Divagando

Democracia, Rio de Janeiro, 12 de abril de 1890

Não temos como início de uma reação religiosa a lírica tonalidade que reveste os períodos do Brasil, órgão da imprensa católica.

A estafada retórica dos púlpitos como que mais mirrada se torna sob a pressão dos prelos e não vimos em seus períodos, eivados de um estéril misticismo, de pontos de admiração, o fulgor de uma ideia capaz de constituir-se núcleo de uma arregimentação de forças.

Seria verdadeiramente lamentável agora — emergindo entre graves problemas sociais — esse conflito de crenças, de uma ordem mais elevada e mais séria.

Por mais deplorável, porém, que seja a ação dissolvente do clericalismo, o mais enérgico agente, nos tempos de hoje, da dispersão dos sentimentos e das ideias, podemos permanecer tranquilos.

Mudados os tempos, a seita que prestou à humanidade o indireto favor de arduamente prová-la — criando o tumulto e os sombrios anos da Idade Média, sente que não mais terá, inerme a suas explorações, o sentimentalismo das sociedades.

Fitando na história a marcha maravilhosa do espírito humano, vemo-lo cada vez maior, à proporção que despe as velhas fantasmagorias teológicas, e, através do desmoronamento secular das crenças, persistem unicamente, inabaláveis — como pontos determinantes de sua trajetória ideal — as leis positivas da ciência.

A consciência moderna, sintetiza o mais precioso legado de dois mil anos de um árduo e contínuo esforço e os que tentam adquiri-la podem permanecer impassíveis, ante os esforços mínimos dos que por aí realizam, jogralmente, a triste legenda de Sísifo, tentando sobrepor-lhe à deslumbrante altitude essas velhíssimas ficções, que se caracterizam como uma imensa difusão da mitologia na história…

Pode continuar, pois, o Brasil.

Ainda quando todo o fervor religioso dos crentes, incutisse em alguém a fortaleza e a magnífica valentia de um Louis Veuillot, o desassombrado paladino da Igreja, não se deviam perturbar os que ora se dedicam às questões mais próximas e mais sérias.

Uma outra orientação lhe determina os passos e entre as grandes esperanças que alentam-nos, anteveem — no futuro — o espetáculo feliz das sacristias e das prisões — desertas…

*

Em apoio ao que deixamos dito, registremos o fato mais preeminente desta semana.

Com a publicação do decreto reorganizando as escolas miliares evidenciou-se que, pela primeira vez, o ensino oficial obedeceu à orientação vigorosa da filosofia positiva.

Não era possível avançar melhor para o futuro.

Impondo-se às inteligências a austera disciplina do mais elevado preceito de educação, compreendemos que afinal se constituam entre nós — mentalidades aptas à mais perfeita reflexão do mundo e da vida.

O curso geral de ciências destas escolas devia ter uma sede mais ampla — constituindo o de todas as outras; eximir-nos-íamos assim ao triste quadro das nossas Academias de direito, aonde estuda-se a sociedade sem as noções das mais simples leis naturais, como se ela surgisse ilogicamente no mundo e através da biologia, e consequentemente de todas as demais ciências inferiores, a sociologia não se prendesse à natureza inteira.

Toda essa nossa insciência togada, toda essa gabolice de corda e capelo, a quem se entrega a Justiça, compreenderia então quão relativa é ela e os infinitos liames que a fixam às complicadíssimas condições do meio.

A engenharia, a medicina e a jurisprudência constituem especialidades, devem, pois, se apoiar numa educação filosófica uniforme, que as fortalece e desenvolve.

Demais, o que sobretudo nobilita a atividade humana é o elevado princípio — uma verdade antiga enunciada por Aristóteles — que subordina à convergência dos esforços a máxima diversidade de ofícios — não seria, pois, respeitar o pensamento do incomparável filósofo, o fazer imperar sobre as mais diversas profissões, o critério uniforme de consciências formadas à luz dos mesmos princípios?…

*

Fossem assim as coisas e, pela segunda vez, não nos veríamos nesta penível situação de cronista desalentado pela própria insignificância do que acontece. Entretanto atravessamos uma fase altamente própria aos grandes acontecimentos; banhadas na caudal das mais fulgurantes ideias, poderiam surgir por aí os homens e os fatos — resplandecentes e grandes.

