Dia a Dia

Artigos (em ordem cronológica)

O Estado de S. Paulo, 29 de março de 1892
O Estado de S. Paulo, 31 de março de 1892
O Estado de S. Paulo, 1º de abril de 1892
O Estado de S. Paulo, 2 abr. 1892
O Estado de S. Paulo, 3 abr. 1892
O Estado de S. Paulo, 5 abr. 1892
O Estado de S. Paulo, 6 abr. 1892
O Estado de S. Paulo, 7 abr. 1892
O Estado de S. Paulo, 8 abr. 1892
O Estado de S. Paulo, 10 abr. 1892
O Estado de S. Paulo, 13 abr. 1892
Cristo, O Estado de S. Paulo, 14 abr. 1892. Publicado anteriormente em Revista da Família Acadêmica, Rio de Janeiro, n. 9, jul. 1888
O Estado de S. Paulo, 17 abr. 1892
O Estado de S. Paulo, 20 abr. 1892
O Estado de S. Paulo, 24 abr. 1892
O Estado de S. Paulo, 27 abr. 1892
O Estado de S. Paulo, 1º de maio de 1892
O Estado de S. Paulo, 8 maio 1892
O Estado de S. Paulo, 11 maio 1892
O Estado de S. Paulo, 15 maio 1892
O Estado de S. Paulo, 18 maio 1892
O Estado de S. Paulo, 22 maio 1892
Instituto Politécnico, O Estado de S. Paulo, 24 maio 1892
Instituto Politécnico, O Estado de S. Paulo, 1º jun. 1892
O Estado de S. Paulo, 5 jun. 1892
O Estado de S. Paulo, 12 jun. 1892
O Estado de S. Paulo, 19 jun. 1892
O Estado de S. Paulo, 22 jun. 1892
O Estado de S. Paulo, 29 jun. 1892
O Estado de S. Paulo, 3 jul. 1892
O Estado de S. Paulo, 6 jul. 1892

O Estado de S. Paulo, 29 de março de 1892


A propósito da brutalidade de um iconoclasta qualquer, que num ímpeto de revolta inconsciente quebrou a imagem do Cristo no júri da Capital Federal, alarmou-se certa parte da imprensa e, de um fato relativamente insignificante — e de todo subordinado à polícia. No caso atual porém, desta violação vulgar do bom-senso, retamente a uma doutrina que estabelece o amor como o princípio de todas as ações e define todo o progresso humano — como um vasto desdobramento da ordem.Não é a primeira vez que se generalizam tão tristemente fatos que à luz do critério mais rudimentar não têm a mínima importância. No caso atual, porém, além desta violação vulgar do bom-senso, há uma afronta à justiça. É quase um atentado atribuir-se ao positivismo tão tristes desmandos. Falamos desapaixonadamente; embora em nosso tirocínio acadêmico nos subordinássemos ao método filosófico do eminente instituidor da Síntese subjetiva, o mais admirável livro do século XIX, e o veneremos como o maior dos mestres; embora reconheçamos na doutrina positiva sólidos elementos para constituir-se a religião do futuro e estejamos certos de que, na grande crise moderna, ela representará papel idêntico ao do Cristianismo na anarquia medieval — não pertencemos à minoria ilustre dos que, com uma abnegação notável, seguem todos os preceitos do novo dogma, através da metafísica dissolvente do nosso meio.As ligeiras noções, porém, que temos dele, bastam para certificarmo-nos de que a sua ação só pode fazer sentir nas consciências em cuja estrutura entrem como elementos os mais nobres princípios.

Baseada no mais amplo conhecimento do mundo e do homem, consorciando indissoluvelmente a religião e a ciência, nobilitando e amplificando admiravelmente a vida individual pelas generosas expansões do altruísmo, a nova doutrina está talvez destinada, no futuro, após uma maior e mais geral ascensão de todos os espíritos, a simbolizar a maior conquista da consciência humana.

Para atingir, porém, esse desideratum, os seus propagandistas seguem num sentido diametralmente oposto àquele que geralmente se acredita. Não exploram as paixões dos inconscientes, nem assalariam os braços dos sicários, antes, se eximem à luta e quando abandonam os retiros da meditação e do estudo, têm nos atos a serenidade magnífica dos justos e dos crentes.

Anima-os a máxima veneração pela feição nobre do passado humano e utilizando-se do imenso capital de fatos e de ideias lentamente acumuladas, pelo trabalho secular das gerações, se dirigem para o futuro, sem que necessitem, no presente, criar as miragens com que a metafísica deslumbra inutilmente a toda a gente, ou levantar as fogueiras com que inutilmente o Catolicismo escandalizou o mundo.

O separar a Igreja e o Estado, a ideia mais genuinamente democrática da nossa Constituição, o esplêndido golpe vibrado na burguesia clerical, que tentava o monopólio criminoso de todas as crenças, — devia certamente satisfazê-lo, por isto mesmo que extinguiu a escravidão oficial do pensamento, e era o complemento necessário da liberdade política. Isto porque os anima um elevado espírito de tolerância que simultaneamente afasta das consciências o predomínio das seitas e faculta a estas o mais livre funcionamento.

De mais, do ponto de vista verdadeiramente filosófico em que estão não intentam rivalidades, tanto que reconhecem a tarefa civilizadora do Cristianismo, salvando através da imensa noite histórica — a Idade Média — os trabalhos das gerações antigas e vêem na metafísica do século XVIII o mais enérgico estimulante da Revolução Francesa.

Além disto a religião positiva — profundamente humana e justa, impõe a veneração para os partidários de todas as crenças, desde que tenham lutado em prol do destino comum e sob este ponto de vista irmana os mais desencontrados caracteres. A simples leitura do seu calendário, aonde cada homem é a síntese de uma época ou de uma sociedade, indica este fato. Entre muitos antagonismos se vêem ali Maomé, São Paulo, Danton e Condorcet — o fatalismo muçulmano, a predestinação bíblica, o delírio revolucionário e a tranquila irradiação do pensamento.

Ela paira sobre os destinos humanos e muito alto demais para exercer, embora indiretamente, qualquer influência nas regiões da sociedade, aonde se geram e de onde se levantam todas as brutalidades e todas as profanações…
 
E.C.

O Estado de S. Paulo, 31 de março de 1892


Um dia pelos meandros da tortuosa política imperial sentiu-se ressoar — magnífica e augusta — a voz de alguém entoando uma sinistra oração fúnebre sobre os esquifes que passavam, em direção às trágicas necrópoles da honra e do civismo.

E nessa sociedade, dizem-me os homens desse tempo, que vivia sob o fatalismo bíblico da divina providência; aonde esta mística abstração dos crentes adquirira uma realidade quase objetiva, guardando a tranquilidade do colosso americano, cuja imensa paz era uma imensa anquilose; na velha sociedade monárquica, que tivera até então, pela própria inconsistência, a propriedade fatal de esterilizar todos os esforços, todos os impulsos dos heróis em prol dos grandes princípios que fazem a honra das nações — começou-se afinal a compreender toda a dolorosa tristeza dessas derrotas morais, em que tudo é perdido, ficando unicamente como um irrisão ou um castigo — a vida.

E fora a palavra vitoriosa de um crente, de um batedor de novos ideais, que, galvanizando-a, lhe estimulara a curiosidade ao menos de presenciar a queda dos homens que eram os mais altos fatores da sua prosperidade.

Recordando o fato, longe está de nós a intenção ou a tarefa de apontarmos idênticos esquifes em demanda das mesmas necrópoles.

Por uma fatalidade, que é a da lei desconhecida e cruel que impõe, no desdobramento da existência social, a véspera tristíssima das crises aos dias de civilização e de glórias — hoje, eles passam por aí em maior número talvez, mais lamentáveis.

Dantes ainda havia uma certa solenidade nesses grandes desastres, e tivemos políticos que se fizeram memoráveis a partir do dia em que rolaram das eminências do poder. Essas grandes quedas abriram largos parêntesis na existência geral e eram largamente comentadas.

Hoje, são uma coisa comum em que ninguém repara. Habituamo-nos a esta singular desdita e não se procura sequer saber qual a sinistra morgue, de onde partem tantos féretros anônimos.

Após o contragolpe de 23 de novembro, a reação triunfante da honra nacional, iniciou-se a trágica degringolade dos que pela traição à fé republicana tiveram logicamente sobre as cabeças o gume da justiça revolucionária.

De um mesmo embate a reação atirara por terra os criminosos e os cúmplices do crime. Alguns dias tentaram a majestade da queda; a maioria porém esvaiu-se silenciosamente na multidão, abroquelada na própria niilidade.

Esses, porém, não entristecem tanto; vitimou-os o próprio erro, a falsa compreensão das ideias que supunham possuir, e resta-lhes ainda a absolvição dos que definem o homem, como um enigma, um conjunto de qualidades disparatadas que vão da suprema fraqueza ao heroísmo romântico.

Às vezes as sociedades, como os planetas, têm os seus pólos antagônicos, e para que um se inunde de luz faz-se indispensável ao outro a imersão na sombra: os homens de 3 de novembro subordinaram-se à fatalidade da própria posição, antagônica à dos que, num esforço épico e formidável, almejavam todo o brilho do ideal republicano.

O que porém entristece e bate e assombra e aniquila a toda a gente é esta coisa incompreensível, a queda dos que nunca subiram, dos que por uma lamentável depressão mental — numa espécie de suicídio psicológico — matam as próprias ideias e nessa perigosa posição de oposicionista — que pode ser brilhante e digna e altamente simpática — se esterilizam inutilmente.

No entanto, era necessário até que do lado oposto ao governo partisse, alevantada e fulgurante, a voz de alguém que soubesse pensar.

Os próprios diretores da política atual têm bastante espírito para não acreditarem que estejamos no melhor dos mundos: — a história das sociedades está cheia dos erros inerentes ao próprio desenvolvimento que surgem ao impulso do próprio engrandecimento, como no fenômeno das interferências luminosas, as raias escuras, do conflito das luzes.

Animada de um poderoso espírito de crítica e de análise, uma oposição robusta pode atingir a perfeição de governar indireta mas eficazmente.

Infelizmente, isto não se dá. Chamam oposição à aglomeração fortuita de alguns indivíduos animados de despeitos comuns.

Não existe uma arregimentação estabelecida à luz de um princípio — tendendo a um objetivo determinado, porém a ação dispersiva de um bárbaro egoísmo a satisfazer.

E nessa luta, em que não existe o apelo constante às consciências, mas a constante exploração da própria vaidade, esgotam-se por aí alguns homens, inutilmente, inconscientes de que a oposição é uma grande escola para o talento e para o caráter.

Não se fixam por uma expansão do pensamento ao meio em que atuam, não o observam, não o estudam; todo o esforço mental que descolam não vai além da observação concreta do que aparece, e enquanto a sociedade se agita por um maior acréscimo de vida, por um acúmulo de novas e indestrutíveis forças, condensada na solidez dos princípios, e através do vasto renascimento da vida nacional, surgem, irradiando para os mais altos destinos, todas as atividades; enquanto tudo isto se dá cada qual compreende que a vida atual, adaptação ao meio republicano, impõe a tarefa duríssima e nobre da elevação constante da existência pessoal; enquanto se opera assim o fato de uma imensa regeneração — eles se extinguem.

É doloroso.
 
E.C.

O Estado de S. Paulo, 1º de abril de 1892


Ainda bem.

Perdem-se distantes, muito ao longe, com o acompanhamento obrigado de uma surdina lacrimalmente hilariante, de ópera cômica, os últimos passos de conspiradores.

Não houve desastre algum a lamentar.

Os bravos revolucionários obedeceram mais uma vez às tradições singulares da nossa demagogia incruenta.

Mais uma vez se patenteou uma notável abnegação, um raríssimo empenho pela integridade da vida.

A inócua burguesia, sentindo exsolvida a sombra do terror, rejubila-se feliz, pelo comentário alegre da jornada.

Engrenam-se outra vez os dentes; ligeiramente deslocados, da máquina social, que segue, inalterável, a indefinida marcha, através da queda e levantamento simultâneo dos homens e das ideias.

Ainda bem, para nós.

Nada pior para o revolucionário do que isto — desmoralizar a revolta.

Ele pode enfrentar a bala; por mais violenta que esta seja, não penetra o aço maravilhoso de um caráter e não se fuzilam as armas; ele pode afogar dentro da cintilação de uma ideia os brilhos das baionetas e até na queda, como Baudin, rolando, do alto da barricada desmantelada, morto — no seio da multidão, e redivivo — na história, na própria queda ele é uma força capaz de ao mesmo tempo se fazer temer e admirar, enquanto puder se eximir à única potência que extingue, inexoravelmente, como o raio, numa fração de segundo — o ridículo.

Nós temos, por índole, uma grande simpatia pelos heróicos rebelados, que vivem dentro de uma vertigem e procuram pela movimentação vigorosa do meio imprimir-lhe a febre da revolta.

Chegamos à República pelas asperezas da propaganda revolucionária. E nestes bons tempos, embora repelíssemos o espetáculo das reações ensanguentadas e compreendêssemos, fitando a grande revolução, como o representante de seus mais nobres destinos o espírito generoso e altíssimo de Vergniaud, preferíamos a trágica hediondez de Marat à feição desfrutável de Anarchasis Clootz; o que fazia chorar, ao que fazia rir a toda gente…

De fato, para os que intentam a conquista da opinião geral, tarefa dificílima e ousada, deve existir a cavaleiro de todas as outras uma preocupação — serem tomados a sério.

Os que assim procedem são precipitados sempre, embora exagerem a ação destruidora — e numa grande perversão do sentimento e do espírito, como os desvairados do Terror, realizem a síntese estranha de formarem com as palavras liberdade; igualdade e fraternidade, os lados do inumano triângulo das guilhotinas…

Tristes, porém, dos revolucionários cujas ações, metrificadas, se subordinem à ligeira toada das partituras alegres.

No entanto o nosso meio atual favorece-os extraordinariamente.

Dantes ainda havia, reagindo pela própria passividade aos que assim lutavam, a pesada sociedade monárquica, sem vida e inerte, crescendo por superposições de camadas, como as pedras. Hoje, iniciamos o apelo à próxima vitalidade e tornamo-nos mais acessíveis e impressionáveis às ideias.

A instabilidade natural em tudo, por uma mudança radical que nos cumulou de maiores direitos e como causa imediata — maiores deveres — é, já, por si mesma, um poderoso auxiliar dos que intentam a tarefa inglória de prolongá-la.

Vemos agora evidenciar-se isto pelo volume exagerado que soem assumir as coisas mais insignificantes. Está na ordem do dia o sacrilégio cometido na Capital Federal — atentado ridículo e repugnante, que em qualquer outra sociedade não sairia da sombra aonde se gerou e que entre nós é filiado ao positivismo e assim lamentavelmente atirado, como um respingo de lama, aos que marcham, muito distantes, na vanguarda do espírito moderno.

