Excerto de um livro inédito

O Estado de S. Paulo, 19 de janeiro de 1898

…Assim, o sertanejo é um forte, cuja energia contrasta o raquitismo exaustivo dos mestiços enervados do litoral. Surge naquelas paragens com a feição firmemente acentuada de um lidador enérgico.

A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Não tem a plástica impecável, o desempeno, as linhas elegantes dos lutadores antigos. É sem elegância e desengonçado. O andar sem firmeza, sem o aprumo dos organismos vigorosos, é quase gigante e sinuoso, aparentando a translação de membros desarticulados; e a postura, normalmente indolente, semicurvada, manifesta numa displicência perene.

A pé, quando parado, recosta-se sempre ao primeiro móvel ou parede que encontra; a cavalo, quando sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo, novamente, sobre um dos estribos, descansando sobre a sela.

Marchando, ainda quando a passo acelerado, não traça nunca uma trajetória retilínea, avança vertiginosamente, num bambolear persistente; e se estaca, para enrolar um cigarro ou travar longa conversa com um amigo, põe-se de cócoras quase sempre, atravessado largo tempo numa posição de equilíbrio instável, suportando apenas pelos dedos dos pés, sentado por assim dizer sobre os calcanhares, numa simplicidade adorável e ridícula a um tempo.

Mas toda esta aparência de cansaço e todo esse achamboado, iludem.

Naquela organização, normalmente preguiçosa e como que combalida, opera-se, num segundo, uma transfiguração completa, ao sobrevir qualquer incidente que lhe exija o desencadear repentino da energia adormida apenas. O homem, de golpe, transmuda-se; empertiga-se soberano de força e de audácia; a cabeça firma-se enérgica sobre os ombros possantes, iluminada por um olhar atrevido; corrigem-se, prestes, todos os defeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e, da figura deprimida do tabaréu desgracioso, irrompe bruscamente a feição dominadora de um titã bronzeado e potente, num desdobramento surpreendedor de força e agilidade extraordinárias.

É impossível imaginar-se um cavaleiro mais descuidado e despretensioso — sem posição, pernas coladas ao bojo do animal, tronco pendido para a frente e oscilando à feição da andadura dos pequenos cavalos do sertão, desferrados e maltratados, resistentes e rápidos como poucos. Mas se uma rês alevantada envereda esquiva pela caatinga garranchenta ei-lo que se transmuda — violento e ágil — cravando os acicates de rosetas largas nas ilhargas da montaria e partindo como uma flecha, atufando-se velozmente no seio trançado das juremas.

Não há contê-lo, então, no ímpeto… Que se lhe antolhem em frente os sulcos das quebradas, acervos monstruosos de pedras, moitas impenetráveis de espinhos ou os barrancos em caixão dos rios correntosos — nada lhe impede encalçar o caruara desgarrado, porque por onde passa o boi passa o vaqueiro com o seu cavalo

Colado ao dorso do animal, confundindo-se com ele sob a pressão das pernas vigorosas, realiza então a criação bizarra de um centauro bronco e grosseiro — emergindo inopinadamente nas clareiras, mergulhando mais adiante nas macegas altas, saltando valados e ipueiras, vingando os cômoros desnudos, rompendo, célere, os mocambos trançados, precipitando-se a toda a brida nos planos dos tabuleiros… A sua compleição robusta ostenta-se então em toda a plenitude: como que é o cavaleiro resoluto quem empresta energia ao cavalo pequenino e frágil, sustendo-o nas rédeas improvisadas de caroá, suspendendo-o vigorosamente nas esporas, arremessando-o para a frente, escanchado no rastro do novilho desgarrado, aqui curvando-se agilmente sob uma galhada que roça quase pela sela, além desmontando-se de golpe, sem largar as crinas do animal, para evitar o embate de um tronco apercebido no último momento e galgando logo depois o selim — galopando sempre através de todos os obstáculos, e sopesando à mão direita sem o perder nunca, sem o deixar no emaranhado dos cipoais, o longo ferrão de ponta de ferro, que por si só constituiria, noutras mãos, sério tropeço à travessia.