Mergulhássemos entretanto — agora — no nosso meio a pena miraculosa de Wolf, e ela não arrancaria uma ideia, por mais pobre, que caracterizasse uma feição qualquer do que existe.

Como escrever em rendilhados de estilo as velharias banais que por aí fervilham?

Fixemos rapidamente a semana.

Inicia-a o falecimento de um moço ilustre — para que rememorá-lo?

Sucedem-se as prisões de um homem sumamente desregrado e de três rapazes de três vítimas altamente simpáticas, de suas próprias paixões mal-orientadas — para que discuti-las?

Será que devêssemos também explorar o engano, o desastrado engano de revisão do Jornal ou que, como toda a gente comentássemos a provável ascensão, amanhã, do sr. Castro Soromenho substituindo a encantadora e correta Miss alma a fim de — num originalíssimo renascimento da mitologia — patentear-nos o espetáculo singular de um titã de bigode encerado e sapatinhos de entrada baixa, a escalar o Olimpo?

Não, decididamente.

Façamos antes, ponto; e que a Divina Providência, a nossa antiga protetora e que tudo entre nós tem feito, se compraza em dar-nos dias melhores e mais interessantes…

Euclides da Cunha

Democracia, Rio de Janeiro, 26 de abril de 1890

II

Incompreendida e a todo o instante circulada pela jogralice insultuosa da imbecilidade triunfante, há no nosso meio uma minoria robusta, um pequeno grupo — unido e forte, que pela magnífica altitude é como que a miniatura da sociedade ideal do futuro.

De há muito concorriam para que se formasse em torno dela a mais alta veneração, os melhores elementos. De um lado, toda nossa mocidade revigorada pela ação tonificante de novas ideias, novos princípios formados sob a disciplina inflexível da ciência — de outro, o humorismo banal da nossa antiga garotagem literária, ignorante e inconsciente, circundando-a dessa troça pesada de palhaços pagos, que revolta e entristece.

Calma, tendo ante a insciência o estoicismo inquebrantável dos que têm como uma árdua e nobre missão o que para muita gente é simplesmente —a vida, ela se eleva no entanto, cada vez mais — indestrutível, como a molécula integrante em torno da qual se realizará forçosamente, irradiando as eternas cintilações das grandes ideias, a cristalização do caráter de nosso povo.

Pequena embora — realizou já em nosso século duas imensas ressurreições históricas: reabilitou ante a humanidade a alma majestosa de Danton e acaba de alevantar os ombros do povo — imaculada e altiva, a figura gloriosa de Tiradentes.

O chefe da escola positiva, decorando o seu calendário imortal com o nome do audacioso chefe da montanha, foi admiravelmente seguido pelos que melhor souberam, nas festas desta semana, elevar os sentimentos à máxima veneração, ante o indomável revolucionário da Inconfidência.

Sejamos francos; observamos de perto a procissão cívica em honra do heroi; sequer a nota a mais insignificante de um entusiasmo sincero; por toda parte, a massa popular, acumulada nas ruas, regurgitando os cafés, bocejava esse velho indiferentismo, esse tristíssimo desamor às suas mais sagradas tradições, esse miserável legado da subserviência dos tempos coloniais.

Toda essa indiferença, porém, teve o inestimável valor de realçar a magnífica postura dos positivistas brasileiros.

Unicamente eles, digamo-lo sem rebuços, souberam dar a nota altíssima de uma veneração imensa à consagração dessa memória ilustre; e ainda bem que, nos alenta a esperança de que eles são para nós os mais próximos representantes da posteridade e seus passos humildes e obscuros agora, orientarão mais tarde, em homenagem ao nosso grande mártir, as grandes romarias das gerações do futuro…

*

Afinal, extinta de todo parece a assustadora celeuma levantada em torno da delicadíssima questão do ensino.

Alheios à luta, observamo-la atentamente.

Que triste decepção!…

Por uma espécie singular de endosmose, a obscuridade dos claustros parece haver penetrado os cérebros dos ascetas, que por aí nos apedrejam inconscientemente.

