Entre os seringais

Revista Kosmos, ano 3, nº 1, janeiro de 1906

croqui de um seringal acreano por Euclides da Cunha
Croqui de um seringal acreano por Euclides da Cunha, elaborado em 1905 a partir das informações fornecidas por Plácido de Castro, durante sua viagem de exploração ao Alto Purus. Mapoteca do Itamaraty

A abertura de um seringal, no Purus, é tarefa inacessível ao mais solerte agrimensor, tão caprichosa e vária é a diabólica geometria requerida pela divisão dos diferentes lotes. De feito, relegado a um minimum extraordinário o valor próprio da terra, ante a valia exclusiva da árvore, ali se engenhou uma original medida agrária, a “estrada”, que por si só resume os mais variados aspectos da sociedade nova, à ventura abarracada à margem daqueles grandes rios.

A unidade não é o metro — é a seringueira; e como em geral 100 árvores, desigualmente intervaladas, constituem uma “estrada”, compreendem-se para logo todas as disparidades de forma e dimensões do singularíssimo padrão que é, não obstante, o único afeiçoado à natureza dos trabalhos.

Não há gizar-se um outro. Perdido na mata exuberante e farta, com o intento exclusivo de explorar a hevea apetecida, o seringueiro compreende, de pronto, que a sua atividade se debaterá inútil na inextricável trama das folhagens, se não vingar norteá-la em roteiros seguros, normalizando-lhe o esforço e ritmando-lhe o trabalho tão aparentemente desordenado e rude. É-lhe, ademais, indispensável que os seus numerosos camaradas, fregueses ou aviados, destinados a agirem isoladamente, não se embaralhem, às tontas, iludidos pelos desvios da floresta.

As “estradas” resolvem a questão. Mas o seu traçado é, de si mesmo, o primeiro problema imposto a quem quer que intente abrir um sítio de borracha.

Assim é que, erguida rapidamente a primeira vivenda do barracão, sempre à beira do rio principal, na barranca de uma terra firme a cavaleiro das águas — e feito um reconhecimento preliminar do latifúndio que o rodeia, o sitiante procura um sertanista experimentado a quem confia o encargo de dividir- lhe e avaliar-lhe a fazenda.

E o mateiro lança-se sem bússola no dédalo das galhadas, com a segurança de um instinto topográfico surpreendente e raro. Percorre em todos os sentidos o trecho de selva a explorar; nota-lhe os acidentes; apreende-lhe a fisiografia complexa, que vai dos igapós alagados aos firmes sobranceiros às enchentes; traça-lhe os varadores futuros; avalia-lhe rigorosamente, as “estradas”; e vai no mesmo lance, sem que lhe seja mister traduzir complicadas cadernetas, escolhendo à beira dos igarapés todos os pontos em que deverão erigir-se as pequenas barracas dos trabalhadores.

Feito este exame geral, apela para dois auxiliares indispensáveis — o toqueiro e o piqueiro; e erguendo num daqueles pontos predeterminados, com as longas palmas da jarina, um papiri, onde se abriguem transitoriamente, metem mãos à empreitada.

O processo é invariável. Segue o mateiro e assinala o primeiro pé de seringa, que se lhe antolha ao sair do papiri. É a boca da estrada. Aí se lhe reúnem o toqueiro e o piqueiro — prosseguindo depois, isolado, o mateiro até encontrar a segunda árvore, de ordinário pouco distante, a uris cinqüenta metros. Avisa então com um grito particular, ao toqueiro, que parte a alcançá-lo junto da nova madeira, enquanto o piqueiro, acompanhando-o mais de passo, vai tirando a facão a picada, que prefigura a “estrada”. O toqueiro auxilia-o por algum tempo, abrindo por sua vez um pique para o seu lado, enquanto um outro grito do mateiro não o chame a reconhecer a terceira árvore; e assim em seguida até ao ponto mais distante, a volta da estrada. Daí, agindo do mesmo modo, retrogradando por outros desvios, vão de seringueira em seringueira, fechando a curva irregularíssima que termina no ponto de partida.

Ultima-se o serviço, que dura ordinariamente três dias, ficando a “estrada” em pique. Partindo do mesmo lugar, e adstritos ao mesmo sistema, abrem noutro rumo uma segunda estrada; e tantas, ao cabo, quantas comporte a natureza da floresta circundante, centralizadas todas pela mesma boca, junto do tejupar que localiza uma barraca. Busca então o mateiro um outro lugar, inteligentemente escolhido, e reproduz a mesma operação, até que, estradado todo o terreno, fique completamente repartido o seringal, como o revela este esboço, onde, presas pelos varadores ao barracão erguido à beira do rio, se vêem as barracas e as estradas que as envolvem, contorcidas à maneira de tentáculos de um polvo desmesurado. E a imagem monstruosa e expressiva da sociedade torturada que moureja naquelas paragens. O cearense aventuroso ali chega numa desapoderada ansiedade de fortuna; e depois de uma breve aprendizagem em que passa de brabo a manso, consoante a gíria dos seringais (o que significa o passar das miragens que o estonteavam para a apatia de um vencido ante a realidade inexorável), ergue a cabana de paxiúba à ourela mal destocada de um igarapé pinturesco, ou mais para o centro numa clareira que a mata ameaçadora constringe, e longe do barracão senhoril, onde o seringueiro opulento estadeia o parasitismo farto, pressente que nunca mais se livrará da estrada que o enlaça, e que ele vai pisar durante a vida inteira, indo e vindo, a girar estonteadamente no monstruoso círculo vicioso da sua faina fatigante e estéril.

A pieuvre assombradora tem, como a sua miniatura pelágica, uma boca insaciável servida de numerosas voltas constritoras; e só o larga quando, extintas todas as ilusões, esfolhadas uma a uma todas as esperanças, queda-se-lhe um dia, inerte, num daqueles tentáculos, o corpo repugnante de um esmaleitado, caindo no absoluto abandono.

Considerai a disposição das “estradas”.

É o diagrama da sociedade nos seringais, caracterizando-lhe um dos mais funestos atributos, o da dispersão obrigatória.

O homem é um solitário. Mesmo no Acre, onde a densidade maior das seringueiras permite a abertura de 16 estradas numa légua quadrada, toda esta vastíssima área é folgadamente explorada por oito pessoas apenas. Daí os desmarcados latifúndios, onde se nota, malgrado a permanência de uma exploração agitada, grandes desolamentos de deserto…

Um seringal médio de 300 estradas corresponde a cerca de vinte léguas quadradas; e toda essa província anônima comportará, no máximo, o esforço de 150 trabalhadores.

Ora, esta circunstância, este afrouxamento das atividades distendidas numa faina dispersiva, a par de outras anomalias, que mais adiante revelaremos, contribui sobremaneira para o estacionamento da sociedade que ali se agita no afogado das espessuras, esterilmente — sem destino, e sem tradições e sem esperanças —, num avançar ilusório em que volve monotonamente ao ponto de partida, como as “estradas” tristonhas dos seringais…

Rio — 1906

Como citar
CUNHA, Euclides da. Entre os seringais. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Crônicas. São Paulo, 2021. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/cronicas/entre-os-seringais. Acesso em: [data]. Publicado originalmente em: CUNHA, Euclides da. Revista Kosmos, ano 3, nº 1, Rio de Janeiro, jan. 1906. n.p.
Ver também
CASTRO, Plácido de. Indústrias: Indústria Extractiva. In: Castro, Genesco de. O Estado independente do Acre e J. Plácido de Castro: excertos históricos. Brasília: Senado Federal, 2005. pp. 174-184. (Edições do Senado Federal; v. 56)