Heróis de ontem

Revista da Família Acadêmica, Rio de Janeiro, n. 8, 1º de junho de 1888

Afastemo-nos um instante da harmonia festiva que circunda os vencedores do presente e concentremo-nos, recordando os nomes dos combatentes do passado.

Nunca se nos impôs tanto esta necessidade; na transição que sofre a nossa pátria rapidamente nivelada a toda a deslumbrante grandeza do século atual, pela realização de sua reforma liberal; nesse instante supremo de nossa história, em que se inicia a unificação de todos os direitos, a harmonia de todas as esperanças e a convergência de todas as atividades; hoje, que os nossos ideais são, de fato, os verdadeiros e os únicos materiais para a prodigiosa construção da civilização da pátria — nós, os operários do futuro, e que devemos em breve — atirar na ação toda a fortaleza de nossa vitalidade — todos os brilhos de nosso espírito — todas as energias de nosso caráter, não devemos olvidar os heróis de ontem, de cujas almas partiu o movimento inicial desta deslumbrante ascensão, dessa soberana elevação moral…

Olvidá-los, mais do que uma ingratidão, seria um erro, seria desconhecer que os grandes ideais dessas frontes olímpicas disseminam-se por todos os corações, difundem-se em todos os cérebros, e levados pela tradição, presos nos elos inquebráveis da solidariedade humana, revivem, continuamente crescentes — no seio das sociedades.

A luz — a grande luz imaculada e sublime que circunda a data mais gloriosa de nossa história e traça — irradiando para o futuro — o itinerário da nossa nacionalidade, não defluiu da mentalidade dos brilhantes patriotas do presente; veio de longe, cintilou no seio de muitas gerações e as frontes dos pensadores de hoje foram apenas as lentes ideais que a refrataram — aumentada — sobre a sociedade.

E isso — somente isso — explica o ter sido tão calma, uma transformação tão radical e que tão profundamente alterou o nosso organismo social; em geral — a história o diz — esses grandes males cedem somente aos cáusticos tremendos da revolução, desaparecem somente quando afogados pela brutalidade — algumas vezes benéfica — das paixões indomáveis do povo e mui recentemente ainda, na América do Norte, para poder aniquilá-los, o brilho do pensamento de Lincoln aliou-se à cintilação da espada de Ulisses Grant…

Entre nós porém — não deus-se uma revolução — operou-se uma evolução.

Não houve um abalo — porque respeitou-se uma lei.

Particularizam-se alguns termos na fórmula geral do progresso, por isto esta reconstrução não necessitou de uma destruição anterior e por sobre toda esta enorme transformação paira, deslumbrante, retilínea e firme a lógica inabalável da história.

E de tudo isto nos são credores os grandes filhos da pátria — animados hoje da existência imortal da história, e por isso é bem natural que remontando-nos ao passado, procuremos nas inscrições dos seus túmulos imaculados — a senha do futuro!

Recordemo-nos pois das almas soberanas aonde se germinou essa generosa ideia da liberdade, que após elevar todas as frontes, imergiu em nossa civilização — tendo como último ponto de apoio a sua força desmesurada — um coração de princesa!…

José Bonifácio, Eusébio de Queirós, Paranhos — sintetizam admiravelmente todos os pensadores que melhor emprestaram-lhe energia e brilho; Ferreira de Meneses, Tavares Bastos e Luís Gama — definem perfeitamente os grandes corações, bastante grandes para conterem as dores cruciantes de muitas gerações e pátrias; Gonçalves Dias, Castro Alves e Varela — foram os brilhantes educadores de nossos corações que se engrandeceram dilatados pelos calor ideal emanado dos brilhos de suas estrofes imortais…

Ante esses nomes a ideia que fazemos da consciência nacional, justifica um silêncio — profundamente eloquente.

No dia de hoje eles deviam ser lembrados, não tanto por um impulso de gratidão mas pelo grande ensinamento que disto nos advém — por isto é que os recordamos — afastando-nos — por um instante — da alegria ruidosa e festiva que no dia de hoje aclama — a regeneração da pátria.

Euclides Cunha

Como citar
CUNHA, Euclides da. Heróis de ontem. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Crônicas. São Paulo, 2021. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/cronicas/herois-de-ontem. Acesso em: [data]. Transcrito de: CUNHA, Euclides da. Obra completa. Fragmentos e relíquias. org. Paulo Roberto Pereira. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1. pp. 805-6. Publicado originalmente na Revista da Família Acadêmica, Rio de Janeiro, n. 8, 1º jun. 1888, pp. 227-9.