Revista Kosmos, ano 3, nº 1, janeiro de 1906
A abertura de um seringal, no Purus, é tarefa inacessível ao mais solerte agrimensor, tão caprichosa e vária é a diabólica geometria requerida pela divisão dos diferentes lotes. De feito, relegado a um minimum extraordinário o valor próprio da terra, ante a valia exclusiva da árvore, ali se engenhou uma original medida agrária, a “estrada”, que por si só resume os mais variados aspectos da sociedade nova, à ventura abarracada à margem daqueles grandes rios.
A unidade não é o metro — é a seringueira; e como em geral 100 árvores, desigualmente intervaladas, constituem uma “estrada”, compreendem-se para logo todas as disparidades de forma e dimensões do singularíssimo padrão que é, não obstante, o único afeiçoado à natureza dos trabalhos.
Não há gizar-se um outro. Perdido na mata exuberante e farta, com o intento exclusivo de explorar a hevea apetecida, o seringueiro compreende, de pronto, que a sua atividade se debaterá inútil na inextricável trama das folhagens, se não vingar norteá-la em roteiros seguros, normalizando-lhe o esforço e ritmando-lhe o trabalho tão aparentemente desordenado e rude. É-lhe, ademais, indispensável que os seus numerosos camaradas, fregueses ou aviados, destinados a agirem isoladamente, não se embaralhem, às tontas, iludidos pelos desvios da floresta.
As “estradas” resolvem a questão. Mas o seu traçado é, de si mesmo, o primeiro problema imposto a quem quer que intente abrir um sítio de borracha.
Assim é que, erguida rapidamente a primeira vivenda do barracão, sempre à beira do rio principal, na barranca de uma terra firme a cavaleiro das águas — e feito um reconhecimento preliminar do latifúndio que o rodeia, o sitiante procura um sertanista experimentado a quem confia o encargo de dividir- lhe e avaliar-lhe a fazenda.
E o mateiro lança-se sem bússola no dédalo das galhadas, com a segurança de um instinto topográfico surpreendente e raro. Percorre em todos os sentidos o trecho de selva a explorar; nota-lhe os acidentes; apreende-lhe a fisiografia complexa, que vai dos igapós alagados aos firmes sobranceiros às enchentes; traça-lhe os varadores futuros; avalia-lhe rigorosamente, as “estradas”; e vai no mesmo lance, sem que lhe seja mister traduzir complicadas cadernetas, escolhendo à beira dos igarapés todos os pontos em que deverão erigir-se as pequenas barracas dos trabalhadores.
Feito este exame geral, apela para dois auxiliares indispensáveis — o toqueiro e o piqueiro; e erguendo num daqueles pontos predeterminados, com as longas palmas da jarina, um papiri, onde se abriguem transitoriamente, metem mãos à empreitada.
O processo é invariável. Segue o mateiro e assinala o primeiro pé de seringa, que se lhe antolha ao sair do papiri. É a boca da estrada. Aí se lhe reúnem o toqueiro e o piqueiro — prosseguindo depois, isolado, o mateiro até encontrar a segunda árvore, de ordinário pouco distante, a uris cinqüenta metros. Avisa então com um grito particular, ao toqueiro, que parte a alcançá-lo junto da nova madeira, enquanto o piqueiro, acompanhando-o mais de passo, vai tirando a facão a picada, que prefigura a “estrada”. O toqueiro auxilia-o por algum tempo, abrindo por sua vez um pique para o seu lado, enquanto um outro grito do mateiro não o chame a reconhecer a terceira árvore; e assim em seguida até ao ponto mais distante, a volta da estrada. Daí, agindo do mesmo modo, retrogradando por outros desvios, vão de seringueira em seringueira, fechando a curva irregularíssima que termina no ponto de partida.
Ultima-se o serviço, que dura ordinariamente três dias, ficando a “estrada” em pique. Partindo do mesmo lugar, e adstritos ao mesmo sistema, abrem noutro rumo uma segunda estrada; e tantas, ao cabo, quantas comporte a natureza da floresta circundante, centralizadas todas pela mesma boca, junto do tejupar que localiza uma barraca. Busca então o mateiro um outro lugar, inteligentemente escolhido, e reproduz a mesma operação, até que, estradado todo o terreno, fique completamente repartido o seringal, como o revela este esboço, onde, presas pelos varadores ao barracão erguido à beira do rio, se vêem as barracas e as estradas que as envolvem, contorcidas à maneira de tentáculos de um polvo desmesurado. E a imagem monstruosa e expressiva da sociedade torturada que moureja naquelas paragens. O cearense aventuroso ali chega numa desapoderada ansiedade de fortuna; e depois de uma breve aprendizagem em que passa de brabo a manso, consoante a gíria dos seringais (o que significa o passar das miragens que o estonteavam para a apatia de um vencido ante a realidade inexorável), ergue a cabana de paxiúba à ourela mal destocada de um igarapé pinturesco, ou mais para o centro numa clareira que a mata ameaçadora constringe, e longe do barracão senhoril, onde o seringueiro opulento estadeia o parasitismo farto, pressente que nunca mais se livrará da estrada que o enlaça, e que ele vai pisar durante a vida inteira, indo e vindo, a girar estonteadamente no monstruoso círculo vicioso da sua faina fatigante e estéril.
A pieuvre assombradora tem, como a sua miniatura pelágica, uma boca insaciável servida de numerosas voltas constritoras; e só o larga quando, extintas todas as ilusões, esfolhadas uma a uma todas as esperanças, queda-se-lhe um dia, inerte, num daqueles tentáculos, o corpo repugnante de um esmaleitado, caindo no absoluto abandono.
Considerai a disposição das “estradas”.
É o diagrama da sociedade nos seringais, caracterizando-lhe um dos mais funestos atributos, o da dispersão obrigatória.
O homem é um solitário. Mesmo no Acre, onde a densidade maior das seringueiras permite a abertura de 16 estradas numa légua quadrada, toda esta vastíssima área é folgadamente explorada por oito pessoas apenas. Daí os desmarcados latifúndios, onde se nota, malgrado a permanência de uma exploração agitada, grandes desolamentos de deserto…
Um seringal médio de 300 estradas corresponde a cerca de vinte léguas quadradas; e toda essa província anônima comportará, no máximo, o esforço de 150 trabalhadores.
Ora, esta circunstância, este afrouxamento das atividades distendidas numa faina dispersiva, a par de outras anomalias, que mais adiante revelaremos, contribui sobremaneira para o estacionamento da sociedade que ali se agita no afogado das espessuras, esterilmente — sem destino, e sem tradições e sem esperanças —, num avançar ilusório em que volve monotonamente ao ponto de partida, como as “estradas” tristonhas dos seringais…
Rio — 1906
CUNHA, Euclides da. Entre os seringais. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Crônicas. São Paulo, 2021. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/cronicas/entre-os-seringais. Acesso em: [data]. Publicado originalmente em: CUNHA, Euclides da. Revista Kosmos, ano 3, nº 1, Rio de Janeiro, jan. 1906. n.p.
CASTRO, Plácido de. Indústrias: Indústria Extractiva. In: Castro, Genesco de. O Estado independente do Acre e J. Plácido de Castro: excertos históricos. Brasília: Senado Federal, 2005. pp. 174-184. (Edições do Senado Federal; v. 56)