A altitude mesma das ideias, dessas que traduzem o zênite da mentalidade moderna e, como as luzes meridianas iluminam sem a produção da sombra, definem-nos as posições mais límpidas e mais francas.

Os que as alevantam, procuram difundi-las no imenso seio da pátria certos de que produzirão, movimentando as consciências, o mesmo efeito salutar que na ordem física realizam as correntes marítimas sobre o clima dos continentes.

No entanto, que desastrada reação produziram.

A deplorável inconsistência das fantasmagorias litúrgicas enfraqueceu-lhes a percussão poderosa e firme, transformou-a — e reagindo a seus esforços existe somente esse tumultuar de velhas paixões mal-educadas, todo esse irritante vociferar do despeito clerical.

Alimentando a esperança infeliz de pear aos erros seculares, às vãs quimeras do passado, a mocidade inteira, toda esta legião de levitas exasperados, tartamudeando um argumentar confuso e estéril esgotou o mais áspero vocabulário sobre os que aspiram a formação dos caracteres subordinada ao único sistema filosófico que sintetiza as verdades da ciência…

Arme-se alguém de coragem e leia a imprensa católica.

Verá de toda ela transudar a despiedada intenção dos que se dedicam a criminosa tarefa da imposição de crenças; dos que sobrecarregam com essa imensa ideia de Deus — ante a qual vacilam os mais robustos pensadores — os pequeninos cérebros que ainda não sabem pensar.

E nessa faina ingrata, emocionados, nem podem avaliar o valor negativo de seus esforços…

De fato — parece-nos que não há vacilar entre eles e os que sem afirmação ou negação da existência de um legislador supremo do universo, têm-na contudo tão elevada, que só compreendemo-na objeto de estudo, numa época extremamente remota, quando o pensamento humano conseguir um dia, abranger — através da mais extraordinária síntese — a natureza inteira…

Há, pois, uma separação fundamental, entre os que há dois mil anos fazem continuadamente descer à terra o seu Deus e os que encaram-no através de um majestoso ideal, para o qual há dois mil anos fazem subir — a humanidade.

Estes, são de fato os dominadores do presente e sê-lo-ão do futuro — pois que este é sobretudo um desdobramento da juventude de hoje, entregue felizmente, agora, à consciência mais elevada e mais pura deste país…

*

Isolando os dois únicos acontecimentos a que acima nos referimos: a apoteose de Tiradentes e a elevação do dr. Benjamin Constant ao cargo de ministro da Instrução Pública, a semana animou-se unicamente pelos mais estranhos boatos.

A prisão do sr. Henrique de Carvalho, à qual não é possível aplicar a mais breve discussão, tão impenetrável é o sigilo que a circunda, e uma modificação ministerial — foram as fontes aonde a imaginação de muitos auriu as mais extravagantes conjecturas.

[…]

Apontaram-se para ela coisas de tal natureza, que sua realização traduziria o mais triste escândalo, a mais desastrosa queda de uma individualidade que, bem ou mal constituída, erige-se em perto de trinta anos de lutas, muitas das quais brilhantíssimas.

O desolado estribilho com que o indomável polemista do Globo, em 1879, acompanhou a queda do gabinete Cotegipe, se aplicaria então admiravelmente ao ministro das Relações Exteriores da República…

Ainda bem, porém, que nos fosse afastada mais esta dolorosa mágoa e possamos filiá-la a essa singularíssima e covarde conspiração de cochichos, inerente aos estados anormais das sociedades, como a nossa, frágeis e ignorantes.

Democracia, Rio de Janeiro, 24 de abril de 1890

III

Felizes os que podem, através das agitações do meio, através da existência que parece a todo o instante emergir da reação contínua dos contrastes, prolongar brilhantíssima, a orientação retilínea da consciência.

Têm ante as vicissitudes a imobilidade sobranceira de Glauco envolto pelo fervor das ondas impetuosas e repelindo muitas vezes os homens, para se aproximarem melhor da humanidade, embora se lhes entenebreça em torno a vida, resta-lhes a claridade imperecível dos ideais — irradiando sobre os reveses, como sobre o tumulto e a sombra das procelas o tranquilo deslumbramento das constelações.