E terminada a refrega pela volta ao rebanho da rês tresmalhada, ei-lo de novo, acurvado sobre a sela, indolente e desgracioso, oscilando à feição do passo do animal, como que sob a pressão de um aniquilamento absoluto, numa aparência falsa de inválido fatigado.

O gaúcho do sul, ao vê-lo nesse momento não o olharia sequer.

O vaqueiro do norte é a sua antítese. Na postura, no gesto, na palavra, na índole e nos hábitos dificilmente se encontram pontos de contato entre os dois.

O primeiro, filho dos plainos dilatados, afeiçoado às correrias fáceis nos pampas, adaptado a uma natureza carinhosa que o deslumbra e encanta, reveste-se naturalmente de uma feição cavalheiresca e mais atraente. A luta pela existência não assume ante ele o caráter selvagem dos sertões do norte. Não conhece os horrores das secas e os combates cruentos com um solo árido e exsicado; não o entristecem as cenas quase anuais da devastação e da miséria, o quadro pavoroso da absoluta pobreza da terra calcinada, exaurida pela adustão dos sóis bravios do Equador* e não tem, por isto, no meio das horas remansadas da felicidade, a preocupação do futuro que é sempre uma ameaça, tornando instável sempre as fortunas mais sólidas ante a fatalidade incoercível dos elementos desencadeados. Desperta para a vida amparado pela natureza deslumbrante que o aviventa; e passa pela vida — aventureiro, jovial, valente e fanfarrão — despreocupado quase, tendo o trabalho como uma diversão que lhe permite as disparadas domando distâncias no seio dilatado dos pampas, tendo aos ombros, palpitando aos ventos, o pala inseparável, como uma flâmula festivamente agitada.

As suas vestes são um traje de festa ante a vestimenta rústica do vaqueiro. As largas bombachas, adrede dispostas para a fácil movimentação sobre o cavalo no galope fechado ou no corcovear raivoso, não se dilaceram nos espinhos duríssimos das caatingas; o pala vistoso jamais lhe fica perdido, embaraçado na galhada caótica torturadas e secas.

O cavalo, sócio inseparável de uma existência algo romanesca, é quase um objeto de luxo. O arreamento complicado e espetaculoso demonstra. O gaúcho andrajoso sobre um pingo perfeitamente equipado, está decente, está corretíssimo, pode atravessar sem vexames os povoados em festa.

O vaqueiro do norte criou-se em condições opostas, numa intermitência, raro perturbado de horas felizes e horas amarguradas, de abastança e misérias, tendo sobre a fronte, como uma ameaça perene, o sol, arrastando de envolta na sucessão periódica das estações períodos sucessivos de devastações e desgraças. Atravessou a mocidade numa intercadência de catástrofes e fez-se homem repentinamente por assim dizer, quase sem ser criança. Assaltou-o logo, intercalando-lhe agruras nas horas festivas da infância, o espantalho das secas nos sertões candentes e cedo encarou a existência pela sua face tormentosa como um condenado à vida. E considerando-a assim, compreendeu-se envolvido num combate sem tréguas, exigindo imperiosamente a convergência de todas as energias. Fez-se forte, atilado, resignado e prático.

Aprestou-se cedo para a luta.

O seu aspecto recorda vagamente, à primeira vista, o de guerreiro antigo.

As vestes são uma armadura.

Envolto no gibão de couro, de bode ou de vaqueta, curtido — apertado no colete impenetrável, calçando as perneiras de couro resistente muito justas, cosidas às pernas e subindo até as virilhas e resguardados os pés e as mãos pelos guarda-pés e luvas de pele de veado — é como que a forma evanescente de um campeador medieval, desgarrado nos tempos atuais.

Essa armadura, porém, não tem cintilações, não fulgura, ferida pelo sol, — é fosca e poenta — envolve ao combatente de uma batalha sem vitórias…

A sela da montaria, feita por ele mesmo, imita o lombilho rio-grandense, mas é mais curta e cavada, sem os apetrechos luxuosos daquele; são-lhe acessórios uma manta de pele de bode, um couro resistente cobrindo as ancas do animal, peitoral e joelheira de sola.

