundidade do que a estagnação da rotina.

Realmente, todos compreendemos que se faz infelizmente necessária entre nós, povo afeito à passividade hibernante do passado regime — a ingerência do Estado nas questões mais simples do nosso progresso, embora acerca do que diz respeito à instrução superior, a iniciativa individual já tenha despontado, com sensível eficácia, na criação das faculdades livres de direito.

Segundo a judiciosa observação de um pensador contemporâneo, em todas as agitações sociais existe sempre uma estreita solidariedade entre as instituições políticas, que se transformam, e as disciplinas pedagógicas. Assim é que o primeiro esboço da secularização do ensino pelas universidades, decorre, no século XIII, do alevantamento do proletariado à existência civil — e a criação de escolas profissionais , a especialização do ensino, decretada pela convenção auxiliada pela brilhante elaboração científica dos séculos XVII e XVIII, foi como que o coroamento indispensável da grande revolução. O que desta sorte, assim se evidencia, nas mutações que afetam em geral a todas as sociedades, dá-se do mesmo modo em cada uma delas especialmente.

Desde que a reforma política tende para um estado mais elevado da existência civil, há como que a imprescindível necessidade de por ele nivelar os espíritos, pela íntima subordinação inegável da política à filosofia.

Daí a tendência notável de todos os legisladores que se voltam, nas quadras de reorganização social, afanosamente, para questões sérias e interessantes do ensino.

Esta tarefa porém, altamente louvável, é altamente difícil.

Temos disto uma prova irrecusável e eloquentíssima no desastroso projeto, apresentado agora ao congresso do Estado, e que é entretanto amparado por um nome respeitável por muitos títulos.

Trata-se da criação de um instituto politécnico — no qual as diferentes profissões irradiam de uma vasta base subjetiva, comum, de verdades científicas.

Nada realmente mais necessário, do que o projeto uniforme da filosofia pairando sobre todas as formas da atividade; somente ele as esclarece e orienta, imprimindo-lhes os mais elevados destinos.

Da mesma sorte que as nossas teorias científicas abstratas, gerais, embora nos permitam previsões racionais — não se podem tornar úteis, pela modificação do meio de harmonia com as nossas necessidades, sem a intervenção dos processos práticos que, modificando as leis adquiridas pela abstração, as aproximam da realidade objetiva; — do mesmo modo a prática, nas suas indagações, nada pode produzir sem as indicações teóricas que lhe limitam e fortalecem a ação.

Um curso preparatório, eminentemente teórico, de onde defluam as verdades amplamente gerais da ciência, deve presidir portanto aos cursos especiais, que criam as profissões.

Estas breves considerações, indicando a maior harmonia de vistas acerca da ideia fundamental que parece caracterizar o projeto do sr. Paula Souza, não impedem, apesar disto, que vejamos nele, tal qual se acha elaborado, uma coisa desastrosa, que, se for convertida em lei, definirá de um modo deplorável a feição superior da nossa mentalidade.

Deixando de parte as incorreções imperdoáveis, que ressaltam de pronto à simples leitura do artigo 1º do projeto, pelo qual fica criada em S. Paulo uma escola superior de matemática e ciências aplicadas às artes e indústrias, etc. como se houvesse mais de uma matemática e não fosse ela a única ciência a adquirir, num de seus ramos, a Mecânica, um caráter de inteira unidade; como se ela não fosse a mesma, do mais simples cálculo de valores às mais sérias das questões da Termologia; deixando de parte isto e a desnecessária redundância artes e indústrias,  como se a indústria não fosse uma modalidade das artes técnicas, consideremos o art. 3º do projeto, aonde vêm explícitas as matérias constituintes da escola preparatória; copiemo-las tal qual ali se acham respeitando a ordem em que estão formuladas.

Estas matérias são: “Língua portuguesa, álgebra elementar e superior, geometria plana e no espaço, trigonometria plana e esférica, geometria descritiva e geometria analítica e geometria superior e cálculo diferencial e integral, mecânica racional, física experimental, química geral, inorgânica e orgânica, topografia e geodésia, desenho de mão livre, linear, de ornamentação e topográfico.”

Compreendendo que estas diferentes matérias não poderiam ter uma sucessão ilógica, de uma a outra, e convictos da impossibilidade — no estado atual do espírito humano — da iniciação de estudos superiores, sem o indispensável critério de uma classificação científica — procuramos entre as inúmeras classificações de ciências alguma que justificasse a colocação da Geometria Analítica antes do cálculo transcendente e a da Geodésia depois da Química e nem a de Bacon, nem a de Ampère, nem as modernas de Bordeau, Spencer e Aug. Comte, nos satisfizeram o espírito inexperiente e ávido de conhecimentos.

Não acreditamos, apesar disto, que um legislador eminente e que intenta o levantamento mental de seus pais, perdesse tão boa ocasião de se definir acerca do encadeamento indispensável dos conhecimentos científicos, lançados a esmo, num projeto sujeito à discussão, disciplinas que, estamos acostumados a ver subordinadas a uma certa hierarquia.