Nada os faz vacilar, não titubeiam, não caem; a lei newtoniana parece estender-se também às reações maravilhosas dos seus temperamentos; reanimam-se ante a iminência do perigo e a iminência da derrota quase sempre lhes é o elemento mais poderoso da vitória.

Conhecem, sabem e comprova-o um ligeiro olhar à história — que todo o progresso, toda evolução humana se traduz afinal como o resultado da ação ativa das minorias ousadas e inteligentes sobre as grandes massas passivas ignorantes.

E agrada-lhes o isolamento, bastando-lhes para todo o encanto da vida, circundá-la com o fulgor de uma ideia.

Sugere-nos estas breves considerações a sobranceira calma dos positivistas brasileiros antes os esgares truanescos — com que ainda esta semana — os envolveu a triste imbecilidade dos que entre nós, diuturnamente escandalizam o indivíduo moderno, com uma celeração e afetividade rudimentaríssima de pitecoides bravios.

Sem a mínima suspeição, desapaixonadamente — pois que do grandioso sistema do maior filósofo deste século, aceitamos unicamente a classificação científica, indispensável ao nosso tirocínio acadêmico — assistimos à desprezível guerrilha da chacota proterva e morificante, estabelecida em torno dos que em meio da anarquia atual realizam este milagre: têm uma convicção.

Assistimo-la e entristecemo-nos.

Para que ostentar-se gratuitamente semelhante atentado de decrepitude moral?

Por que razão os que tem a invasão triunfante dos novos princípios, não os combatem, nobilitando-se, pelo apelo constante, à energia inexaurível das ideias?

Certamente os que seguem sem transigir os preceitos do grande gênio da Síntese subjetiva, não podem ser distraídos pela minudência de uma controvérsia, que tenderá unicamente a desviá-los da mais nobre das propagandas. Nós, porém, começamos apenas a construção ideal de nosso espírito, somente mais tarde conseguiremos, pela síntese de conhecimentos adquiridos, alistarmo-nos em um sistema filosófico; atravessamos, pois, uma fase ativíssima de inquirição constante à vida universal e cabe admiravelmente nos limites da nossa ação o reagir desassombradamente à brutalidade do ataque, com que meia dúzia de literatos, ávidos de escândalo e ávidos de renome — iniciam a oposição aos únicos que na sociedade brasileira sabem pensar e sabem sentir.

*

Repitamo-los, pois, revolucionários, a luta será perfeitamente igual, tendo talvez a vantagem altamente moralizadora de obrigá-los a uma posição mais séria.

A propósito do 5º aniversário do prodigioso sonhador das Orientais, expandiram-se as mais desencontradas opiniões.

Uns fizeram-no um Deus, outros um rimador vulgar.

A verdade, porém, é que não assiste a mínima razão a estas opiniões extremadas.

Por isso mesmo que o temperamento apaixonadíssimo do heroico panfletário do Napoléon le Petit eximia-o à consideração cuidadosa e constante do meio em que agia, a sua ação sobre ele, podemo-lo afirmar, foi insignificantíssima.

Está muito longe de ser a primeira individualidade de seu século.

Nessa maravilhosa concorrência à imortalidade antepõem-se-lhe, vitoriosos, os mais brilhantes competidores.

Enquanto os mais alevantados problemas, as mais trabalhosas questões, estimuladas pelas exigências crescentes da civilização, iluminavam amplamente as cabeças geniais de Comte, Huxley, Haeckel, Darwin e Spencer, o desterrado de Jersey expandia todo o seu imenso sentimentalismo, ou o lirismo arrebatador da sua imensa nevrose revolucionária.

Sonhador e artista — artista como os que ainda hoje dedicam-se a essas feições supremas da arte, com íntima ignorância do salutar conselho de Herbert Spencer — que as as subordina a uma sólida educação científica — a sua grande alma era impotente para refletir, completas e fulgurantes, as manifestações da vida.

Entretanto tido nos leva a acreditar que revigorado pela disciplina férrea da ciência ela imprimir-se-á de modo mais brilhante ao século que o viu nascer.