Esta vestidura rude do homem e do cavalo talha-se à feição do meio. Faltam-lhes a amplitude dos planos extensos e, em troca, cabem-lhe todos os assaltos de uma natureza agressiva e bárbara. Vestidos de outro modo, não romperiam, incólumes, as caatingas trançadas.

Nada mais monótono e feio, entretanto, do que essa vestimenta de uma só cor, o pardo avermelhado do couro curtido, sem uma variante, sem uma lista sequer, diversamente colorida.

Apenas, de longe em longe, nas raras encamisadas em que aos descantes das violas, o matuto olvida as horas fatigadas, surge uma novidade — um colete vistoso de pele de gato do mato ou suçuarana, com o pelo voltado para fora, ou uma bromélia rubra e alegre, fincada no chapéu de couro.

Isto, porém, é um incidente passageiro e raro.

Extintas as horas do folguedo, o sertanejo perde logo o desgarre folgazão — largamente expandido nos sapateados céleres em que o som seco das alpercatas sobre o chão quebra-se no retinir argentino das esporas, acompanhando a cadência monótona das violas — e cai na postura habitual, achamboado, indolente, deselegante, anguloso e torto, num falso manifestar de desnervamento e cansaço extraordinários.

Ora, nada mais explicável do que este contraste permanente entre extremas manifestações de força e atividade e longos intervalos de apatia.

Pondo mesmo de lado a ação fisiológica dos agentes físicos que observamos, o sertanejo do norte teve uma árdua aprendizagem de reveses e afez-se cedo a encontrá-los de chofre e a reagir, de pronto. Atravessa a existência entre ciladas, surpresas bruscas de uma natureza incompreensível — e não perde um minuto de tréguas. É o batalhador perenemente combalido e exausto, perenemente audacioso e forte; preparando-se sempre para um combate que não vence e no qual não se deixa vencer; passando da máxima quietude à máxima agitação, da rede preguiçosa e cômoda para o lombilho duro, que o arrebata como um raio pelos arrastadores estreitos, em busca das malhadas.

Reflete, nestas aparências exteriores, que se contrabatem duramente, a própria natureza que o rodeia, passiva ante o jogo desordenado dos elementos, passando, quase sem transição sensível, de uma estação à outra, da maior exuberância para a penúria dos desertos desnudos e ardentes, ao reverberar dos estios abrasados.

É inconstante como ela e é natural que o seja; viver é adaptar-se.

O gaúcho aventuroso e valente é, certo, admirável numa carga guerreira, precipitando-se, ao ressoar estrídulo dos clarins vibrantes, pelos pampas, com o conto da lança enristada, firme no estribo — atufando-se loucamente nos entreveros, desaparecendo com um brado de entusiasmo na voragem do combate de onde espadanam cintilações de espadas, transmudando o cavalo num projétil, e rompendo quadrados e levando de rojo o adversário ou caindo prestes na luta, em que entra numa despreocupação soberana pela vida.

O jagunço é menos teatralmente heroico; é mais tenaz, é mais resistente, é mais perigoso, é mais forte. Raro assume essa feição romanesca e gloriosa; procura o adversário com o propósito formado de o destruir, seja como for; está afeiçoado aos combates demorados, sem expansões entusiásticas; a vida é-lhe uma conquista arduamente realizada numa faina incessante, guarda-a como um capital precioso; não esperdiça a mais ligeira contração muscular, a mais leve vibração nervosa sem a segurança do resultado; calcula friamente o pugilato e ao riscar da faca não dá um golpe em falso; ao apontar a lazarina longa ou o trabuco truculento, dorme na pontaria

Se, abortado o choque impetuoso, o inimigo enterreirado não recua, o gaúcho é um vencido fragílimo nas aperturas de uma situação inferior. O jagunço jamais se considera vencido; cede o terreno, mas não a vitória…

 
Euclides da Cunha

Como citar
CUNHA, Euclides da. Excertos de um livro inédito. EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Crônicas. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/cronicas/. Acesso em: [data]. Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, São Paulo, 19 jan. 1898. O livro Os Sertões seria publicado em 1902. Digitalização gentilmente realizada por Felipe Pereira Rissato.