Pois que aproveitem e aumentem esta instabilidade; explorem as questões religiosas — delicadíssimas e eivadas de perigos; sacrifiquem às próprias paixões os mais altos interesses; que perturbem e tentem a destruição de tudo o que está feito — e espantem a todo o mundo…

Mas não façam rir ninguém.
 
E.C.

O Estado de S. Paulo, 2 de abril de 1892


Tentando a reabilitação de Maquiavel, Macaulay, seguindo uma direção oposta à de Bacon, não o apresenta como um espírito singular de democrata, golfando no seio do despotismo daqueles tempos a mais dolorosa e a mais delicada ironia. O crítico inglês admite que cada sociedade tem os seus vícios característicos e que a posteridade, o supremo júri das gentes, procede em seu julgamento de uma maneira sumária.

Achando muito numerosos os delinquentes, escolhe alguns deles, ao acaso, e sobre o pobre testa de ferro dos desmandos alheios aplica o veridictum fulminante.

Maquiavel foi escolhido entre os culpados da sociedade de Lourenço de Médicis.

Precisamos, porém, protestar também contra a introdução deste princípio na filosofia da história.

Não tanto pelo muito que entristece e assombra toda gente, o eterno espantalho desses longos martírios, dessas tristíssimas memórias dilaceradas pela pena de todos os críticos, mas porque nos assustamos de antemão, procurando introduzir da observação do nosso meio, o representante infeliz de todos os seus defeitos.

Não pelo que diz respeito a nós, maioria hoje e minoria ontem, que nos batemos pelo Governo com altivez adquirida numa oposição vitoriosamente sustentada, que somos uma uma amplificação do que éramos ontem; e, como os guerreiros antigos, fomos buscar as esporas de cavaleiros nos centros agitados da luta. Nós, dizemo-lo ingenuamente, não podemos, pela reunião ou síntese dos nossos defeitos, fornecer um monstro à História. Seguimos retilineamente até aqui, sem apelo às sinuosas dos desorientados; de um golpe de vista revemos todo o passado e fazemos dele toda a garantia do futuro.

Preocupa-nos, porém, o mártir que enviaram à história pátria, os representantes da feição má da nossa nacionalidade e que no subsolo da República vivem a vida hibernante dos que não têm no cérebro a irradiação fecunda de um ideal.

As repúblicas italianas tiveram a decrepitude precoce dos boêmios que morrem cedo, estiolados nas labaredas das próprias paixões e rimando a própria desgraça. Representa-as ante a posteridade um ente assustador é certo, mas genial e capaz de deslumbrar pelas magias de um grande talento defluindo da suprema maldade. Elas estão todas sintetizadas naquele homem singular e, através do Maquiavel-poeta e do Maquiavel-político, vimo-las desmoronando e grandiosas ainda no próprio aniquilamento.

Qual será porém o trágico bonzo, misto de supremo ridículo e de suprema insânia, capaz de condensar na fisionomia informe o lado condenado da sociedade brasileira deste final de século, destinado ao golpe despiedado da justiça histórica?

A diminuta, a diminutíssima, a exígua minoria dos leais, que acompanharam a dor do Imperador deposto, pode enriquecer as tradições do nosso brio, com a postura heróica do Barão de Ladário.

Os republicanos históricos têm já, na vida inextinguível da história, a alma olímpica de Benjamin Constant ou a memória augusta e puríssima de Silva Jardim.

Os que dirigem hoje a República podem-se definir pela serenidade vingadora do Marechal Floriano Peixoto.

Qual, porém, será o sinistro bufão, alguma coisa que reúna, num consórcio extravagante, a máxima tristeza ao máximo ridículo, a ferocidade e a fraqueza, e insciência e a audácia — qual o representante infeliz que pagará amanhã pelas culpas desses, que intentam, da sombra, o apedrejamento, dos que marcham em plena luz?

Confrange-se o espírito prevendo o espantoso martírio; perturbamo-nos de antemão ante a apresentação dessa fisionomia singular às gerações do futuro.

A nossa época é a nossa pátria no tempo; anima-nos, por ela, um grande amor, desses que escurecem todos os defeitos e todas as maldades; queremo-la o mais possível gloriosa e imaculada, emergindo do batismo de luz da democracia.

É preciso pois — a prevalecer o princípio do pensador inglês —, é preciso que, desde já intentemos a tarefa de obstar que entre na história e escandalize esse amálgama esquisitíssimo de La Palisse Quasímodo.

Que se derrame sobre tudo isto — o silêncio esmagador das ruínas…
 
E.C.

O Estado de S. Paulo, 3 de abril de 1892


Transcrevemos do Livro do exilado, de Edgar Quinet, esta admirável fantasia:
Escutai:

Disse uma fada um dia a um cavaleiro: eu vou fazer-te presentes magníficos. Far-te-ei, primeiro, o que entre nós chamamos um mar de angústias e tu procurarás atravessá-lo, a nado; é provável que te afogues. Suponhamos porém que o atravesses a salvo; eu te farei, ao saíres, um lago de amargores, cem vezes mais perigoso que o primeiro; tu aí te extinguirás infalivelmente. Se, porém, realizando o impossível, tu o atravessares ainda, terás à saída uma legião de gigantes, amigos meus, prestes todos a te abaterem, sob os pesados montantes de ferro. Admitamos ainda que consigas escapar. Neste caso encontrarás um castelo magnífico, uma princesa deslumbrante — a Liberdade.

— Ah! — bradou o cavaleiro — por que não começas por aí, já que podes tudo?

És muito indiscreto — responde a deusa. — Se dás mais uma palavra, transmudo-te em réptil…

*

A moralidade da fábula existe por aí, limpidamente, desvendando-se à observação mais simples.

A liberdade, a verdadeira liberdade, não é uma coisa que se decrete, que possa sair do espírito dos legisladores, como Minerva, armada e pronta à realização da sua ingente tarefa.

É como direito, um produto cultural das sociedades, e como tal evolve, seguindo a direção de um desenvolvimento superior da inteligência e dos sentimentos.

A filosofia moderna, fazendo-se abdicar das alturas fantásticas em que a colocora a metafísica — como uma coisa inata e absoluta, sobranceira às agitações da vida —, nobilitou-a ainda mais, podo-a em função das lutas brilhantíssimas inerentes à condição humana.

Não é uma dádiva, que se recebe — é uma conquista, muitas vezes trabalhosa, que se realiza.

Vinculada profundamente à existência humana, cuja maior perfeição está no justo equilíbrio dinâmico, entre a sociedade e o indivíduo, ela é o mais vigoroso elemento para a chegada a este objetivo.

A filosofia antiga trouxe-as das miragens encantadoras, onde sonhava, deu-lhe origem divina e entregou-a à humanidade, como quem entrega uma lâmpada brilhantíssima a um cego. Os pensadores de hoje elevam-na mais, dão-lhe uma origem humana; fazem-na a colaboração, o resultado dos esforços combinados de todos os que sentem e pensam, e estudam a sua evolução maravilhosa, na própria evolução das sociedades.

E é por isto que a estremecemos, como um dos melhores legados dos esforços das velhas gerações, em prol do qual nos dispomos a dispender todas as energias do nosso cérebro e da nossa afetividade, para que não se quebre a continuidade dessa nobilíssima solidariedade, que prende, através dos séculos, o presente ao passado.

Fazemos, porém, da ascensão contínua e constante da vida, através de todas as angústias e todas as vitórias, a única maneira de alcançá-la.

Não a desejamos fácil, como o cavaleiro da fábula…

Repelimos, mesmo, esta espécie singular de liberdade que faculta a um sujeito qualquer, o trazer aos enxurros da maior protervia, os homens e as ideias, da mesma sorte que pode dar a outro o direito de dizer que o Sol não é o centro do sistema planetário.

Não é livre quem o quer ser somente; a vontade nada mais é do que o estimulante para esse ideal, que só pode ser realizado pela inteligência — por isso que, em síntese, a liberdade consiste em saber subordinar-se às leis.

Desiludam-se, pois, os que por aí, nos seios de umas frases de reputação duvidosa, espartilhadas numa adjetivação retumbante, estabelecem a máxima licença de palavras e a constante profanação do bom-senso.

Usem e abusem dessa espécie de liberdade, que é a mesma de toda a animalidade inferior; mas quando a ação governamental for coagida, em prol do bem geral, a refrear ou cercear-lhes a ação não gritem que é a liberdade da pátria que se sacrifica.

Esta não é facilmente violada; é inviolável mesmo: guarda a consciência nacional — amparada nos princípios da democracia; cresce e se avoluma na razão direta da nossa própria elevação e para torná-la cada vez maior achamos naturais todos os esforços, e lançamo-nos, sem pavor, ao mar de angústias da lenda de Edgar Quinet.
 
E. C.

O Estado de S. Paulo, 5 de abril de 1892


Por mais incruenta que tenha sido, a nossa transformação política foi radical e seus efeitos se evidenciam a cada passo.

Basta considerar-se a distância entre a política marasmática do Império e os princípios atuais.

Não passamos de uma maneira contínua da antiga Constituição para a de hoje. Separam-nas, a grandeza de conquistas realizadas por outras sociedades, através de lutas, em que não tomamos parte.

Enquanto as nacionalidades do ocidente da Europa e na América — os Estados Unidos — sob o domínio, muitas vezes, das maiores crises, levantaram os princípios que nos decoram hoje — prolongávamos dolorosamente ao último quartel do século XIX, a inatividade colonial.

Erguemo-nos afinal, sem termos combatido, para partilharmos da vitória.

Tudo que temos hoje é uma dádiva generosíssima do nosso século.

Sejamos sinceros.

A nossa história patenteia o tristíssimo fato de uma sociedade esmagando, pela própria passividade, aos seus melhores filhos.

Da Inconfidência à Confederação do Equador, o historiador não sabe o que admirar mais, se o aparecimento de tão grandes heróis em tal sociedade, ou se a indiferença de tal sociedade ante homens tão ilustres.

Nunca tivemos essa indispensável continuidade de ideias e atos, que salva, através dos séculos e das crises, todos os esforços dos que lutam.

Extinguiam-se nos patíbulos, juntamente com a vida, os altos pensamentos dos mártires da nossa história.

De sorte que a evolução democrática, que se poderia ter iniciado com os revolucionários do século passado, é uma coisa recente; vem de 1870, com a brilhante e ousada minoria que nunca mais a abandonou.

E o advento da República exprime afinal a conquista realizada por essa minoria brilhantíssima sobre uma maioria indiferente.

Por mais incruenta, pois, que tenha sido essa transformação política, ela conduziu-nos a uma fase delicadíssima de adaptação às instituições republicanas.

Atravessamos, inegavelmente, um período de transição inevitável.

Faz-se preciso, por consequência, sobre todo este estado de coisas, o influxo vigoroso de uma política exclusiva e eminentemente conservadora, que ampare, nessa brusca ascensão para uma existência maior e melhor, uma nacionalidade que lutou muito pouco para atingi-la.

O objetivo fundamental dessa política dever ser, a todo o transe, o estabelecimento da ordem e sabe-se quanto é difícil semelhante tarefa, nessas quadras perigosas, em que o próprio balanceamento dos espíritos favorece as piores causas e a gestação de todas as explorações.

O lema da nossa bandeira é uma síntese admirável do que há de mais elevado em política.

Precisamos porém não invertê-lo, o que seria um desastre; quanto antes, pois, é necessário que todo o progresso, que relativamente já temos, se assente sobre a base indestrutível da consolidação da República.

Não temos, felizmente, divergências religiosas ou políticas tão profundas que dificultem muito o estabelecimento da ordem material. Traçadas limpidamente as órbitas de todas as atividades, basta que sobre elas paire a vigilância severa das leis.

É o que se tem feito felizmente.

Digam o que disserem, o governo enveredou com brilhantismo pela única política, capaz no momento atual de estabelecer as garantias da paz e acompanhamo-lo desassombradamente, nós, que no fato de uma ampla adaptação ao sistema democrático vemos mais do que uma conquista política — a grande regeneração de uma sociedade.

Seguiremos para o século futuro, robustos e grandes; neste século, cuja deslumbrante grandeza escapa às mais ousadas deduções da sociologia, através das vitórias da ciência e da indústria, a pátria brasileira redimir-se-á; e obedecendo à grandeza do próprio destino assumirá, enfim, a hegemonia das nações latinas…

Todo um século de inatividade terá compensado em alguns anos de lutas civilizadoras — e um grande futuro será afinal a absolvição para um passado estéril.
 
E.C.

O Estado de S. Paulo, 6 de abril de 1892


É fácil esta luta de guerrilheiros, com o aproveitamento de todas as encostas, de todos os barrancos ocasionalmente oferecidos e oferecendo continuidade ao inimigo, como suprema tática — o deserto.

É o extremo recurso dos fracos que procuram a vitória — um vasto fracionamento do combate.

Para isto todas as armas são úteis e todos os companheiros bons.

Esta luta singular em que se vence afinal ao vencedor, pela niilidade das próprias vitórias, tem na história as mais disparatadas feições.

Romanesca e gloriosa, salvando a Espanha — aonde a legenda napoleônica iniciou a sua página dolorosa —, ela é selvagem e condenável na Vendéia, transformada inteira numa emboscada — ante os homens de 1889.

A Vendéia preocupava mais aos grandes revolucionários, do que a Europa inteira apresentando-se a despenhar-se sobre a República, numa avalanche de lutas formidáveis.

Enviaram, para abatê-la, o seu melhor general, Hoche; e o grande exército, que mais tarde passearia triunfalmente pela Europa, recebeu a sua mais larga cicatriz, daqueles adversários impalpáveis, que punham-lhe em frente uma única trincheira — a sombra misteriosa das suas florestas.

A República brasileira tem também a sua Vendéia perigosa.

Não fazemos, nesta aproximação histórica, a injustiça de compararmos em tudo, aos perturbadores de hoje os rudes bretões, que se fizeram os últimos cavalheiros da velha monarquia derruída, enquanto abrigava-se no estrangeiro, acobardada, a aristocracia francesa.

Rebelados e ousados, extinguindo, numa desordem maravilhosa, a admirável simetria dos batalhões republicanos, procurando a vitória através dos incêndios e das ciladas — ligava-lhes entretanto os corações o liame indestrutível de um sentimento comum.

Não encontramos isto nos que, unicamente pela maneira por que perturbam o começo da República, se equiparam aos heróicos vendeianos.

Falamos da maneira a mais geral.

Se houvesse uma ideia, um princípio, um objetivo qualquer, o mais insignificante, do lado dos que — de norte a sul do país — parece terem tomado a deliberação infeliz de sistematizar a anarquia — à luz dessa ideia ou desse princípio, por mínimo que fossem — já se teria travado a discussão mais franca.