Ainda hoje — e esta consideração pode estender-se ao futuro, constitui elevado título à veneração da posteridade, para Goethe, mais do que a auréola de poeta, o ter sido o companheiro de Lamarck, em suas laboriosas investigações acerca da organização geral da vida, trabalhos dos quais deveria mais tarde, surgir, irrefutável, triunfante — o darwinismo.

O sonhador francês, porém, nunca se demorou ante a contemplação aprofundada da natureza; fitou-a através de sua fantasia caprichosa; tentou amoldá-la às extravagâncias, muitas das quais brilhantíssimas, da sua imaginação irrequieta e os resultados de tudo isto foram os aplausos efêmeros que o circundaram e a aparição dessa espécie notável de adeptos, admiradores, que combatem-no e adoram-no, que como de Amicis apedrejam-no… ajoelhados.

É no entanto, apesar disto, impossível negar-lhe a altitude.

Para engrandecê-lo basta-lhe a grandeza do próprio coração tantas e tantas vezes aberto à dor universal.

Democracia, Rio de Janeiro, 2 de junho de 1890

IV

Fundou-se esta semana o partido católico e alentados pelas magias da fé, encerraram os crentes a sessão inaugural, colocando-se sob a égide da infalibilidade papal.

Se sobre os destinos da seita cristã imperasse a cabeça olímpica de Gregório VII, a bênção implorada não viria, descendo do sólio pontificial, enrijar as almas dos que assim se agremiam, aprestando-se para a luta.

O sombrio rival de Henrique IV, que abalava com um gesto os velhos tronos medievais e determinou a altitude máxima a que poderia atingir a hegemonia de Roma, veria unicamente em tudo isto, o mais franco sintoma de decadência religiosa.

De fato — o que denotam os que arrebatando à religião do Cristo a sua feição suavíssima e profundamente humana, inscrevem-na às agitações, à anarquia dissolvente das facções partidárias?

Descreram de seu império real sobre a sociedade; sentem-na ruir ante o embate dos que se alevantam — rígidos e invencíveis — porque sabem identificar às leis inflexíveis das ciências as mais ousadas expansões do ideal — e para que ela não caia, para que de todo não se extinga, supondo dar-lhe em força o que perde em altitude, restringem o campo da sua ação, transformam-na em um partido que irá, amanhã, às urnas, que pleiteará eleições e que bater-se-á, é inevitável isto, nas guerrilhas deprimentes da cabala…

Profundamente contristador, tudo isto.

Guardamos pela figura lendária do sonhador nazareno a veneração, o amor inextinguível que temos pelas utopias extintas, companheiras das horas despreocupadas da mocidade e forçadas a perecer mais tarde, dissolvidas no fulgor da própria consciência, mais sólida e racionalmente constituída.

Se, prematuramente, não nos inclinássemos — através da experiência e da observação — a fixar a feição positiva da vida, inquirindo-a instantemente com a linguagem eterna das leis naturais, é bem possível que acreditássemos ainda ter — majestosa — sobre o misérrimo átomo da nossa individualidade, a mesma mão que alevanta, no seio do infinito, os mundos…

E se assim fosse, que triste desilusão agora! Para nós a religião — afastando-a dos domínios da moral e encarando-a sociologicamente — é o elemento mais vigoroso da solidariedade humana. Nas épocas anormais sobretudo, somente ela pode eficazmente reagir à desagregação fatal das ideias e dos sentimentos, constituindo-se o centro de atração de toda a imensa afetividade dos povos.

Particularizando à religião cristã esta proposição geral — vemo-la através da história, como um dos melhores transmissores dos trabalhos das gerações extintas — embora entenebrecesse a Idade Média com o sombrio cenário da Inquisição; sacrificasse a Itália à sanha insaciável dos guelfos, mortificando em seu seio o seu melhor poeta, escandalizasse o sentimento humano com o quadro das Saint-Barthélemys; embora os seus mais divinizados luminares se alevantassem nos púlpitos, vibrantes de rancor, explodindo a selvagem eloquência do extermínio — como para citar somente um exemplo, o bispo Bossnet, fazendo a apologia das dragonadas!

