Homens de Hoje

I

Província de S. Paulo, 22 de junho de 1889

Como o átomo na química ou o infinitamente pequeno na matemática, o homem, em sociologia, tem a existência subjetiva de um tipo abstrato.Unicamente considerando-o assim, desta forma, diríamos metafísica, se não fosse esta a palavra mais condenada hoje, tornou-se possível o estabelecimento da ciência social. Aí, como o dx de Leibniz, ele exprime uma abstração imensa; é uma construção lógica e as suas propriedades características não são as que hoje tem, mas as que terá após um aperfeiçoamento excessivamente remoto.Atingir a esse tipo ideal, realizá-lo empiricamente, tal é o destino altamente moralizador da civilização, tal é o fim grandioso dessa belíssima utopia da filosofia moderna que aspira, pelo consórcio de todas as tradições e unificação de todas as crenças — transmudar a Terra no extenso lar da família humana.

Para nós porém, assaltados em plena mocidade por um duro ascetismo, esta época ultrapassará a existência biológica da Terra e antes que o homem qual é possa chegar ao homem qual deve ser, é natural que depois das condições essenciais à vida e amparado somente pela lei diretora do equilíbrio dinâmico dos mundos, o nosso planeta, coberto das ossadas de mil gerações extintas, gravite no espaço, vazio, como um túmulo silencioso e vasto…

Estas linhas, apressadamente escritas, têm o único valor de fixarem nos mais desassombrada e digna, uma posição de combate.

Nada mais perigoso, numa época de agitação, que essa discussão objetiva que se costuma estabelecer em torno de individualidades e nada também mais estéril.

Para nós, os indivíduos terão a estrutura ideal das fórmulas: traduzem manifestações da sociedade e discuti-los, mais do que inquirir se são ou não bons, consiste em ver se patenteiam-se ou não — lógicos.

Por outro lado, como uma atenuante ao cepticismo referido acima, resta o entusiasmo que nos domina sentindo, em torno, na pátria — a parte mais próxima da humanidade — os que ainda crêem, ainda sabem sentir e generalizando a vida têm robustez para alevantar a herança grandiosa do passado e impeli-la engrandecida para o futuro.

Esses, que surgem dentro de nós, elevados e resplandecentes, como pontos determinantes na trajetória ideal da nossa civilização, emprestar-nos-ão alento para que não percamos a postura retilínea dos fortes…

Por mais violento que seja o embate de nossas próprias paixões, amparar-nos-á a crença robusta de que há em suas almas vigorosas um asilo inviolável a este sonho, a esta miragem, a isto que para muita gente não passa de uma palavra — a pátria…

*

Não há exagero nessas últimas linhas; não existissem eles e por uma vez devíamos repelir a esperança na regeneração desta velha sociedade colonial — prolongada por um triste fenômeno histórico ao seio do século XIX.

O repto audacioso lançado em pleno parlamento, pelo Primeiro-Ministro do Império, afrontaria impune ao grande ideal da política americana, destinado um dia, talvez próximo, a fazer da América inteira uma só pátria.

Com um amplo e vigoroso gesto, num assomo de demagogia palaciana, S. Exa. traçou ante a representação nacional a linha estratégica de uma árdua campanha. Nesse gesto circular e enorme, que durante um segundo pairou sobre toda a Câmara, inscreveu o trono imperial, e em sua fisionomia vimos transudar a mais soberana alegria, a mais rígida confiança na própria força.

Por entre o enorme sussurro e explosão de aplausos, que saudaram a profissão de fé do padre João Manoel, a sua palavra penetrou alígera e heróica como um dardo, transmitindo à debilidade da instituição monárquica o tônico enérgico de um grande talento. Em suma, da maneira mais franca, foi talvez. S. Exa. o primeiro a dar manifestação empírica a uma luta que de há muito agita o espírito nacional. Compreendemos então que atingiríamos uma fase decisiva na história.

Compreender isto, porém, equivale a robustecer-nos.

Todo aprumo, a gesticulação teatral, a esplêndida hardiesse do Sr. Presidente do Conselho, fazem-nos acreditar que confia muito na tão falada engrenagem política, cujos dentes realizam a odiosa tarefa do esmagamento de caracteres, das salas das secretarias de Estado ao fundo das casernas; ainda mais, certificam-nos de que assiste-lhe amplo, o direito, ante uma questão social extremamente complicada, de dar a palavra ao sinistro legislador — Comblain…

Ao mesmo tempo, porém, anima-os a certeza — de que as condições atuais, o advento de adversários ante os quais S. Exa. aniile-se totalmente, traduz sobretudo um fato naturalíssimo.

Representantes naturais da sociedade trazem no espírito a resultante de todas as energias sociais; são os homens de hoje sínteses das maiores aspirações de uma época. Para que desde já possamos esboçar-lhes os agigantados perfis é suficiente isto: encarar a feição mais elevada dos acontecimentos.

Estabelecido este preâmbulo, consideremos o presente.