Nada disto, porém.

Existe apenas a determinação de atirar por terra tudo o que está feito; o desalojar as posições, para realizarem um único ideal — ocupá-las.

E o propósito disto, diuturnamente, os despiedados prelos realizam o esmagamento do bom-senso ou remoem uma estafada retórica revolucionária, expluindo de umas velhas frases sonoras e vazias.

Estabelece-se, francos, a exploração e o aproveitamento dos menores acidentes, muitos dos quais naturalíssimos, nessa grandiosa translação de toda uma sociedade para um regímen melhor.

Ainda há pouco acirrou-se escandalosamente o sentimentalismo do povo acerca de um fato insignificantíssimo; foi mesmo tentada uma questão religiosa e não se assustaram eles ante a eventualidade do grave aparecimento do clericalismo — o constante pesadelo de Gambetta quando restaurava a França.

E assim seguidamente, aliados de todos os males que surgem, o mínimo incidente que aparece é como seteira, de onde nos espingardeiam.

A República vencê-los-á, afinal, como a grande revolução à Vendéia, com uma diferença fundamental porém — a glória do republicano francês foi verdadeiramente brilhante, graças à própria grandeza dos vencidos…

Quando porém, entre nós, no último barranco esboroado, rolar o último adversário, nós que não temos dedicações pessoais no governo, como se insinua deslealmente, que vemos nos homens do poder símbolos abstratos da realidade, dos princípios que adotamos, nós não teremos o triunfo, mas uma triste lição acerca de todos os perigos, capaz de produzir a indisciplina dos sentimentos e das ideias.

Que nos sirva de consolo este ensinamento por vir — já que no presente invade-nos a máxima tristeza, vendo transportado para as lutas ideais do pensamento a tática extravagante de substituir a batalha — por um vasto, um indefinido, um profundamente doloroso deserto tristíssimo de ideias…
 
E.C.

O Estado de S. Paulo, 7 de abril de 1892


Seguimos com a pátria para a eminência fulgurante do ideal republicano, como quem vigia a abrupta e aspérrima encosta de um vulcão andino…

À medida que sobe, atravessando sucessivamente todos os climas da terra, distraído pela rápida mutação dos grandes panoramas, desde a flora exuberante do equador à vegetação rudimentar dos pólos, o naturalista adquire um novo encanto em troca de um maior perigo.

E quando bem alto, envolto na reflexão maravilhosa das geleiras, o assalta todo o deslumbramento das grandes alturas iluminadas e um desmesurado horizonte incita-lhe os mais ousados sonhos à fantasia, é-lhe preciso calar o brado entusiástico que lhe irrompe do peito, para que se não despertem as avalanchas impetuosas, adormidas em torno, uma passividade traidora.

Nós vamos assim.

Arrebatados, como todos, na impetuosa corrente dos ideais modernos que se aprestam, nesta agitada véspera do século XX, a todas as conquistas da atividade humana, inscrevemo-los contudo no círculo inextensível de uma política conservadora e altamente cautelosa, única capaz de evitar a perda, a dispersão dos princípios e ideias já adquiridas.

Da mesma sorte que a mais ligeira oscilação atmosférica transmuda a silenciosa calma das grandes altitudes numa tempestade violenta — compreendemos todos os perigos que existem, de uma maneira implícita, nos incidentes os mais insignificantes.

Subordinamo-nos pois — com uma constância inquebrável — a esta orientação, a única apta para conduzir-nos, sem maior perigo, ao futuro.

Não se pensa porém assim unanimemente. Há uma nota tristemente discordante, destoando nesta harmonia de sentimentos e ideias e capaz — talvez — de produzir os mais lamentáveis desastres.

Antagônicos aos que, cientes de toda a delicadeza do atual período — envidam o máximo esforço para que se realize afinal o indispensável equilíbrio das ideias, dos interesses e uma aspiração política comum — levantam-se a todo o instante, açulando a discórdia, os que têm todo o interesse na perturbação geral.

Segundo notícias ontem recebidas, alguns generais — intimaram o Vice-Presidente da República, para realizar quanto antes a eleição presidencial.

É um fato contristador, este.

É realmente lamentável que a agitação que até há pouco tempo se desmoralizava, pelos próprios agitadores, tenha agora o apoio de nomes conhecidos de homens, que já tiveram prestígio.

Não acreditamos, entretanto, que se levantem as avalanchas que tememos — na altura em que nos achamos.

É preciso porém que o governo, fortalecido pelo prestígio inegável da lei, seja inexorável cumprindo-a.

Na fase atual qualquer vacilação na repreensão dos crimes políticos é pior por sua vez um crime maior.

Seguiram já para as amarguras de um prestígio os rudes e inconscientes revoltados, de cuja boa-fé se ludibriou tristemente para uma revolta abortada.

Sofremos consequências de um ataque criminoso às leis e à ordem; tivemos entretanto a atenuante da própria rudeza.

No caso presente o atentado contra a ordem é maior, graças ao prestígio mesmo dos que o fazem.

É preciso que se faça sentir quanto antes por parte do governo a repreensão mais enérgica para que não continuemos por mais tempo à mercê de todos os desmandos, de toda a insânia e toda a desorientação dos que não temem a enorme queda — nossa e da pátria.
 
E.C.

O Estado de S. Paulo, 8 de abril de 1892


O manifesto dos generais, com tanto açodamento aceito pela oposição, é de uma incoerência pasmosa.

Não resiste à mais vulgar análise. É um erro, e, o que é mais sério — um crime.

Começam pedindo ao governo o termo de intervenção militar, e não se lembram de que o fato mesmo desse pedido, revestido do valor de uma alta hierarquia de classe, constitui, por si mesmo, uma intervenção bastante séria na ação governamental; é, pois, uma incoerência.

Recordam o estado anárquico dos Estados e o critério que devem possuir de homens experimentados, numa longa vida sulcada de lutas, o próprio critério que têm deve convencê-los de que puseram, por esta maneira, ao lado da anarquia — sempre pronta a explorar tudo —, implicitamente, um prestígio que fora melhor se aplicasse a intenções mais aproveitáveis; é, portanto, um erro.

Terminam pedindo a eleição presidencial; não discutimos esta questão agora — a verdade, porém, é que um tal pedido, feito ostensivamente, embora sob uma forma respeitosa, é um atentado à ordem, é mais um balanço em toda a agitação que por aí vai; é, nas quadras normais, uma falta disciplinar, no período gravíssimo, porém, por que passamos — é um crime.

Suponhamos que o governo cede a esta imposição disfarçada; procuremos por uma demonstração ad absurdum a evidenciação do próprio absurdo que pretendem.

Ante esta subordinação à força, desmoralizar-se-ia, abdicaria, abandonaria forçosamente o poder. A legalidade, a extralegalidade, restaurar-se-ia, mais uma vez, graças — não esqueçamos isto — à intervenção militar. Como consequência inevitável — nova anarquia nos Estados, novas reações, novas lutas ainda intensas, até que se fizesse precisa uma hiperlegalidade, oriunda da mesma fonte, em substituição da extralegalidade combatida…

E neste deplorável círculo vicioso, voltando sempre, para corrigirmos um erro, ao começo do mesmo erro — teríamos uma tristíssima acumulação de desastres, quando o que precisamos e o que queremos é a larga estrada ascensional, e retilínea, que nos afaste de tudo isto.

O governo não cederá, porém; cerca-o impenetrável e magnífica uma barreira ideal — o fulgor das espadas e dos espíritos mais heróicos e desassombrados da pátria.

Abandonar, em meio, à missão reconstrutora, equivale a romper, ilogicamente, a solidariedade que mantém com a feição nobre da nossa nacionalidade.

Subordinar-se a imposições de quem quer que seja, por mais encobertas que sejam, equivale a decretar, tacitamente, a própria fraqueza.

Permitir o impune campear dos que, por quaisquer meios, imprimem estimulantes à anarquia dispersiva — que é o inimigo comum —, equivale a faltar à sua missão principal, é, moralmente — extinguir-se.

O governo não cederá e prestigiará a lei.

Um número fatídico de generais não profanará a data, por vir, do próximo dia da nossa inteira regeneração política e social.

Volvam em torno o olhar todos os demolidores, os que por uma cisão estabelecida com as aspirações comuns realizam o fato estranho de se expatriarem sem o abandono do país — e verão que os dedicados à atual ordem de coisas têm a predisposição heróica dos predestinados — e são, em meio das lutas do presente, como a síntese, a miniatura da grande nacionalidade brasileira do futuro.

O Estado de S. Paulo, 10 de abril de 1892


Mocidade caturra, a nossa…

Somos, no banquete espiritual, uma espécie de importunos convivas, corretamente vestidos de preto, em que a fronte moça se perde nas rugas de uma velhice precoce e o gesto comedido e austero é quase um escândalo, ante o despreocupado donaire, o desempeno feliz, toda a inquieta elegância dos voltairianos fin de siècle, dedicados heroicamente à oposição sistemática.

Arredados por outras preocupações — tudo o que vibra e vive em torno, chega até nós como um eco, um eco longínquo, incapaz de imprimir-nos à inervação a prodigiosa dinâmica dos sentimentos, através da qual simultaneamente esvai-se e se regenera-se a vida.

Tumultua a sociedade; e enquanto eles — os fortes, os felizes, os moços — os analistas incansáveis do nosso meio — aproveitam afanosamente tudo o que ascende da vasa, graças à fermentação geral — nós, os velhos de cabelos pretos, seguimos a parábola ousada de uma utopia, indiferentes ou irônicos.

Mocidade caturra e ingrata.

Há poucos dias se expandiu lírica e dolorosamente a sentimentalidade geral; não criminosa e bárbara se erguera crispada sobre a fronte silente do Cristo; o telégrafo, vibrando eletricamente a comoção geral, transmitira aos mínimos recantos do mundo o espantoso crime; agitou-se no túmulo a carcaça desguarnecida de Torquemada; os réus confessos de ateísmo fizeram-se Madalenas soluçantes e trocaram, por momentos, os altos coturnos pretensiosos pelas sandálias humílimas dos penitentes; fez-se precisa a reparação, e a reparação se fez — amplamente — com as tochas, convictamente vibradas, nas costas de meia dúzia de infiéis rebeldes; e no meio de tudo isto, nós, ou tivemos uma ironia esfaceladora, farpeando, despiedada, aos crentes de última hora, capazes de pintar bigodes no rosto imaculado de Maria, ou a razão frigidíssima, condenando o fato em si e os seus inquietos exploradores.

Ontem novo gérmen de comoção geral. Entrada triunfante de uma falange regeneradora, envolta numa grande onda de luz, destilada de velhas espadas, brunidas no revérbero quente e fulgurante das batalhas. Expluíram ditirambos apaixonados. Vasto renascimento de esperanças estoladas. Uma magnífica aura guerreira — feita de vibrações heróicas de clarins, rutilações de metralha e resfolegar ruidoso de heróis — iniciou-se majestosa. O Grande Velho desceu de Petrópolis e o câmbio, o cobarde e incorruptível fiscal da confiança estrangeira, apresentou-se, aterrado, para um salto descensional e grave.

E enquanto tudo isto se dava, quando por uma espécie notável de endosmose uma grande febre de lutas penetrava as veias dos mais indiferentes — nós não tínhamos a postura, a linha admiravelmente romântica deles, dos valentes, a nossa vida não oscilou, combalida, num grande desequilíbrio do sistema nervoso — antes, num impulso perfeitamente burguês e prosaico, voltamo-nos para esta velharia — a lei.

Dois fatos capitais, de transcendente importância — inteiramente perdidos.

Decididamente somos ingratos, caturras e despiedados.
 
E.C.

O Estado de S. Paulo, 13 de abril de 1892 A situação é esta: de um lado, um grupo de indivíduos que intenta a subversão da ordem, e, de outro, um governo que se faz respeitar.

Estão definidas as posições. Não, porém, à luz de uma ideia ou de um princípio político.

Muito recente, a política republicana não teve ainda tempo de diferenciar-se em partidos.

Há uma causa mais geral e profunda, justificando o aparecimento constante dos que, tão lamentavelmente, rotulam todos os nossos defeitos, os mais condenáveis.

As sociedades, como as espécies, evoluem através de um perene conflito entre o adaptar-se a novas condições de vida e hereditariedade conservadora, que as contrabate e repele. Ora, a adaptação do regímen democrático é uma coisa difícil; torna-se portanto mais cômodo, aos que se forram ao império de uma orientação segura, o entrarem para as agitações políticas com todas as qualidades adquiridas.

A sociedade monárquica não nos legou, certamente, esse respeito ao prestígio da autoridade, mais necessário ainda às repúblicas do que ao cesarismo.

Ela não nos ensinou a vermos, numa admirável harmonia com as leis, a única força dos que governam. Daí, esta tendência para assaltá-las, esta nevrose de desmoralizá-las hoje — no seio da República —, onde são inexoráveis e soberanas.

Daí, toda esta intermitência de crise e o aparecimento dessa espécie de criminosos — vítimas dos que atiram contra a estabilidade do meio atual, inconscientemente quase, impulsionados pelo meio anterior.

E uma coisa que se dá, no início de todas as reformas e a anistia, que nestas ocasiões quase sempre ampara os agitadores vencidos, é, verdadeiramente — uma absolvição dos erros do passado, que eles representam.

Felizmente, estes vícios hereditários, breves, se extinguem — por isto que, mesmo pelo muito depauperarem os que herdam, facultam-lhes as maiores derrotas.

Evidenciou-se isto agora.

Toda uma conspiração — incubada há meses, que aliciara adeptos em todas as classes, que se construíra recrutando todos os ódios e todos os despeitos e tivera afinal artes de se decorar, no último momento, com a auréola de um herói — explodiu — com o resultado negativo de entregar à justiça que a realizaram.

É uma coisa nova; parece que estamos destinados atualmente a fornecer casos originais à história. Esta aponta-nos inúmeros fatos de revoltas esmagadas, sob cargas impetuosas de regimentos e explosões de metralha; é novo porém o fato de uma conspiração que sai à rua e se dissolve a pranchadas, como uma arruaça qualquer de irresponsáveis.

Seria, entretanto, uma inverdade dizer que falta a muitos dos atuais perturbadores altivez ou coragem individual; a verdade, a tristíssima verdade, exuberantemente comprovada, é que nada existe capaz de debilitar mais os fortes, do que o agremiarem-se sem a fortaleza moral de uma ideia.

A união, nestes casos, faz a fraqueza; aumenta a intensidade do atentado, na razão inversa das probabilidades de vencer.

A vitória do governo não desperta hinos triunfais — foi a correção de um erro e realizou-se felizmente, com extrema facilidade.

Que o afastamento temporário dos agitadores facultem [sic] a consolidação da ordem e o alevantamento desta pátria digna de melhores dias.
 