Apesar do seu conflito secular com a ciência, todas as vezes que esta aniilava ante a verdade indiscutível de uma lei natural, uma ficção qualquer da Bíblia e amargurasse a alma brilhantíssima de Galileu, a fim de encobrir a velha mentira de que se revestiam as problemáticas façanhas de um caudilho judeu; apesar de escandalizar, deprimir assustadoramente o gênero humano, a lei natural de hereditariedade determinou-lhe muitas vezes a ação, e é forçoso confessar, que algumas vezes ela estabeleceu a ressurreição das crenças, salvando-as aos grandes cataclismos da história.

E a razão disto estava na máxima generalização de seu objetivo.

Tendia à conquista grandiosa das almas. Eivada de absurdos embora, odiosa muitas vezes, falsíssima sempre — o que é certo é isto — nunca enfraqueceu-se, diferenciando-se nas estreitezas das dissenções partidárias.

E parece ter sido esta a preocupação capital dos seus chefes. Desde o pontífice mais nobre — e não sabemos qual seja — até Alexandre VI, o Bórgia sombrio, o sombrio incestuoso.

As ordens constituídas irradiavam sobre o mundo, disseminavam-se através dos partidos e das castas — agitando os dogmas da fé e realizando a harmonia das crenças por sobre as mais radicais cisões partidárias.

O que querem agora os corifeus do catolicismo?

O contrário, diametralmente.

Reduziram-no a uma partida, restringiram-no supondo talvez provir disto uma condensação de forças? quando, pelo contrário, pearam-no desastradamente às oscilações de uma sociedade em desequilíbrio e que reconstrói-se sob a dinâmica valente das ideias.

Não é lícito pois duvidar do destino que o aguarda.

Subordinado fatalmente à lei inflexível da concorrência vital, que orienta não só o vasto desenvolvimento da vida objetiva, como a marcha iluminada das ideias — aliá-lo assim, diretamente, às ações do meio, equivale a condená-lo a perecer.

O partido ultimamente criado é uma molécula destacada do catolicismo brasileiro: primeiro sinal de desagregação.

Amanhã, a febre altíssima das paixões políticas abrirá dentro desse partido as primeiras cisões: — sinal infalível — de decomposição.

E a velha religião de nossos pais, que tem lentamente descido, à proporção que sobe a consciência humana — acelerará a desastrosa descensão.

Cairá.

*

Foi, afinal, este o fato capital da semana.

Nem parece que constituímos uma sociedade esforçando-se para adaptar-se a novas condições de existência.

Desconfiamos que dos agentes da evolução geral ela participa unicamente da hereditariedade — atualmente calaminosa — pois prolonga desastradamente aos dias da República, toda a velha insciência, a marasmática atonia e o tradicional desalento, de que por tanto tempo pejaram-se os ronceiros anos do Império. Não há por aí um sintoma sequer de vitalidade — enérgico, brilhante e fecundo…

Diante de tudo isto, o que há de fazer um obscuríssimo estudante de matemática, um exíguo Lagrange mirim, estonteado no dédalo intrincado dos dy, embaraçado nas sinuosas aspérrimas das integrais?

Cruzar os braços e deixar que indiferente bata-lhe no peito, isocronamente, o coração — com a monotonia e a insensibilidade material de um pêndulo…

Terminemos despedindo-nos de Aníbal Cardoso.

O moço ilustre, que ontem seguiu em demanda do Velho Mundo, pode ser qualificado como o ministro plenipotenciário da honra e do espírito de um povo, junto à civilização europeia.

Não exageramos.

Acordarão nisto todos os que conheceram de perto e viram-no, lentamente, heroicamente, construir a própria individualidade — por um contínuo apelo à própria energia.

Restrinjamo-nos a estas ligeiras linhas, a fim de salvarmo-nos a posição incômoda do elegio merecido e tendo talvez o altíssimo valor de não ser lido nunca.

Como citar
CUNHA, Euclides da. Divagando. EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Crônicas. São Paulo, 2021. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/cronicas/divagando. Acesso em: [data]. Reprod. de CUNHA, Euclides da. Obra completa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1. pp. 721-2. Publicado originalmente em Democracia, Rio de Janeiro, 12, 26, 24 e 2 jun. 1890.