Prosseguindo, vemos logo após à geometria plana e no espaço (do que conhecemos em ciência sob a designação de geometria especial) a trigonometria retilínea e a esférica, guindadas à categoria de ciência, quando não passam de soluções analíticas do triângulo retilíneo e do ângulo triedro, e nesse caráter nada mais são do que capítulos da própria Geometria Especial. É no entanto isto uma coisa facilmente compreensível e que já ninguém discute.

Logo após a geometria analítica o projeto nos patenteia uma novidade — a geometria superior. Não tripudiemos, porém, sobre este erro lamentável. Acreditemos que o ilustre legislador se quis referir à geometria diferencial e integral; realmente não existe na matemática esta geometria superior, a não ser por uma designação caprichosa e por isto mesmo altamente reprovável.

Notamos, após isto, entre as matérias indicadas a ausência da Astronomia, a ciência ilustre por excelência, representando, na frase de D’Alembert, o monumento mais incontestável do sucesso a que se pode elevar por seus esforços a inteligência humana.

Porque este inteiro abandono da cosmologia celeste, quando o projeto dá o máximo desenvolvimento à cosmologia terrestre e o estudo do movimento e da figura dos astros é uma aplicação constante e fecunda das teorias gerais estabelecidas anteriormente, no domínio da matemática?

Numa escola preparatória, destinada à construção ideal de mentalidades formadas para a orientação de elevadíssimas atividades técnicas, é imensamente criminosa a exclusão da ciência aonde se esboça e se desenvolve sistematicamente a observação, e aonde o método indutivo, que tão vigorosamente reage sobre as ciências superiores, se estabelece definitivamente.

Já que este curso preparatório tende sobretudo a criar uma base subjetiva de conhecimentos às diferentes profissões esta exclusão equivale à sua mutilação a mais dolorosa, porque além da ação filosófica que imprime às demais ciências, a Astronomia é, em muitos pontos, a base científica da Geodésia, apontada no projeto, e cujo estudo, baseado quase todo no conhecimento das teorias astronômicas, é verdadeiramente impossível, sem o influxo da ciência fundamental.

É verdadeiramente consternadora a leitura do projeto que cria o Instituto Politécnico de S. Paulo.

Vazio de orientação, incorretíssimo na forma, e filosoficamente deficiente, repelimos de todo a ideia que ele possa vir a modelar a nossa mentalidade futura.

É de fato para espantar que um projeto, ostentando tanto luxo de erudição, e intentando um preparo científico anterior às especializações técnicas, tenha olvidado o conhecimento geral da Biologia e da Economia Política, ciências igualmente preparatórias e indispensáveis a todas as carreiras.

Nos diferentes cursos especiais não existe o de engenharia geográfica, embora a existência da geodésia, no curso preparatório, tenha legitimado a sua aparição. Porque razão esquecê-la, quando nos é totalmente desconhecida a metade do país e somente ela pode desvendá-la?

Tudo isto seria ainda desculpável, se sobre o projeto em questão se refletisse o brilho de uma orientação segura — o que é a garantia mais robusta da ação legislativa.

Procuramo-la debalde. Nada há mais ali além da enumeração arbitrária de matérias e a fixação do prazo de três anos, em que devem ser estudadas, segundo programas organizados pelo futuro diretor da escola.

O legislador abdica, assim, num terceiro, que pode ser um incompetente. De sorte que a organização do projeto pertencerá afinal a este e não ao poder legislativo que a devia formular.

Já que temos um congresso destinado a legislar, semelhante incompetência, tacitamente formulada — é um desastre e uma profunda desilusão para todos.

*

Daí é possível que estejamos em erro.

Abandonando ainda ontem uma academia, somente agora começamos realmente a estudar.

Este protesto balbuciante, pois, não tem a pretensão de abalar si quer um projeto — fruto de um espírito mais experiente, que deve ser mais solidamente constituído e infinitamente mais lúcido do que o nosso.
 
Euclides da Cunha

[II]

O Estado de S. Paulo, 1º de junho de 1892

Na falta de assunto, consideremos mais uma vez o projeto do Instituto Politécnico de São Paulo.

Em artigo anterior deixamos limpidamente patenteada, de uma maneira geral, a sua deficiência relativamente à sua ideia capital.

Adeptos de uma iniciação científica que nobilite e oriente a todas as atividades, em breves, mas seguras, observações que então fizemos, tenderam sobretudo a demonstrar que ela, tal qual foi planeada pelo legislador, está muitíssimo aquém desse elevado objetivo.

Não fomos contestados: talvez não fôssemos lidos, talvez não fôssemos compreendidos.

Não nos demoraremos, considerando qualquer destes dois casos. Temos a vaidade natural a todos que são conscientes do próprio mérito; uma polêmica não nos honraria, embora com adversário ilustre, preferimos este contínuo enobrecimento, que se realiza através da meditação e do estudo.

Apontando os defeitos e incorreções, muitos dos quais gravíssimos, de que está eivado o projeto, agora apresentado ao Senado, cumprimos um dever rudimentar — combater o erro.

Praticamo-lo corretamente; não são possíveis controvérsias a esse respeito — e a ausência de uma contradição, que entretanto esperávamos, quer dizer disto — vencemos.