E.C.

O Estado de S. Paulo, 17 de abril de 1892


Há cinco meses festejava-se o segundo aniversário da República.

Desperta pelos hinos marciais a população da capital se alevantara festiva, estacionando desde mui cedo no local destinado à grande festa.

Ali, refletindo todo o brilho de um sol, ardente de estio, nas límpidas baionetas perfiladas dos batalhões em linha, havia como que uma explosão silenciosa das flamas ofuscantes.

Parecia deslembrado um grande crime.

Apenas uma ou outra fisionomia torturada, de rebelde impenitente, destoava da alacridade comum. Nas janelas do Quartel-General, aonde dois anos antes se aprumavam as estaturas dos rebelados vitoriosos, ostentavam-se, ridentes, grupos formosíssimos de moças curiosas. E o povo, aquele feliz e despreocupado povo fluminense, tumultuava na vasta praça — à espera da diversão prometida.

Admirável dia aquele — ardentíssimo e claro —, defluindo, caindo, iluminado como uma auréola, de um firmamento sem nuvens.

Era impossível haver mais resplandecente gambiarra, para a sombria farsa que se ia desdobrar — a comemoração da vitória democrática, em pleno domínio da ditadura…

Esta consideração, porém, não ensombrava o espírito da maioria, não entibiava a alegria fácil da grande massa de indiferentes; o que a preocupava, esporeando-lhe rispidamente a paciência, era o desejo, um grande desejo desenfreado, de contemplar o velho marechal, que, num ímpeto de energia, vencendo a dispnéia estranguladora, ali apareceria em breve.

Quando, porém, a nota estrídula dos clarins o anunciou, e a artilharia alçou a voz atroadora e através de um vasto perfilar de espadas — ele apareceu —, houve um contraste extraordinário entre o que se esperava e o que se viu…

Não era mais a admirável figura de herói, dominadora e ousada, feita para modelar todo o espírito cavalheiresco e heróico de um povo.

Pálido e alquebrado — no meio de um estado-maior deslumbrante —, o olhar velado de tristeza, era a sombra, nada mais que a sombra do Marechal Deodoro — que dois anos antes, naquele mesmo lugar, vencera o seu mais glorioso combate e se transfigurara imortal — no meio de ovações delirantes.

*

Sugerem-nos esta vaga reminiscência, as notícias contristadoras, que chegam da Capital Federal. Sem o querermos, vemo-lo através do seu último triunfo, tristíssimo triunfo antagônico a toda a passada grandeza de herói — porque a morte que o assalta agora é como que o seu complemento indispensável.

Por maior que seja a nossa emoção, não a sobrepomos à verdade. Embora nos custe, calamos este sentimentalismo extraordinário que nos caracteriza e que é como uma perene emboscada ao juízo austero da consciência.

Naquele dia o ilustre soldado se incompatibilizara, irremediavelmente, com a existência da pátria, que lhe deve, no entretanto, muito. E ele tinha talvez consciência disto; os que o sacrificaram despiedadamente prepararam-lhe um triunfo inglório e, no meio de tudo aquilo, ele passou — com a tristeza profundamente dolorosa de um vencido.

Hoje está entregue à justiça da História. Do inquérito feito sobre a sua existência notável ressaltam — a épica grandeza dos combates, as expansões magníficas do brio, a aurora fulgurante da República — e um erro!

Este, porém, por mais condenável que seja, não pode refluir sobre um passado ilustre. Não se pode constituir como o coeficiente de redução de uma existência. A responsabilidade do crime de 3 de novembro além disto cai com mais vigor sobre as cabeças de cúmplices que não terão, infelizmente, de prestar contas à posteridade — visto não passarem do aniquilamento da vida objetiva, que tanto deslustraram. Demais, ele que era bravo e poderoso, fez, para atenuá-lo, no fim da sua longa vida de guerreiro, o que não fizera nunca ante o horror das batalhas: — recuou.

Recuou, quando poderia ter lutado e talvez vencido.

A sociedade convulsionada do presente não pode definir-lhe a gloriosa existência.

O que se pode, porém, afirmar, desde já, antecipando o juízo do futuro, é que a sua entrada em nossa história, engrandece-a.
 
E.C.

O Estado de S. Paulo, 20 de abril de 1892


Este início de agitações religiosas que se esboça por aí, entre as próprias seitas teológicas, sugere-nos, a nós que não nos subordinamos a dogma algum, mas que não nos negamos a religião, algumas observações oportunas.

Aproveitamos o momento para, embora a traços largos, definirmo-nos bem com esta honestidade incorruptível de consciência, própria aos que amparam a vida na solidez dos princípios, e sem a qual se instabilizam todas as virtudes.

Reconhecemos, como toda a gente, que a religião encarada de um modo geral, sobranceiro a suas formas aparentes, é uma função espiritual evolvendo com o espírito humano e sendo afinal a suprema diretriz da vida.

Iludem-se deploravelmente os que nos vendo emancipados das imposições de todos os dogmas e presos no círculo, racionalmente intransponível, dos fatos naturais, acreditam que pensemos orientar o próprio destino, eliminando da consciência o sentimento religioso. Segundo a escola a que nos filiamos isto equivaleria à mutilação do espírito e destruiria,em grande parte, o valor da concepção dinâmica que reduz a um princípio único toda a vasta metamorfose da existência universal.

Felizmente para nós, pertencemos ao número dos que acreditam que todo o conflito secular entre a religião e a ciência nada mais é do que a tendência para uma harmonia futura, entre o incognoscível indefinido e inconcebível — e o cognoscível — perfeitamente concebível, em cujo seio pode de uma maneira completa definir-se o pensamento.

Decorre daí que não compreendemos tão radicalmente insanável a reconciliação entre uma — cujo objeto é a existência definida, única de onde podem surgir as nossas concepções — e a outra cujo objetivo é perpetuar na espécie o sentimento adquirido de toda a existência indefinida, perenemente insondável.

Segundo pondera judiciosamente Spencer, a paz se estabelecerá entre ambas, quando se subordinarem aos fins respectivos; quando a ciência se restringir às suas explicações próximas e relativas, e a religião se convencer de que o mistério que ela contempla — é absoluto.

A mesma razão que impede a ciência de legislar sobre o mistério, inibe a religião de aproximá-lo das leis científicas.

Todo o passado humano nos fala eloquentemente da imensa luta, travada em virtude da falsa compreensão destes diferentes destinos; luta maravilhosa, cujo objetivo não é a conquista de uma pela outra, mas — a paz; admirável campanha em que a ciência, sempre vencedora — era a única a fornecer as vítimas; singularíssima batalha em que uma vencia, enquanto os seus melhores filhos passavam por todas as torturas, desde a humilhação de Galileu à agonia de Giordano Bruno.

A crítica científica porém cuja mais elevada missão tem sido, ninguém impugnará isto, a de fixar a religião no seu verdadeiro papel — rebatendo-a vitoriosamente todas as vezes que ela, abdicando da própria grandeza, desce à relatividade e intenta, com a autoridade de fórmulas absolutas, leis e preceitos; esta onipotente crítica científica, ante a qual têm ruído todas as formas dadas ao incognoscível e todos os códigos, tendentes a regulamentarem as nossas relações com ele — vai, felizmente, perdendo, a pouco e pouco, a feição destruidora, à proporção que o espírito moderno se robustece pela aquisição de ideias positivas, dimanadas da observação e da experiência.

Enquanto isto se dá, e cada ciência, agindo isoladamente segundo um ponto de vista especial, alevanta as verdades inerentes aos diversos modos de ser da realidade concebível — a filosofia harmonizando admiravelmente todas as verdades particulares assim estabelecidas, sob um ponto de vista geral, dá-nos o sentimento desta realidade que é o objeto da religião, quaisquer que sejam as formas que assuma. Vemos por aí que o sentimento religioso tem, no seu aparente inimigo, a ciência, um grande auxiliar.

É graças a ele que as crenças religiosas, das brutalidades do paganismo a todo o brilho da moral cristã, foram-se aperfeiçoando sempre, a proporção que mais abstratas se tornaram as representações do incognoscível.

Persistindo a evolução humana na sua marcha sempre ascensional, é lógico esperar que se extinguam afinal quaisquer representações de realidade inconcebível — pairando, por fim, sobre o conhecimento da existência definida, o sentimento, nada mais que o sentimento, dessa existência indefinida, dessa realidade intangível — que sentimos além de tudo o que podemos sentir…

Este sentimento é a base comum de todas as crenças, cujas variações estão unicamente na maneira pela qual o compreendem, os diferentes estados de consciência.

Evolui, guiado pelo espírito humano, crescendo e notabilizando-se com ele, seguindo, uma continuidade admirável, do mais bárbaro fetichismo aos deslumbramentos do Cristianismo…

É preciso, porém, que um indispensável equilíbrio se estabeleça entre ele e a consciência; se o seu deperecimento gera o objetivismo grosseiro dos povos sem crenças — o seu predomínio exagerado é talvez pior, é esse excesso de subjetividade — o fanatismo, que enlutou tanto a história.

Não acreditamos que ele surja entre nós, principalmente agora em que a lei ampara igualmente todas as crenças.

As pequenas agitações, a que nos referimos, acima, não podem alcançar e perverter mais, na elevada posição a que a levou o espírito humano — a este sentimento religioso, que partilhamos também, como os mais fervorosos crentes — mas ao qual não tentamos definir, ao qual não podemos representar…

Estas observações — vagas e talvez obscuras por um defeito de síntese — têm o único valor de mostrarem até que ponto somos neutros, nas atuais cisões religiosas.
 
E.C.

O Estado de S. Paulo, 24 de abril de 1892


Aplaudimos sinceramente a generosa anistia concedida ultimamente pelo governo a alguns criminosos políticos.

À primeira vista parece que o nosso já proverbial sentimentalismo — alcançou mais uma vitória, fazendo recuar esta rígida e austera justiça revolucionária, inacessível às prisões, sobranceira a todas as fraquezas e pairando muito alto, sobre o tumulto da sociedade.

Parece que por mais rigorosa que seja a linha reta ideal, que determina a marcha do governo, ele imprime-lhe essas ligeiras sinuosas, para transigir com o meio.

E os que compreendem que todas as agitações só podem extinguir afogadas na serenidade das leis devem, no primeiro instante, entristecer-se.

A justiça, porém, como tudo, é essencialmente relativa. Rodeiam-na as circunstâncias do momento e é impossível caracterizar-se qualquer de suas manifestações, sem a consideração preliminar das causas que a produziram.

Peada — como tudo — às condições exteriores, é bem de ver-se que esta entidade subjetiva, esta nobilíssima manifestação da consciência, obedece, como aquelas, a uma seleção contínua e constante, em função da sociedade inteira.

As reformas, periódicas quase, de todos os códigos, exprimem bem esta evolução da justiça, seguindo a própria sucessão dos estados sociais.

Ora — uma ligeira observação, feita sobre a nacionalidade brasileira, dos tempos que correm, diz-nos de pronto que a justiça, feita sobre os crimes políticos, não se pode erigir com um rigorismo incoercível e inexorável; isto porque ela não pode satisfazer a indispensável condição de ser plenamente geral, abrangendo a todos os delinquentes.

O nosso estado atual de coisas constitui uma notável espécie de atenuante — para todos esses crimes.

A indiferença, a grande indiferença que domina parte do país, por tudo que diz respeito aos interesses gerais da pátria, desculpa, talvez, a todos os que, num ambiente moral — rarefeito e inconsistente —, descrêem da ação sempre segura das ideias, apelando para as brutalidades da revolta.

Se os sediciosos representam um mau elemento dispersivo — os indiferentes representam um péssimo elemento absorvente e aniquilador.

Aqueles têm ainda a fraqueza desassombrada de, convulsionando a ordem estabelecida, darem lugar à reação vigorosa das leis, mostram-se, apresentam-se, embora através de todas as cautelas dos que conspiram.

Não são porém os únicos a dificultarem entre nós a realização prática dos princípios republicanos.

Mais perigosos, talvez muito mais perigosos, são todos aqueles para cujos crimes não existe flagrante; delinquentes impalpáveis, intangíveis e numerosíssimos, cuja função pecaminosa consiste em absorver para extinguir, simultaneamente e indistintamente, as mais fecundas ideias e os mais sólidos princípios, em cujo seio deperecem igualmente todos os assomos das revoltas e todas as energias das leis; legião híbrida e incolor, estéril e indefinida, que ninguém vê e todo o mundo sente, e acobertada por esta triste palavra de — indiferentismo.

A última eleição senatorial e o centenário de um grande homem serviram para patentear mais uma vez a sua existência, pelos resultados que deram.

Na primeira se violou deploravelmente esse direito de voto que nas quadras difíceis é um dever; no segundo se falseou à veneração com que a civilização moderna circunda as memórias dos que dedicaram-lhe todos os esforços.

Nada entretanto justifica esse retraimento de certa parte da opinião, quer para as questões do presente, quer para as grandes tradições do passado.

Consideramos todo esse indiferentismo como um inimigo mais para se temer do que as revoltas que têm aparecido.

Já que o governo, pois, se considera bastante forte para garantir a ordem, aplaudimos sinceramente a anistia — porque ninguém pode afirmar que sejam, os revoltosos reprimidos, mais condenáveis do que tanto, tanta gente por aí, talvez, nem saiba que a pátria — existe.
 
E.C.

O Estado de S. Paulo, 27 de abril de 1892


O ideal da política moderna — tudo o indica — está numa dependência cada vez mais íntima, do indivíduo para com a sociedade e numa independência, cada vez mais acentuada, de ambos para com o Estado. As próprias imposições sempre crescentes da vida civil imprimem, dia a dia, a todos os espíritos uma disciplina bastante sólida, para dispensar as repressões contínuas dos poderes constituídos ou o seu constante apoio.

O futuro — e é isto uma verdade já velha — pertence ao industrialismo. Ele operará, tonificado vigorosamente pela fórmula soberana da divisão do trabalho, a mais vasta diferenciação e conseq uente aperfeiçoamento da feição mais nobre da atividade humana; crescerá, portanto, paralelamente, com o progresso material o desenvolvimento moral do mundo; a sociedade será uma ampliação da família e restará ao Estado, exclusiva, a garantia da ordem.

Um olhar para o passado nos mostra limpidamente que a luta pela existência, na sociedade, tende sobretudo para este objetivo — a emancipação individual.

Entre as nacionalidades do presente as que se aproximam mais desta fase de ampla independência são, realmente, as que mais nobilitam o nosso século pelas maiores criações do trabalho. À proporção que se fortalecem e crescem dispensam naturalmente a intrusão dos governos, cujo papel restringe-se por fim em unicamente assegurar-lhes o próprio engrandecimento.

Esse grande ideal político será realizado.

