Em viagem

O Democrata, Rio de Janeiro, 4 de abril de 1884

Meus colegas:

Escrevo-os às pressas, desordenadamente…

Guiam-me a pena as impressões fugitivas das multicores e variegadas telas de uma natureza esplêndida que o tramway me deixa presenciar de relance quase.

É majestoso o que nos rodeia — no seio dos espaços palpita coruscante o grande motor da vida; envolta na clâmide cintilante do dia, a natureza ergue-se brilhante e sonora numa expansão sublime de canções, auroras e perfumes… A primavera cinge, no seio azul da mata, um colar de flores e o sol oblíquo, cálido, num beijo ígneo, acende na fronte granítica das cordilheiras uma auréola de lampejos… por toda a parte a vida…; contudo uma ideia triste nubla-me este quadro grandioso — lançando para a frente o olhar, avisto ali, curva sinistra, entre o claro azul da floresta, a linha da locomotiva, como uma ruga fatal na fronte da natureza…

Uma ruga, sim!… Ah! Tachem-me muito embora de antiprogressista e anticivilizador; mas clamarei sempre e sempre: — o progresso envelhece a natureza, cada linha do trem de ferro é uma ruga e longe não vem o tempo em que ela, sem seiva, minada, morrerá! E a humanidade, não será dos céus que há de partir o grande “Basta” (botem b grande) que ponha fim a essa comédia lacrimosa a que chamam vida; mas sim de Londres; não finar-se-á o mundo ao rolar a última lágrima e sim ao queimar-se o último pedaço de carvão de pedra…

Tudo isto me revolta, me revolta vendo a cidade dominar a floresta, a sarjeta dominar a flor!

Mas… eis-me enredado em digressões inúteis… Basta de “filosofias”!…

O meu cargo de correspondente (?) ordena-me que escreva, de modo a fazer rir (!)… ter espírito!… Ter espírito! eis o meu impossível: trago in mente (deixem passar o latim) o ser mais desenxabido que uma missa (perdoai-me, ó padres!)…

Como citar
CUNHA, Euclides da. Em viagem (Folhetim). In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Crônicas. São Paulo, 2021. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/cronicas/em-viagem/. Acesso em: [data]. Publicado originalmente em O Democrata, Rio de Janeiro, 4 abr. 1884. Transcrito de: CUNHA, Euclides da. Obra completa. Fragmentos e relíquias. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1. p. 804.