II

Província de S. Paulo, 28 de junho de 1889

O Sr. Cesário de Alvim despediu-se do Oitavo Distrito de Minas; unicamente como eleitor deseja e deve entrar no pleito eleitoral. É isto, em resumo, o que o ilustre democrata acaba de exprimir pela imprensa.

Tratássemos de um velho liberal, cuja energia se extinguisse na deplorável inconsistência de uma política partidária — desiludido e vencido, e acharíamos natural mesmo este rebaixamento de posto que, como o de Epaminondas — eleva.

A desilusão, esta espécie de derrota infligida às ideias e ao sentimento, é, em política, inevitável corolário da estéril agitação dos que, sem altitude para fugirem à dispneia asfixiante do egoísmo pretendem, no estreito círculo de uma individualidade mal-educada, inscrever os interesses gerais.

Advém-lhes a velhice como os cabelos brancos. Paralisa-lhe a cerebração da mesma forma pela qual a lenta atrofia do organismo dificulta-lhes a circulação do sangue. Divorciados do movimento geral, em toda a sua atividade como que predomina, constante, um esforço material, abdicando das próprias convicções todas as vezes que a musculatura combalida ameaça-lhes a integridade da existência. Dizem-se desiludidos — estão gastos.

Em política não há desilusões por uma razão simplíssima: a política não ilude. Definindo-se sobretudo como — um espírito colocado em função da sociedade, o homem político, pela expansão natural das ideias vincula-se profundamente às forças crescentes que a animam. As diferenciações sucessivas dos fatos, que definem o curso da civilização e são a condição essencial do progresso, reagem continuamente sobre si, alentam-no e revigoram-no. Bate-se por um ideal, convicto muitas vezes de que a sua realização está além da vida objetiva; certo porém de que constituir-lhe-á a existência imortal da história; e velho, muito embora, paira-lhe na fronte encanecida a tranquila irradiação de suas crenças, como a fulguração das lavas na eminência enregelada de um vulcão andino. Estes não se desiludem.

Em nossa pátria, onde o partidarismo impera, é vulgar a aparição de políticos desiludidos, mumificados em vida, e acurvados ao peso de antigas crenças, derrocadas.

O Senador Francisco Otaviano, uma grande alma de poeta que orientada de outra forma deixaria em nossa história um traço imperecível, define a política como uma messalina histérica de cujos braços sai-se corrompido, etc.

Os que aplaudem esta frase monstruosa apedrejar-nos-iam se alcunhássemos a química de volúvel cortesã, ou de misteriosa hetaira a matemática. Entretanto o absurdo é perfeitamente idêntico; a política emana duma ciência tão positiva como qualquer uma destas e como qualquer uma repele objetivações que a desvirtuem.

Em suma, iludir-se em política, é errar.

Para os que chegam à convicção dos próprios erros e numa implícita declaração de incompetência dizem-se desiludidos, abandonar uma posição de comando exprime um ato além de natural, altamente benéfico. Com o eminente representante de Minas isto, porém, não se dá.

Ainda quando a sua mentalidade não se constituísse inteira à luz dos princípios mais sãos, bastava a grande solidariedade que o alia à maioria de sua província, para determinar-lhe a mais perigosa estacada na próxima luta.

Profundamente identificado às elevadas aspirações dessa terra lendária, aonde repousam as mais brilhantes tradições da pátria, cabe-lhe o grande dever de operar no seio da representação nacional a transfusão da esplêndida virilidade que a anima e impulsiona.

Por mais rápida que fosse a sua passagem aos princípios republicanos, foi limpidamente lógica: definiu do modo mais digno a atitude atual da evolução política em Minas.

Perfeitamente coerente, os seus atos de hoje irmanam-se aos de ontem e a sua posição, longe de ser um repúdio ao passado, traduz uma expansão do próprio liberalismo.

Os ronceiros paquidermes políticos, que materializam por aí a coerência na estabilidade das rochas, acham que esta transformação foi muito rápida, extremamente rápida…

Pela nossa parte, achamos naturalíssimo que, tendo entregue todo o seu talento a um partido — como um diamante às mãos do lapidário —, visse-se afinal surgir brilhante e rígido, entre os fulgores da democracia.

Na fase atual das coisas, em que os partidos monárquicos, conflagrando-se, aniilam-se pela dispersão; em que, por uma erradíssima sugestão do ministério, o velho imperador, que traduz ao estado mórbido o próprio estado da instituição monárquica, vai ser arremessado a Minas, como uma sonda — bem é que o Sr. Cesário Alvim, constituindo-se o centro de atração das grandes aspirações de sua província, que são as da pátria, robusteça-as, unificando-as. E acreditamos que não poderá se eximir a isto: opondo-se pela primeira vez a um seu desejo francamente expresso, Minas impor-lhe-á breve o sacrifício de ser grande…

Como citar
CUNHA, Euclides da. Homens de Hoje. EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Crônicas. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/cronicas/. Acesso em: [data]. Reprod. CUNHA, Euclides da. Crônicas. In: Obra completa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1. pp. 714-7. Originalmente publicadas em Província de S. Paulo, em 22 e 28 de junho de 1889.