Não é uma utopia; garante-o vantajosamente todo o maravilhoso espetáculo da evolução humana.

Compreendemos, porém, toda a distância a que nos achamos dele; e embora com a maior tristeza, confessamos que a sociedade brasileira não pode dispensar, tão cedo, para as questões mais simples do seu desenvolvimento, o prestígio oficial do governo.

Temos como em extremo trabalhosa a missão do Estado, nos tempos de hoje; não lhe basta dedicar-se exclusivamente à garantia da ordem, é-lhe indispensável que, de alguma sorte, exorbite, estabelecendo os primeiros elementos do progresso.

Filhos de uma terra tão vasta e tão rica, pode-se dizer que nunca precisamos viver através de um contínuo apelo a própria atividade; nunca necessitamos travar com o meio cosmológico estas admiráveis lutas, em que se retemperam tão bem a índole de todos os povos; a concorrência vital, graças à extensão do território, aliada a uma população rarefeita, nunca se constituiu como um motivo da seleção do nosso espírito, de acordo com as condições exteriores, de modo a nos dar esse conjunto de tendências e aspirações comuns, que definem qualquer nacionalidade.

É fácil a qualquer dizer, graças à maravilhosa plasticidade do estilo amoldado a todas as causas, que somos já uma nação, com aspirações bem definidas de futuro, em harmonia com uma exata compreensão do passado.

Neste caso, o governo poderia verdadeiramente se restringir à missão, menos trabalhosa, de mero condensador das energias sociais e guarda da estabilidade geral.

A verdade, porém, é que, ante o assalto da crise atual, nos sentimos inermes e fracos, fazendo-se precisa, para os mais simples fatos de economia, a ação do Estado; isto desde as questões rudimentares da alimentação e da higiene às mais sérias.

O que o Estado tem feito até hoje, além da função dificílima de velar pela segurança comum, é, estimular, substituindo-a muitas vezes — essa tão fecunda iniciativa particular que somente agora se esboça entre nós, com probabilidades de desenvolvimento.

A iniciativa oficial tem absorvido mesmo as grandes manifestações do sentimento, fazendo-se indispensável o seu influxo para que não se olvide tudo o que há de verdadeiramente grande na nossa existência histórica.

Precisamos, porém, libertá-lo dessa duríssima tarefa, libertando-nos dessa tutela generosamente concedida.

Por mais necessária que pareça a proteção oficial, ela é efêmera por isto mesmo que toda a força dos governos promana das sociedades.

Faz-se necessário portanto que se iniciem desde já todos os passos para uma maior independência de vida e comecemos afinal a auxiliar o governo ou em vez de, como até hoje, recebermos dele uma proteção constante e incondicional, só assim poderemos seguir com as demais nações para esse ideal que enobrece e dignifica tanto a política moderna.
 
E.C.

O Estado de S. Paulo, 1º de maio de 1892


Extraordinário amanhecer o de hoje nas velhas capitais da Europa…

Como que assaltada por uma síncope, subitamente, se paralisa a complicadíssima vida da mais alta civilização; todo o movimento das grandes sociedades, toda a espantosa atividade de um século e a admirável continuidade dessa existência moderna tão poderosa e tão vasta, se extinguem, aparentemente, esvaindo-se em vinte e quatro horas de inatividade sistemática.

Abandonam os cérebros dos políticos os interesses nacionais mais urgentes; desaparecem por um dia todas as fronteiras; reconciliam-se incorrigíveis ódios seculares de governos — e aqueles exércitos formidáveis, que a todo instante ameaçam abalar a civilização, num espantoso duelo, formam silenciosos, pela primeira vez, sob uma mesma bandeira…

Tudo isto porque o anônimo extraordinário que é o maior colaborador da história, o Povo, que trabalha e que sofre — sempre obscuro —, entende, nessa festiva entrada da primavera, deixar por momentos as ásperas ferramentas e sonhar também como os felizes, pensar, ele que só tem um passado, no futuro.

O escravo antigo, que ia nos circos romanos distrair o humor tigrino dos reis, num pugilato desigual e trágico com as feras; o servo da gleba, o vilão cobarde que atravessou a Idade Média, à sombra dos castelos sob o guante do feudalismo; que tem alimentado com o sangue a alma destruidora das guerras; ele — a matéria-prima de todas as hecatombes, seguindo sempre acurvado a todos os jugos — transfigura-se realmente, alentado por uma aspiração grandiosa e apresenta esta novidade à história — pensa!

Deu todas as energias ao progresso humano, sempre inconsciente da própria força, e quando no fim do século XVIII uma grande aura libertadora perpassou a terra, ele se alevantou, aparentemente apenas — para trazer, às costas, até os nossos dias — a burguesia triunfante.

Cansado de escutar todas as teorias dos filósofos ou os devaneios dos sonhadores, que de há muito intentam-lhe a regeneração — desde os exageros de Proudhon às utopias de Luís Blanc —, ele inicia por si o próprio alevantamento.

E para abalar a terra inteira basta-lhe um ato simplíssimo — cruzar os braços.

E que triste e desoladora perspectiva esta — de vastas oficinas e ruidosas fábricas desertas, sem mais a movimentação fecunda do trabalho — e as profundas minas, abandonadas, abrindo para os céus as gargantas escuras — num tenebroso bocejo…

*

Se entrarmos na análise dos cambiantes que tem assumido o socialismo, temo-lo como uma ideia vencedora.

O quarto estado adquirirá, por fim, um lugar bem definido na vida universal.

Nem se lhe faz para isto preciso agitar o horror da anarquia ou fazer saltar a burguesia a explosões de dinamite. Fala todas as línguas e é de todas as pátrias.

Toda a sua força está nessa notável arregimentação, que ora desponta à luz de uma aspiração comum; a anarquia é justamente o seu ponto vulnerável — quer se defina por um caso notável de histeria — Luísa Michel, ou por um caso vulgar de estupidez — Revachol.

Não existe, talvez, um só político proeminente hoje, que se não tenha preocupado com esse grave problema — e o mais elevado deles, o menos inglês dos pensadores britânicos, Gladstone, cedendo à causa dos home-rulers o espírito robusto — é, verdadeiramente, um socialista de primeira ordem.

Realmente, a vitória do socialismo bem entendido exprime a incorporação à felicidade humana dos que foram sempre dela afastados. Em nossa pátria — moça e rica — chegamos às vezes a não o compreender — transportando-nos porém aos grandes centros populosos, observando todas as dificuldades que assoberbam a vida ali, sentimos quão criminosa tem sido a exploração do trabalho. Ali, aonde o operário mal adquire para a base material da vida, a falsíssima lei de Malthus parece se exemplificar ampla e desoladora. Preso a longas horas de uma agitação automática, além disto cerceado da existência civil, o rude trabalhador é muito menos que um homem e pouco mais que uma máquina…

*

Os governos da Europa hão de transigir porém; hão de entabular os preliminares da paz, pelas concessões justas e inevitáveis que terão de fazer.

Nós assistimos ao espetáculo maravilhoso da grande regeneração humana.

Pela segunda vez se patenteia, na História, o fato de povos que se fundem num sentimento comum — e não sabemos qual mais grandioso, se o quadro medieval das Cruzadas, ou se esta admirável cruzada para o futuro.

Seja qual for este regímen por vir, traduza-se ele pela proteção constante do indivíduo pela sociedade, como pensa Spencer, ou pelas inúmeras repúblicas, em que se diferenciará o mundo, segundo acredita Aug. Comte — ele será, antes de tudo, perfeitamente civilizador.

Que se passe sem lutas este dia notável. O socialismo, que tem hoje uma tribuna em todos os parlamentos, não precisa de se despenhar nas revoltas desmoralizadas da anarquia.

Que saia às ruas das grandes capitais a legião vencedora e pacífica; e levante altares à esperança, nessa entrada iluminada de primavera, sem que se torne preciso ao glorioso vencido — o Exército — abandonar a penumbra em que lentamente emerge à medida que sobe a consciência humana.
 
E.C.

O Estado de S. Paulo, 8 de maio de 1892


Afinal, nesta constante vibração nervosa, da qual surge a maravilhosa dinâmica das ideias, vão-se-nos os dias, cheios dos deslumbramentos e dissabores da luta…

Os rudes operários que esgotam a musculatura, batalhando a matéria, têm as intermitências do descanso e se refazem amplamente.

Mas nós, que nos havemos uns a outros, tacitamente, estabelecido o dever de seguirmos o deambular incoerente de uma sociedade — a pique ainda dos últimos abalos políticos — e contraímos diariamente as vistas para o apercebimento de fatos, que aparecem as mais das vezes ilógicos, só nos alentamos ou por meio de uma abstrata contemplação do futuro, consoladora e feliz, ou procurando no presente uma zona mais calma, onde por momentos se possa o espírito despear das preocupações habituais.

Felizmente, em falta de assunto urgente, podemo-nos voltar hoje para mais calma ordem de ideias, sugeridas por uma local desta folha, de ontem, onde se anuncia a próxima aparição de dois livros de versos.

São verdadeiramente dignos de aplausos os que colaboram desta sorte no alevantamento comum, sobretudo para os que compreendem que é pela arte, de uma maneira geral, que se pode formar a mais pronta, a mais ampla e a mais segura ideia de superioridade afetiva e mental de um povo.

A ciência, altamente cosmopolita, define na história as épocas sucessivas de elevação humana; o seu caráter de universalidade é tal que é vulgar o fato de notáveis descobertas feitas simultaneamente em pontos diferentes: define de um modo geral o espírito humano — competindo a arte mais especial, definir o espírito das nacionalidades.

É por isto talvez que um grande pensador moderno, através da claríssima argumentação de que usa, demonstra limpidamente que se faz indispensável aos seus cultores a iniciação científica.

Isto porque qualquer produção de um verdadeiro artista, digamo-lo ousadamente, traduz antes a mais alta forma do instinto hereditário da raça que o da própria conservação — pelo encarnar eternamente no mármore ou engastar perenemente no seio fulgurante de um poema, num notável altruísmo, o que lhe existe de verdadeiramente notável em torno, num grande esquecimento de si mesmo.

Preso, vinculado ao meio em que vive, o verdadeiro artista como que tem a passividade de um prisma, através do qual se refrata — com os cambiantes que imprime-lhe o seu temperamento — a grande alma humana, com as suas múltiplas e desencontradas feições.

Para atingir porém a esse ideal, para que os seus quadros, ou os seus versos admiráveis, possam de algum modo traduzir assim o estado psíquico de uma época, avalia-se claramente que se lhe faz prevista essa elevação grandiosa da consciência, baseada na compreensão exata do seu tempo.

As sociedades, em sua marcha eterna, mudando continuamente, assumindo sempre novas feições, deixam sempre após, testemunha-o a arte antiga, representando-lhes a fisionomia anterior, um povo imortal de estátuas falando a majestosa linguagem dos poemas…

É fácil de compreender, portanto, de quanto brilhantismo precisam dispor esses que se destinam à difícil função de retratarem-nas, em todas as suas modalidades.

A poesia, a escultura, a pintura e a música são para Spencer as flores da civilização e o eminente pensador pondera judiciosamente que se não deve abandonar a planta, a instrução científica, para cuidar antes da flor, que neste caso brotará degenerada.

Tudo quanto se agita e vive e brilha e canta na existência universal obedece a uma vasta legislação, para a qual ascende infatigavelmente o espírito humano, em busca da verdade; tem pois razão o ilustre mestre, impondo ao poeta, além da cômoda feição contemplativa, a subordinação às leis naturais, sem a qual, por um desastroso predomínio de subjetivismo — ele descamba aos partos monstruosos dos temperamentos enfermos.

Evidentemente não quer isto dizer que se vá metrificar os teoremas da Geometria ou os princípios da Física; o que a ciência faz é sobrepor, para iluminá-la ainda mais, a fulguração da consciência à afetividade do artista; estabelece um contato mais íntimo entre ele e a existência geral, de modo que, com maior conhecimento de causa, nos transmita tudo o que nela exista.

Tem ainda a ação altamente moralizadora, de enfraquecer o notável egoísmo dos sonhadores, que passam pela vida absorvidos em si mesmos, numa contemplação singular das próprias emoções…

Parece-nos que já vai longe o tempo em que se pregava a ação esterilizadora do estudo sobre o sentimento.

Goethe pelo fato de ter sido um naturalista tal que, juntamente com Lamarck, entreviu o darwinismo antes de Darwin — é também imortal como poeta.

Que a nossa arte balbuciante se alevante vigorosa, amparada nas grandes leis da existência universal, de que é a nossa pátria um majestoso palco, é o nosso mais ardente desejo, ao saudarmos os sonhadores que surgem.
 
E.C.

O Estado de S. Paulo, 11 de maio de 1892


Embora à saciedade se haja por inteiramente inócua a inumação de cadáveres, nem por isto a cremação deixa de ser uma maneira mais decente e mais feliz — se é possível — para o término da vida.

Não vale a pena o enumerar-se as opiniões que se têm a este respeito degladiado, inúmeras e controvertidas, de proeminentes higienistas; o citarem-se todos os devaneios nebulosos dos filósofos, cujos espíritos se afundaram nas impérvias sombras da morte, adquirindo quase todos, como Lessing, um tédio doloroso, como único e tristíssimo resultado.

Para nós é perfeitamente indiferente — acerca deste último ponto — que sejam as covas as entradas para o nada ou os escuros penetrais das fulgurantes regiões há tanto prometidas: é tão formosa e tão grande esta existência universal, e tão estreita a vida humana para compreendê-la, que não precisamos, num arranque de subjetivismo, transpor-lhe as barreiras, para esse intangível sobrenatural, aonde a razão se esvai torturada pelas maiores quimeras.

Que a alma vingue sobre os destroços da matéria, como querem os espiritualistas e infinitamente persista, ou, como quer o materialismo, se extingua; em qualquer dos casos sempre é melhor e menos fúnebre a rápida combustão orgânica, sob uma temperatura altíssima de platina, do que essa aterradora e lenta decomposição, operada pelos microorganismos — esses extraordinários analistas da matéria —, que lentamente a diferenciam e preparam para novas funções na vida…

Lemos há pouco tempo, algures, uma curiosa notícia sobre a fauna medonha dos sepulcros e é impossível sofrear-se o espanto e repugnância, que nos assaltam ante os sinistros coleópteros e dípteros, que durante dois ou três anos se repastam de sânie.

A ciência tem dessas páginas que pedem a assinatura de Hoffmann.

O professor Brouardel, que tentou esta horribilíssima empresa, armado de uma grande frieza de verdadeiro sábio, chegou a descortinar tendências e costumes nestes sombrios animais; e fala-nos da preferência de uns como a Phora aterrima pelos corpos magros e da predileção notável dos Risophagos pelos organismos gordos; e, prosseguindo na dolorosa observação, mostra como alguns, atraídos pelas exalações, furam a terra e, penetrando as estreitas frinchas dos esquifes, vão procurar — na sombra, a misérrima iguaria.