Realmente, ninguém ousaria arrostar as conseqüências de negar os defeitos que apresentamos; nem mesmo o autor do projeto.

Que potência de imaginação seria capaz de arquitetar argumentos em prol desta geometria superior, extraordinária novidade científica, a maior talvez deste século, por que em verdade não é fácil coisa uma ciência nova?

Quem ousará afirmar como exequível um estudo consciencioso da geodésia, sem o apoio da astronomia?

Quem condenará aos que exigem do legislador, que aborda questões elevadíssimas do ensino, o imprimir, nas leis que elabora, o brilho de uma orientação filosófica? E etc.

Apesar disto, esperamos alguns dias; tão sério e tão grave se nos afigura qualquer ataque, embora delicadíssimo e visando a entidade abstrata que se diz homem público, cuja existência tem a feição nimiamente geral dos símbolos — que esperamos uma reação natural, a qual tria, para nós, sobretudo, o mérito de mostrar que não agimos irrefletidamente, porque — sem violação da modéstia — qualquer réplica, partisse de onde partisse, se versasse sobre a questão de que tratamos — seria vitoriosamente aniilada.

Não é uma frase de retórica a aristocracia mental. Fendem-se brasões heráldicos ao clarão ideal do pensamento. Daí talvez esta aparência, até certo ponto antipática, de orgulho, que circunda aos que tendo, na história da existência, unicamente uma página em branco — o futuro — ousam analisar as ações dos que já se constituíram credores do menor respeito, por um passado de esforços. Existe, porém, uma atenuante salvadora, para os que assim se julgam e procedem — e é que toda a personalidade se lhes extingue, num grande e inextinguível amor pelas ideias que adotam.

Que isto nos absolva.

Sigamos uma outra ordem de considerações já que, em artigo anterior, deixamos limpidamente provada a incompetência do projeto criador do Instituto Politécnico, relativamente ao grandioso fim a que se destina.

Após a função destruidora era perfeitamente lógica a missão reconstrutora.

Intentá-la, porém, seria não só alçar demasiadamente a nossa competência, como invadir atribuições estranhas e patentear inteira ignorância do nosso meio.

De fato, considerando, não dizemos a sociedade paulista, para não ferir de perto, mas toda a sociedade brasileira — compreendemos que ela não comporta esse grande ideal de um preparo filosófico comum, presidindo a todas as atividades.

Ele é difícil e longo, não pode surgir das noções gerais, porque a íntima solidariedade das ciências não faculta isto; porque as mais simples noções de umas requerem muitas vezes um conhecimento profundo de outras. O encadeamento indestrutível das relações científicas é, além disto, a única fonte das verdades filosóficas e as noções superficiais não o esclarecerão com a limpidez indispensável.

O fato mais simples tem muitas vezes, em torno, para explicá-lo, um admirável conjunto de leis, sucedendo-se numa ordem maravilhosa. Uma noção de ciência especial pode evocar quase todas as ciências. Partindo, por exemplo, da verdade universalmente sabida do calor central, em geologia, o nosso espírito, concorrentemente, encontra para esclarecê-la a química, a física, a astronomia e a matemática, sendo verdadeiramente incompleta a explicação, desde que se exclua qualquer uma destas ciências e assim sucessivamente, em inúmeros fatos, que fora demasiado apontar.

Por mais admirável, porém, que seja essa continuidade necessária dos conhecimentos científicos — é inexequível nas escolas práticas, pelo menos entre nós. Compreende-se que o indivíduo que se destina à agricultura entenderá e ninguém o convencerá do contrário, que nada tem que ver com o cálculo infinitesimal, que irá perder um tempo precioso com a mecânica ou a astronomia e fugirá do instituto que lhe impuser estas matérias. Da mesma sorte o futuro engenheiro mecânico, julgará, sem razão embora, não se sobrecarrega inutilmente com o estudo da astronomia, de cujas noções nunca terá que se utilizar; e assim por diante.

Além disto, a nossa indústria nascente não pode ter veleidades de erigir-se original e criadora; pela simples imitação do que se faz no estrangeiro pode tornar-se fecunda e natural; têm, gratuitamente, toda uma infinidade de processos práticos, oferecidos pela civilização geral, e não se lhe faz evidentemente precisa uma alta dose de ciência, para utilizá-los com eficácia.

Embora não fosse deficiente e incorreta a iniciação científica comum que caracteriza o projeto de que tratamos, exprimiria pois uma aspiração nobilíssima elevada — e irrealizável. Para útil esta educação superior precisa de ser completa, e já que não a podemos possuir assim e já que assim ela não se pode realizar, que se a diferencie, de acordo com as diferentes carreiras; ficando entretanto o pensamento capital do projeto recordando uma tentativa eminentemente civilizadora, ainda que mal baseada.
 
Euclides da Cunha

Como citar
CUNHA, Euclides da. Instituto Politécnico. EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Crônicas. São Paulo, 2021. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/cronicas/. Acesso em: [data]. Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, São Paulo, 24 maio 1892, 1º jun. 1892. p. 1. Reprod. de CUNHA, Euclides da. Crônicas. In: Obra completa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1. pp. 513-9.