Para o mais fervoroso crente, como lhe deve ser profundamente doloroso o saber que enquanto as almas dos seres que lhe aformoseiam a vida sobem para os céus, nas feições queridas, descem ao mais hediondo destino quando se podem extinguir, volatizadas, no seio do que de mais encantador existe na natureza — a luz?

E os pensadores modernos, os que sistematizam essa nobre, essa necessária e essa elevadíssima veneração pelos mortos, qual melhor destino do que este podem para eles desejar, contrastando com o anterior, aonde os seus despojos últimos têm a pisada indiferente do caminhante, e são passíveis da curiosidade intensiva do sábio, medindo-lhe as apófises?…

Decididamente não há vacilar entre um e outro caso; ademais a cremação satisfaz a todas as crenças; os cemitérios mesmos não perderão o doloroso encanto, a tristíssima poesia que os circunda, pelo possuírem, ao revés da terra apodrecida dos túmulos, as urnas funerárias, guardando as cinzas purificadas dos mortos.
 
E.C.

O Estado de S. Paulo, 15 de maio de 1892


Ainda bem que nos aprestamos para a próxima Exposição de América do Norte.Ainda bem — porque mais do que a satisfação do nosso orgulho de brasileiros, precisamos satisfazer o nosso imenso orgulho de americanos.

Parece que à proporção que se expande o espírito humano as fronteiras recuam; como que estalam e se abrem não podendo no âmbito estrito abarcar-lhe a crescente magnitude.

É por isto, certamente, que os filhos do novo mundo sentem e compreendem que a América é, na ordem moral, o mesmo que na ordem física — a pátria comum, a maravilhosa síntese de todas as pátrias…

As nacionalidades européias, que surgiram da ruinaria do império do Ocidente, derruído sob o frankisk dos bárbaros, trouxeram, por uma hereditariedade refratária aos mais generosos ideais da civilização, até ao presente, os velhos ódios que tão despiedados cindiram as raças conquistadoras, no início da Idade Média.

Aquelas fronteiras erriçadas de canhões, aquelas sociedades que se isolam, acolhendo-se, cada uma, num círculo rutilante intransponível de espadas — indicam à saciedade, que esta consciência moderna tão elevada e tão nobre, ali está num perene estado de sítio.

Como que no seio da Europa pisa eternamente o cavalo de Átila.

As mais altas criações do espírito humano partiram dela e ela assistiu o esboço e a constituição de todas as ciências — mas o seu seio revolto e pisado pelas marchas dos exércitos é verdadeiramente impotente para criar, completas, as grandes aspirações dos seus grandes pensadores.

A América afigura-se-nos predestinada a realizá-las.

Tomou à velha civilização a vasta base subjetiva das ciências e sobre ela erigiu, majestosa e fecunda, a sua existência industrial.

Daí, talvez, o seu cosmopolitismo; as ideias não têm pátria — e aparecendo, quando elas já eram dominadoras, as sociedades americanas, antes de criarem uma tradição guerreira, receberam em comum o seu influxo admirável e como que se irmanaram.

Decorre, por certo, deste fato este sentimento notável e novo, próprio aos filhos das diversas regiões do Novo Mundo — qual o de generalizar a pátria, medindo-a pelo enorme estalão dos Andes e das Mountains Rock, amplificando-a de um a outro pólo…

Realmente, se esta política americana, toda civilização e paz, ideada por Monroe, não é uma utopia irrealizável e se de fato, embora sem a base orgânica de um código fundamental comum, a vasta confederação das repúblicas americanas, graças à uniformidade dos sistemas políticos, é um fato de ordem moral, sobranceiro às fronteiras — podemos compartilhar das glórias que advirão à América pelo condensar na sua metrópole comercial as maiores criações do esforço humano.

Pela nossa parte, é dolorosamente certo que pouco contribuiremos para realçar-lhe o brilho e a notável opulência. Abandonamos ainda ontem o marasmo monárquico e somente agora a nossa atividade é livremente plebiscitada nos comícios da indústria.

Fomos os últimos a incorporarmo-nos à pátria americana.

É isto, porém, um motivo para que sejamos entre os primeiros a compreendê-la e elevá-la.

A Exposição de Chicago pode bem ser a prefiguração do que faremos em breve. E, se assim for, se isto se der, se eficazmente emulados pelos do norte os sul-americanos se alevantarem tanto, deixará talvez de ser um sonhador ousado, alguém que idealize a constituição final da pátria americana.

*

Realmente o Novo Mundo assume ante o antigo uma feição mui diversa a que antes este teve, do X ao XV século, o civilização do Oriente. Naquela idade, toda a Europa era um perene ansiar pelas maravilhas que a imaginação bizarra dos peregrinos lhe criava, nas paragens pelo Ganges.

As gentes ocidentais, olvidando todos os elementos de riqueza que possuíam, voltavam-se de todo para as terras de onde surgia o sol, como se trouxesse de lá todos os seus deslumbramentos. Daí as penosas deambulações para as ignotas paragens, veladas nos mistérios do bramanismo.

E quando, após o domínio dos mares, se aproximaram os dois mundos e se desvendaram os arcanos da Índia — todas as cobiças se satisfizeram largamente, mas o espírito humano espantou-se ante uma filosofia estranha, costumes desvairados e sanguinárias religiões!

Por uma circunstância notável, porém, um genovês ousado, nessa época, trouxe das suas viagens, ao revés de galeões cheios de ouro — um novo mundo. Como para compensar todos os males que originaria o enlace da anarquia medieval com as riquezas da Ásia — oposta a ela, nas bandas do Ocidente, surgia a pátria universal da indústria e do trabalho.

A Europa volta-se hoje para ela, como no século XIII para o Oriente.

O espetáculo é, porém, muito outro. As novas nacionalidades ensinam às velhas como se vencem as campanhas da paz, e mais que as riquezas da Índia dão-lhes os prodígios da indústria e o exemplo de uma grande solidariedade.

Ainda bem, pois, que pela nossa parte nós aprestamos desde já para colaborarmos num fato, que tão bem traduz o nosso alevantamento.
 
E.C.

O Estado de S. Paulo, 18 de maio de 1892


O pedido de habeas corpus, formulado agora, às portas do desterro, pelos degredados — degrada-os.

Entristece-nos a detalhada notícia que a este respeito lemos no Jornal do Commercio de 15 do corrente.

O rebelado vencido não pede; subordina-se à fatalidade das circunstâncias, que pelo lhe terem sido criadas por um ato de ousadia, não se podem afastar por um ato de humildade.

O demônio de Milton — é majestoso, é verdadeiramente grande e magnífico, porque ao rolar das alturas iluminadas, numa queda infinita, espalha pelos mundos os haustos febricitantes da revolta e torna para Deus, ao invés de um gesto mendicante, um incendido olhar de cólera indomável.

Embora esse supremo apelo de oprimidos se dirija à majestade da justiça e paire a justiça, soberana, sobre as cisões partidárias, os órgãos que as exercitam são constituídos pelos que compõem a ordem vencedora e está na dignidade do vencido o voltar-lhe obstinadamente o rosto, se não repudia o passado e não confessa que errou.

Ademais diz-nos a História exuberantemente que o degredo, o exílio, tem de algum modo sido um poderoso elemento de propaganda; ao invés do que se dá fisicamente, o afastamento aumenta a estatura do exilado; pelo afastar-se da sociedade como que ele se aproxima do futuro; é uma individualidade posta em evidência de uma maneira notável e por isto mesmo que o sentimentalismo é a base comum da índole de todos os povos, a auréola de mártir que lhe circunda a fronte vale pelos mais poderosos argumentos e lhe é um começo de vitória.

O desterro é de algum modo a exemplificação prática da sua força; quer dizer certamente que a pressão do meio não é bastante rígida para quebrantar-lhe a ação e inúmeros são os exemplos da maneira por que esta se avoluma poderosa e alta, para poder ser percebido pela pátria longínqua…

Além disto o exílio foi sagrado na História — o castigo ilustre por excelência, castigo que é de algum modo um prêmio indireto às grandes energias, que por muito poderosas, desequilibram as sociedades.

Nas épocas mais bárbaras da maior antiguidade, os governos insolavam os cidadãos ilustres, quando podiam extingui-los de vez, como que por uma presciência do futuro, em função dos seus grande ideais, das suas extraordinárias utopias. Ele tem sido o indispensável coroamento das maiores existências; é como que uma larga porta aberta para a História, e, fitando o conjunto humano, vemos transpô-la um admirável grupo de imortais.

Não o entendem assim, os nossos revolucionários. Ao se aproximarem das barreiras do exílio — em vez da serenidade estóica, de levantarem altivíssima a consciência sobre todas as agruras — fazem uma coisa banal, mas para nós inesperada — explicam-se e reclamam… Por maior, por mais necessária que seja a independência dos poderes, eles harmonizam-se nas medidas extremas que tendem à salvação da ordem.

No caso atual, o poder judiciário, pelo absoluto silêncio, sancionou a ação executiva.

Por que lamentável incoerência, pois, se dirigirem os revolucionários, aos que tacitamente se alistaram entre os que os oprimem?

Fez mal entretanto o juiz seccional do Pará, denegando o habeas corpus impetrado; por isso mesmo que o pediram os desterrados mostram que não merecem o desterro; são inofensivos e fracos — afastaram todas as culpas numa longa série de considerandos; e a sua volta teria para nós o valor de salvar toda uma tradição secular de constância inabalável, que caracteriza o revolucionário vencido, no desterro.

Nesse balanceamento da sociedade, em que as posições se mudam numa constante reação de contrastes — é bem possível que sigamos um dia para onde eles hoje não querem seguir — e se assim for, que não tenhamos uma reminiscência, de deplorável fraqueza sequer nos lugares aonde deve imperar a mais alta resignação.

O Estado de S. Paulo, 22 de maio de 1892


Há seis anos desoladora nova perpassou a Terra: — extinguia-se em Paris o poeta extraordinário, que se nacionalizara em todas as pátrias, pelo condensar melhor do que qualquer outro talvez, no amálgama ideal de bronze e ouro de seus versos eternos, essa síntese afetiva continuamente crescente, que se espelha em todas as literaturas, e é o ponto de apoio de todas as nacionalidades e a garantia mais sólida de todas as civilizações.

Realmente, se qualquer literatura define uma nacionalidade, pelo se basear inteira no sentimento hereditário da raça e a subordinação às tradições nacionais, Vitor Hugo, o genial e extraordinário romântico, é mais do que o poeta da França; pertence ao nosso século — porque o que todos nós sentimos, palpitando veemente, fulgurante e sonoroso, através dos seus alexandrinos imortais, não é a alma de uma sociedade, mas sim todo sentimento humano!

O sentimento da pátria, a inexaurível fonte dos maiores lirismos, em torno ao qual têm vivido todas as musas, não lhe bastou à desmedida afetividade e vemo-lo ligando-o ao sentimento maior da solidariedade humana — intentando assim, por uma intuição de vidente, esse consórcio final da Arte com a Filosofia, a que chegaram também os pensadores modernos, porém através de longas, penosas e severas meditações.

É por isto talvez que ele não foi um clássico; o classicismo, que se pode definir como uma veneração exagerada pelo passado, quebrara por largo tempo a continuidade do sentimento humano — restaurada felizmente na Idade Média pela Renascença e no século XVIII pelo Romantismo — e não podia por certo satisfazê-lo.

Nascendo com o seu século, parece ter-se indissoluvelmente ligado à época extraordinária das maiores revoluções da filosofia, da política e da arte e intentado a tarefa de refleti-las todas.

Assim é que através dos seus livros notáveis vemos além do estudo exagerado das paixões, defluindo — ora um vago e indefinível misticismo, uma filosofia singular — a idealização maravilhosa de um deus sem altares, cabendo melhor nos corações do que nas catedrais; ora um formidável e impenitente delírio revolucionário e vingativo, explodindo na orquestração selvagem e maravilhosa dos Castigos

A revolução ocidental, que é inegavelmente o melhor trabalho dos Enciclopedistas — pusera no seio de todos os povos os gérmens de regeneração política e em todos os cérebros, os primeiros elementos da regeneração filosófica.

Era preciso, porém, alguém que idealizasse essa existência moderna, que dela se derivou, alguém que, exagerando embora as verdades da filosofia e da política, as interpretasse à humanidade, sob a forma atraente de utopias e de ideais deslumbrantes.

Esta função foi admiravelmente exercitada pelo homem extraordinário, de cujo nome nos lembramos hoje.

Não nos damos à tarefa, ademais dispensável, de enumerar-lhe todas as fases, em sua translação pela terra, nem todas as grandezas de seus sonhos, que dimanam, multiformes, das páginas tranquilas das Contemplações às páginas explosivas do Ano terrível. Temos, além disto, unicamente o objetivo de impedir que passe despercebido, hoje, um nome, sobre o qual parece que se começa a fazer um esquecimento além de injusto — ingrato.

Embora reconheçamos que ele não é o primeiro homem deste século — não nos inibe isto de venerarmos profundamente ao sonhador extraordinário que tão bem idealizou a fraternidade humana — que será amanhã uma conquista de filosofia e tão bem preconizou — a república universal — o que será a maior conquista, amanhã, da política moderna.
 
E.C.

O Estado de S. Paulo, 5 de junho de 1892


Não há filósofo apedrejado ou político vencido que, após atravessar as asperezas de uma propaganda infecunda, não se volte, no último estádio da vida, para a mocidade, num supremo apelo — tornando-a legatária exclusiva das suas aspirações mal compreendidas ou paralisadas pela inércia inconsciente do meio.

Ela é a representante mais próxima do futuro — e, quase sempre, surge como que predestinada a encarnar todos os ideais dos gênios incompreendidos, Daí o constituir-se a sua derradeira esperança.

Parece, realmente, que à energia moral dos velhos pensadores faz-se indispensável a aliança com o sentimento vigoroso das gerações que surgem, sem o qual ela deperece, estéril e improdutiva.

Esses que passam pela vida, alheios a si mesmos, perdidos numa abstrata contemplação da existência geral, nem sempre como Newton, presenciam a vitória do próprio pensamento; estiolam-se, clamando num deserto singular de multidões indiferentes; nem sempre vão, como o pensador britânico, numa Westminster opulenta, nobilitar as sepulturas dos reis, e, para que todos seus esforços não se extingam, faz-se-lhes preciso prender às suas existências, que acabam enfraquecidas, as existências que começam vigorosas.

Nos tempos maus das crises, em que a dispersão dos sentimentos e das ideias simboliza a própria decomposição social, é ainda a mocidade, por um notável contraste com a sua índole sonhadora e inquieta, a classe conservadora por excelência, guardando, intactos, todos os princípios.

É preciso porém que a mocidade não seja — criança.

A puerícia é mais natural aos velhos do que aos moços. Por isto mesmo que o sentimento predomina nestes, as suas ideias têm um estimulante mais enérgico e devem erigir-se — vigorosas e sérias.

Na fase atual sobretudo faz-se precisa a mocidade brasileira, como que uma grande austeridade de velhos.

Enfrenta, seguindo para o futuro, uma sociedade convulsionada — e já que se lhe faz imperiosíssimo o dever de não isolar às lutas que a cindem, que as iniciem com a palavra alevantada dos fortes e não com os balbucios e devaneios infantis…

Lastimamos não encontrar essa atitude na Mensagem dirigida pelos acadêmicos baianos ao mestre ilustre por ocasião de ser desterrado.

Ninguém certo ousará condenar sentimento que a criou; foi elevadíssimo e generoso, infelizmente porém mui pouco aproveitado.

A mocidade do Norte perdeu uma magnífica ocasião de fixar, perenemente, num documento político, toda a grandeza da sua alma ardente e fulgurante e que é como que modelada pelos firmamentos vastos do equador, puríssimos, cheios de sol, vibrando imensos na gestação prodigiosa da luz…

A ocasião era entretanto propícia para isso; não quis porém e ao revés da palavra severa de pensadores e combatentes ela circundou a desventura do mestre, com o lirismo rudimentar, como mensagem exclusivamente sentimental, cuja essência extratamos:

Jovens e acadêmicos, longe do torrão natal, soluçando beijos e carinhos maternais, fomos dolorosamente impressionados quando até nós chegou a notícia da dupla ofensa que sofríamos, e protestamos desde logo manifestar-vos a cruciante dor que nos acabrunha.

Sim, manifestar-vos para que todos saibam que não se maculam impunemente as pétalas queridas do coração da mocidade.

Manifestar-vos para que não se julgue que desapareceu do seio da juventude a mais linda e delicada virtude, aquele que nasceu de um beijo trocado nos lábios purpurinos de dois serafins: a Gratidão. Sim, se tivéssemos abandonado este honroso posto, amanhã, os pósteros veriam que o defensor impávido e altaneiro da mocidade tinha sido desprezado num momento crítico, quando precisava rever em palavras consoladoras o que tinha dado em sacrifícios.

Não; os moços não mentirão aos seus princípios nem deixarão que se ponha em dúvida a impolutação de seus caracteres.

Baianos, seríamos degenerados se, na hora angustiosa da vida de um coestaduano, não corrêssemos a animá-lo já que não podemos mostrar o lugar que o espera no peito da pátria.

Seríamos indignos da Bahia se não procurássemos acariciar a intemerata cabeça baiana que se sente pequena para conter o peso de tão grandes e soberbas ideias.

Não, baiano audaz, nós estaremos ao vosso lado, e se cairmos glorificados na luta o paleontólogo encontrará mais tarde muitos esqueletos abraçados a um só, e saberá que foi o mestre baiano que tombou com seus discípulos.

Pusemos aí grifos a esmo, quase.

Seguem-se meia dúzia de linhas, que nada mais adiantam.

Sem fazermos comentários — é preciso entretanto convir que tudo isto está muito longe de definir aquela mocidade brilhantíssima do Norte, aonde o talento é quase tradicional e de onde segundo uma frase que se vai transformando em provérbio “parte a luz”!

O Estado de S. Paulo, 12 de junho de 1892


Decididamente vai-se tornando indispensável uma locução nascida ontem e já velha pelo uso — esta maneira de designar fin de siècle a todas as extravagâncias mais ou menos espirituosas, mais ou menos elegantes que expluem de todas as sociedades, nesta extrema velhice do século mais fecundo e mais brilhante que tem havido. Por uma circunstância notável, o século XVIII tão ilustre e tão nobilitado, pela Enciclopédia, teve os derradeiros dias, delirantes e tragicamente extravagantes; a metafísica, lentamente acumulada no espírito dos filósofos, expandiu-se amplamente no delírio extraordinário das revoluções políticas, convulsionou todos os costumes e todas as crenças e definiu-se vitoriosa, criando politicamente 1889 e filosoficamente — o culto da Razão.

Ela define afinal toda aquela época agitada; e o historiador de talento tem na filosofia uma base magnífica, para caracterizar o término agitado do século de Voltaire.

Qual, porém, o espírito bastante robusto para fazer a diagnose de um século de trabalho, cheio das maiores conquistas da inteligência, do sentimento e da atividade humana, mas cujos derradeiros dias disparatam de toda a sua imensa história?

Está bem visto que não intentamos fazer a sua crônica gigantesca; sugeriu-nos estas linhas a leitura de uma acabrunhadora notícia, num jornal parisiense, a Petite Presse.

Até pouco tempo éramos nós, filhos da raça latina, que aqui, na França, na Itália ou na Espanha, escandalizávamos a grande era trabalhadora, com os desvarios do nosso temperamento irrequieto e extravagante — como elemento conservador alevantava-se a sólida raça saxônica, fria, operosa e sistemática, seguindo para o futuro com um grande respeito às tradições do passado.

Deplorável nova, porém, diz-nos que a tendência universal, fin de siècle, de indiferentismo doentio, parece ter-lhe assaltado a rígida e austera consciência.

Relata-nos o confrade parisiense o grande embaraço em que se acha uma associação de antigos militares alemães.

Patriótica e guerreira, a marcial associação inaugurou, em Berlim, grandiosa estátua do velho imperador, do homem extraordinário que fez a Alemanha e descobriu Bismarck — Guilherme I.

Este movimento fora objeto de uma subscrição cujos organizadores tal confiança alimentavam de sucesso que fizeram-no a crédito, dando como garantia o espírito patriótico da velha raça guerreira. Infelizmente porém foram diminutos os subscritores.

Debalde apelaram os patriotas para o patriotismo; por mais intensivo que se tenha feito esse apelo, não conseguiu a metade da quantia para pagar os artistas e as demais despesas da empresa. Desta arte apresenta-se um dilema assustador — ou se consegue a quantia necessária, ou o martelo do leiloeiro percutirá escandalosamente a efígie do herói de Sadowa e a sua majestosa figura de bronze, destinada a pertencer a uma nacionalidade, irá pertencer a quem mais der!

E a folha parisiense termina com uma ironia cruciante, com essa ironia dolorosa do francês, que não esquece Sedan: La carte à payer est là

Que magnífico exemplo para nós: como nos educam as velhas sociedades cheias de tradições e de glórias — nesta quadra que bracejamos como náufragos, assoberbados pelos maiores problemas políticos, para cuja solução devemos procurar elementos mais do que nas paixões dos partidos, no sentimento nacional!

Não nos espantemos, pois, com o que por aí vai; a dispersão dos sentimentos é plenamente geral; o grande século, após viver como um pensador eminente, acaba como um boêmio desiludido; e, presas pela mesma vertigem, marchando sem norte, sem ideias e sem filosofia as sociedades de hoje parecem dizer como os cavalheiros da corte mais dissoluta da história:

Après moi, le deluge!

O Estado de S. Paulo, 19 de junho de 1892


Sei de alguém que tem, atualmente, para as coisas da pátria, a curiosidade, nada mais que uma curiosidade perfeitamente natural de touriste; contempla o que aparece com a profunda indiferença de um felá; lê os jornais de Paris de preferência aos diários indígenas — espécie de exilado subjetivo, vivendo através de uma grande abstração, é muitas vezes a contragosto que ele se torna para a sua terra, que se lhe afigura muito afastada e longínqua.

Entretanto, à vezes, vale a pena transpor esta fronteira ideal.

Despontam por aí coisas bizarras e interessantíssimas, desafiando vitoriosamente as mais incuriosas vistas. Enquanto alguns entendem que atravessamos um período unicamente sério, e o governo, com a abnegação estoica, redobra esforços ante as delicadíssimas situações de uma política, que se vai tornando das mais instáveis da América, o resto da sociedade compraz-se em estar no melhor dos melhores mundos possíveis. Daí um notável jogo de antíteses entre os homens, entre as ideias e os fatos — um perene contrastar de coisas altamente sérias e coisas altamente cômicas.

Observa-se mesmo que a feição despreocupada e feliz, de certa parte da comunhão brasileira, ostenta-se mais franca e aparece precisamente nas fases mais trágicas e perigosas; — como que ela se deleita em dizer a nota alegre de uma extravagância, no seio dos mais graves acontecimentos; nota que aí surge como a casquinada de um down, na penumbra de uma tragédia, ou uma cópia de Offenbach, em meio da ostentação solene dos Nibelungen…

Ainda ontem verídica ou falsa, inclinamo-nos mais a supô-la falsa, ainda ontem alcançou-nos a nova de uma sublevação no Rio Grande. Ao que diziam agitara-se a terra dos gaúchos aventurosos e valentes: os heroicos centauros do Sul, levantaram as lanças tradicionais e apresentavam-se à luta, revivendo nos pampas o eco amortecido das antigas batalhas.

Conturbaram-se as almas dos patriotas; abriram-se profundos sulcos, verticais e graves, nos frontes pensadoras, aptas a avaliarem todas as consequências do extraordinário acontecimento; sussurraram comentários e previsões ousadas — e, através de um sombreado de conjecturas, os mais apreensivos divisaram, no futuro, o espantalho dessa tristíssima guerra, que se diz civil, e é toda ela uma contínua derrota…

O antídoto para tão graves apreensões, porém, não se fez esperar; não era justo que permanecêssemos agitando o ser e o não de uma conjectura desagradável.

Ele veio, simultaneamente, minúsculo, microscópico, profundamente banal, mas característico destes tempos, como um guizo jogralmente agitado por cima de um vasto retinir de espadas.

Veio pelo mesmo telégrafo que nos trouxera aquele:

“O bispo recusou-se ontem a benzer a bandeira do 2º batalhão da guarda nacional por ter escrito o lema — Ordem e Progresso.”

À primeira leitura tivemos desejo de enviar ao venerando prelado os mais sinceros e fervorosos agradecimentos. Vimos no seu ato uma reação vigorosa ao escandaloso anacronismo de sobre por bênçãos tranquilas de levitas a instrumentos guerreiros — deplorabilíssima usança em que todo o misticismo cristão prestava-se a sancionar futuras hecatombes.

O eminente pastor teve, ante nós, a postura altamente simpática de um revolucionário generoso e bom, estabelecendo, nesta terra, aonde o próprio santo Antônio foi tenente-coronel platônico, uma grande separação entre o Evangelho e o código do conde de Lippe.

Realmente, o próprio dogma cristão parece evolver admiravelmente e já existe uma grande distãncia do arcabuz do Cura de Santa Cruz à última encíclica de Leão XIII aos bispos franceses.

Tudo isto imprimiu-nos à primeira leitura a mais salutar alegria. Nem mesmo perturbamo-la pelo considerar todo o desapontamento do heroico batalhão, que já agora tem a perspectiva assustadora dos combates, sem a égide da benção apostólica…

Imensa desilusão reserva-nos porém o final da notícia. O venerando prelado não teve em mira dar uma lição de moral genuinamente cristã, aos bravos cobertos de futuras glórias. Recusou a bênção impetrada porque existe na bandeira o lema “Ordem e Progresso”!

Ante isto, enveredamos por um indecifrável caos de dúvidas, repleto a transbordar de pontos de interrogação, assustador, medonho.

O que existe nestas duas palavras, tão profundamente humanas, tão extraordinário que espante ao eminente príncipe da Igreja?

Debalde tateamos o dédalo  das maiores cogitações; — a única conclusão a que chegamos é que, a prevalecer o motivo apresentado, o batalhão da guarda nacionais jamais obterá a bênção desejada — mas, Ravachol pode pedi-la e obtê-la, até pelo telégrafo…

O Estado de S. Paulo, 22 de junho de 1892


Infelizmente somos obrigados a confessar que têm motivos de sobra, para os maiores júbilos e alentadora alegria, os que diuturnamente alfineteiam — inofensivos mas perseverantes — a rígida armadura do atual governo.

Por uma casualidade, nimiamente favorável aos minúsculos Bayards da oposição, ele está a estas horas entre dois fogos. Mato Grosso, apesar de vastíssimo, já estava afinal exaurido para a exploração política; a problemática, a quase ideal república transatlântica, volatizava-se, como um sonho, e mal se constituía base a essa retórica estrugidora, através da qual reverbera a paixão oposicionista, que se nos afigurava prestes a desaparecer, esvaída e exangue, à mingua de desastres; as jeremiadas, calculadamente entoadas em torno das agruras e sofrimentos dos desterrados, iam-se também, e a pouco e pouco, deperecendo, extinguindo, ante outras coisas mais urgentes e mais sérias. Ameaçavam-nos já alguns prenúncios de ordem, solidamente estabelecida, em uma certa estabilidade no prestígio admirável das leis.

Há, porém, um deus para eles; deus que não é por certo inofensivo e benfazejo, mas misterioso e assustador, como os que apavoram as gentes indianas; espécie de Shiva impiedoso, que lhes creia infatigavelmente a sombra protetora dos desastres, a aliança perene com todas as calamidades.

Realmente, a estas horas, deve haver um vasto restrugir de cantos festivos e ovações delirantes, nos arraiais dos que soem bater-se unicamente abroquelados pelas ruínas da pátria.

O governo acha-se entre dois fogos; agita-se o Rio Grande, Pernambuco agita-se; a conflagração do Norte responde à conflagração do Sul; os homens de 1817 acordam aos brados dos valentes de 1835; tudo isto pode ter consequências gravíssimas. A desordem no seio da pátria é correlativa com a desconfiança do estrangeiro. Em compensação porém o governo pode oscilar, vacilam as posições — e por sobre toda essa ruinaria anelada avulta uma adorável perspectiva de lugares vagos, de posições a ocupar…

Deve haver, pois, a estas horas, no rez-de-chaussée da política nacional, um grande restrugir de contos, festivais e ovações delirantes.

Toda esta alacridade há de passar, porém, rapidíssima, efêmera, como tantas outras. Demais, ela não nos assusta; a energia dos governos faz-se muitas vezes no seio agitado das revoltas; a agitação rio-grandense, porém, inegavelmente a mais perigosa, não se generalizará.

A vitória de Júlio de Castilhos, vitória que com a maior sinceridade aplaudimos, não só está muito longe de traduzir a reação vitoriosa contra o atual estado de coisas, como é uma sólida garantia da paz. É preciso que não se envolva, em paralelos criminosos, o moço ilustre que é a mais alta esperança do Rio Grande, e que é verdadeiramente um forte — na triste série de governantes depostos, frágeis e sem ideais.

Para qualquer, rudimentarmente conhecedor da política do Sul, a sua vitória exprime, sobretudo, a derrota de um partido que, nas condições atuais de nosso país, pode ser considerado o inimigo comum — o gasparismo. Sob este ponto de vista, o advento dos castilhistas é o maior benefício que se poderia fazer às instituições republicanas, levantando-as, vitoriosas, no mesmo lugar em que parece terem-se asilado os últimos restos de esperança na restauração monárquica. Tão compenetrado disto parece estar o governo que, tendo no Rio Grande a metade do Exército, e podendo, sem violar a Constituição, que prevê o caso de agitações nos Estados, intervir — guarda a mais inteira, a mais completa neutralidade, não perturbando pelas armas a marcha triunfal das ideias republicanas naquele Estado.

Iludem-se, pois, mais uma vez, os que batem palmas as agitações que surgem; a do Rio Grande é altamente salutar, a do Norte inteiramente local e insignificante. Não é desta vez ainda que o ideal mazorca irromperá triunfante sobre a ordem desmantelada.

Há por certo, nestes dois acontecimentos, motivos para que se expanda o lirismo oposicionista; de fato, cada um deles pode originar novas e aventurosas explorações; não terão porém outra conseq uência.

Acabávamos de traçar estas linhas, quando um telegrama, acima de toda a suspeição, nos dá a notícia, já esperada, de que o governo de Júlio de Castilhos presta o mais franco apoio à política do governo central.

Decididamente começamos mal e este artigo — felizmente podemos confessar que não têm, absolutamente não têm, motivos para maiores júbilos a alentadora alegria, os que diuturnamente alfineteiam — inofensivos mas perseverantes — a rígida armadura do governo atual.

O Estado de S. Paulo, 29 de junho de 1892


É velha entre nós, a campanha contra o positivismo. Se houvéssemos a intenção de enumerar, entre as coisas profundamente tristes destes tempos, tudo o que se tem escrito acerca da nova filosofia, certo esquissaríamos uma Coréia fantástica, feita de toda uma imensa agitação, todo um incoerente tripudiar de filósofos desocupados, de clérigos iracundos e cronistas trocistas.

Renunciamos à empresa: fugimos ao espetáculo espantoso, dessa espécie de psicólogo sabbat de ideias arrevesadas, teorias desvairadas e utopias delirantes, com o mesmo espanto e terror que possuíam as crédulas almas das gentes medievais, ante os bailados demoníacos, que a imaginação lhes criava — na encosta solitária das montanhas ou à sombra silenciosa das catedrais…

Ultimamente erigiram Huxley contra-regra formidando e monótono e incorreto melodrama de maldições — e o eminente fisiologista, cujo espírito, aliado ao de Haeckel, teve lucidez para através dos mais íntimos recessos da matéria descortinar a feição primordial da vida, dando a base física do plasma à complicadíssima e admirável arquitetura da existência universal — Huxley, talvez nem saiba, em seu retiro, na sua grande abstração de sábio, que tem entre nós tão inesperada missão. Imagina-se Turenne, correto, brilhante e cavalheiro — a comandar um esquadrão de tártaros…

Está bem visto que não nos propomos, por demasiado frágeis, à empresa de terçar armas pela religião, positiva, à qual não pertencemos, porque, neste iniciar da vida, um ideal filosófico nos é ainda uma aspiração, destinada a realizar-se mais tarde e definindo a altitude máxima da consciência, surgindo de um amplo conhecimento do mundo.

Por ora seguimos sem Deus, sem chefes; não corremos riscos de revogarmos amanhã o que pensamos hoje.

Nada mais deplorável do que esse viver automático dos que se agitam de pronto, à mercê das teorias filosóficas; preferimos seguir lentamente, na formação desse mundo interior, indefinido e vasto, e que constitui afinal o único prêmio, real e inalienável, de todos os esforços de nossa inteligência e de nossa afetividade.

Temos entretanto pelo genial instituidor da filosofia positiva, à luz da qual estudamos, admiração bastante para que nos seja difícil sofrear o espanto ante a maneira por que o impugnam, maneira que não se traduz por um combate, franco e desassombrado, mas que é como um apedrejamento.

É doloroso o quadro dessa campanha intransigente e cega, movida sobretudo pelos que parecem possuir elevação bastante, para compreenderem toda a grandeza do pensador, que foi como o herdeiro feliz de todas as criações da elaboração mental do século XVIII e que, sem exagero o dizemos, traduziu Descartes para o século XIX e instituiu a síntese subjetiva.

É realmente inexplicável tamanho combate contra o filósofo eminente cujo maior crime parece estar no aniquilamento da metafísica; cuja maior falta consiste em ter nobilitado a concepção social do conjunto humano — substituindo aos intermediários subjetivos, imaginosos e intangíveis, que aquela estabelecia entre o mundo e o homem, a noção altamente filosófica da Humanidade.

Por uma circunstância notável, a serenidade imperturbável e até certo ponto altiva, do pequeno grupo de positivistas, contrasta visivelmente com todo o açodamento impugnador. Não vão à imprensa, não vão às tribunas; trabalham, lutam e pensam — alheios a todo o esgotamento inútil e à ação dispersiva das polêmicas estéreis.

Daí a simpatia de que são credores — mesmo daqueles que como nós se acham muito afastados das crenças que os impulsionam.

A biografia de Benjamin Constant, por Teixeira Mendes, livro em que se reflete admiravelmente a alma diamantina do fundador da República, exemplifica o que dissemos.

Enquanto acirradamente o imprecavam, através das doutrinas que adota, esse moço ilustre, perfeitamente incompreendido pela massa geral dos seus contemporâneos e que guarda um grande e obstinado silêncio ante todos os ataques — reconstruía, lenta e conscienciosamente, em toda a sua grandeza, a individualidade talvez a mais pura da nossa História.

Será, por acaso, tão perniciosa e condenável a filosofia que intenta e realiza tais empresas?

Pela nossa parte, respeitamos profundamente os que consideram a veneração pelos grandes homens como o “problema capital dos nossos tempos”, já que verdadeiramente as grandes individualidades do passado são as que velam melhor sobre o destino dos que seguem, demandando o futuro…

O Estado de S. Paulo, 3 de julho de 1892


Acabamos de ler o discurso do sr. Epitácio Pessoa. Oração enérgica, brilhante e imaginosa ela define admiravelmente o nosso sentimentalismo agudo e mostra até que ponto a dor augusta dos infelizes é comovedora, refrangendo através de um coração altamente lírico e moço — que posto como um prisma entre nós e os desterrados políticos, empresta a toda amargura que os punge todos os cambiantes, multicores e exagerados, da palavra e da retórica parlamentar.

Afinado pelo diapasão da sentimentalidade rudimentar que nos caracteriza, é bem de ver que as vibrações da sua palavra incendiada, irrompendo do estreitíssimo âmbito do Parlamento, acharam fora um vasto campo para o máximo elastério, dilatando-se por todo o país e imprimindo em todos os peitos o ritmo agitado das grandes emoções.

Nós mesmos que, para garantia do próprio espírito, invertemos em tudo o que se refere aos acontecimentos atuais, a velha fórmula que regula a aquisição das ideias — isto é, nós que, calculadamente, nos habituamos a pensar antes de sentir, embora assim abroquelados, não sofreamos o ímpeto da primeira onda; comovemo-nos e idealizamos uma tela de Rembrandt — erma de luzes, pavorosa e constritora, aonde em meio da desolação dos descampados um grupo de mártires, sob os olhos silentes das estrelas, pairava, tendo sobre as frontes, latente, uma grande noite, a saudade da pátria…

Não há, de fato, tese de mais fácil e ampla explanação do que esta. Orador, ao galgar a tribuna, começa por ter, naturalmente, todo o auditório a seu lado; vai fazer vibrar a nota sempre altíssona do velho sentimento humano: não precisa dominar, prendendo-as aos liames fulgurantes da dialética, as inteligências — dirige-se aos corações; não precisa elevar o assunto — o próprio assunto eleva-se e eleva-o; não necessita quase defender-se — ninguém o ataca; todos afinal o aplaudem, porque iluminada por tal oratória a tribuna não é uma posição de combate, é sagrada — é um púlpito!

Toda essa eloquência porém não resiste a uma reflexão medianamente lúcida: fora desta corrente hipnótica, que circula as tribunas, a consciência reassume o seu império inviolável e reage sobre a ebriez das emoções: o tribuno enérgico, vigoroso e brilhante, comove-nos pintando tetricamenteo destino dos homens, tudo isto porém esvai-se ante a lucidez do espírito bastante que nos mostra o destino da pátria.

É forçoso convir; nós não estamos numa quadra tão fácil e feliz que faculte esse desperdício inútil de emoções a esse constante expluir, gongórico e extravagante, de fraudulento lirismo, que invade os jornais e as tribunas; deixemos de uma vez a exploração pecaminosa de todas as dores e de todas as calamidades; batamo-nos à luz dos nossos princípios, adversos embora, sem o acompanhamento obrigado dessas eternas loas de infortúnio; desse constante salmodiar de agruras…

Mais lógicos, por certo, eram aqueles bardos hebreus da antiguidade bíblica, que iam, nos dias da escravidão e desgraças nacionais, dependurar as harpas nos ramos dos salgueiros, nas ribas agitadas dos mares e quedavam-se após, silenciosas, deixando que os haustos das procelas vibrassem-nas, me longas notas discordantes e doloridas…

Realmente, não há a mínima vantagem nesse constante retaliar de questões quase que meramente sentimentais, numa época em que se faz preciso atender de pronto às necessidades reais e urgentes do país. Se os desterrados políticos, por frágeis e inofensivos, não merecem o exílio, que se lhes dê a anistia salvadora. Para que, porém, tentar ir avante, quebrar lanças por uma absolvição que seria ridícula ante a evidência do crime?

Todos nós compreendemos o infortúnio dos compatriotas desterrados, mas certos de que erraram, temos como um erro maior — um longo tempo perdido com o intuito de negar a falta.

Temos um notável exemplo no Chile. Segundo lemos há pouco, a terra varonil que, simultaneamente com a nossa, atravessou a crise revolucionária, restaura-se, alevanta-se revivescente, quando a ruinaria foi por certo muito maior por lá, visto como a energia poderosa de Balmaceda só se pôde extinguir no centro das batalhas. Entretanto cindem ainda a sua política todas as dissensões partidárias antigas; congressistas e balmacedistas investem-se ainda, em prol de antigas ideias.

A verdade, porém, é que o Chile se levanta do aniquilamento anterior, e isto, em grande parte, porque os chilenos não perdem, como nós perdemos, numa luta de represálias, um tempo utilíssimo em liquidar longamente as questões do passado, antes as imposições do presente.

Nós fazemos o contrário: logo ao assumir o poder o governo foi distraído pelos atos dos que conspiravam; reúne-se o Congresso e distrai-se com os atos do governo. E entibia-se a ação deste último e acirram-se todas as paixões, todos os ódios partidários e aumenta-se ainda mais essa prejudicialíssima desconfiança do estrangeiro, que nos deprime o crédito e reage da pior maneira sobre toda a nossa vida econômica.

Longos discursos sentimentais e vagos, visando as mais das vezes o renome pessoal e uma espécie de imortalidade à la minute, através do aplauso das galerias, eis toda a gestação da minoria.

Os que assim procedem terão ao menos a fortaleza e abnegação bastante para ao nosso lado, amanhã, lutarem para debelar todos os males que por acaso produzam?

Que nos responda o futuro.

O Estado de S. Paulo, 6 de julho de 1892


Veio e passou, célebre como um sonho, a agitação de domingo, deixando o rastro obrigado de cabeças e vidraças desmanteladas. Não temos porém por tal forma insignificante, em si, a mazorca malograda que não a consideremos assunto para os comentários da crônica.

Naturalmente os que, de longe, dela tiveram notícia, através do laconismo comprometedor do telégrafo, divisaram idealmente toda esta cidade vibrando, convulsionada, tendo no seio a febre devastadora da revolta, o tumultuar ruidoso de massas populares enraivecidas e a ação repressora do governo, defluindo das cargas de cavalaria, enérgicas e prontas.

O quadro não foi entretanto tão dramático e sério, sejamos francos; a exígua fração irridenta e desocupada, da colônia italiana, não teve, para a realização dos planejados desmandos, o apoio dos próprios compatriotas e dissolveu-se ante um simulacro de reação, com imenso desapontamento por parte dos que tão desastradamente a exploraram.

O próprio fato do despedaçamento covarde da nossa bandeira indica eloquentemente o valor moral da manifestação e dos manifestantes: não foi por certo a colônia italiana que o praticou; os que tal realizaram não têm pátria — pertencem a essa feição amorfa, repugnante e indefinida que constitui a vasa de todas as nacionalidades de tal sorte que quem até ela desce não reconhece o francês ou o alemão, ou o brasileiro ou outro qualquer povo — vê unicamente a escória comum e tristíssima de todas as raças porque só infamam a bandeira de um povo os que não têm pátria!

Não fosse esse fato, fonte da mais justa e ríspida represália, e o meeting de domingo resumir-se-ia nas passeatas inofensivas de alguns turbulentos agitando-se inconscientemente, como marionettes tristemente explorados em sua rude ingenuidade, pelos que calculadamente se abroquelam na sombra.

Nós fazemos justiça, a mais ampla e segura justiça aos compatriotas de um dos soldados mais francos e varonis deste século — Garibaldi; o italiano, herdeiro mais próximo desse espírito cavalheiresco, bravo e brilhantíssimo que tão de pronto caracteriza a nossa raça, certo não se presta à função inglória do arruaceiro vulgar, não sai, anárquica e turbulentamente, às ruas, para tomar mais tarde a fuga banal dos garotos. Estamos seguros, a menos que não admitamos totalmente degenerado o espírito de um povo, que a colônia italiana, a sua maioria honesta e digna, dissolveria a agremiação desordenada, se a não precedesse o governo.

O estrangeiro inteligente e diligente, e de tal nota temos muitos, compreende que não é, entre nós, um hóspede; vem para o seio de uma nacionalidade nova, que se refunde à luz de um ideal político — que se agita numa convulsão fecundíssima, porque traduz a entrada triunfal de novos princípios, tonificadores e enérgicos na alma de um povo; sabe, pois, que entre nós, melhor do que em qualquer outra sociedade, definida e estável, ele pode mais prontamente se adaptar e se nacionalizar, constituindo-se até poderoso elemento étnico para a feição por vir e próxima que assumiremos.

Neste início de vida republicana não são únicas a se transformarem as instituições políticas — senão que é visível a transmudação dos nossos costumes. Todas as lutas políticas e todas as dificuldades do presente têm o valor de reagirem sobre o caráter nacional, que inegavelmente envolve, tendendo a elevar-se ainda mais — e, nessa movimentação maravilhosa, a imigração européia, que desejamos e pedimos, é como uma experimentada e segura mão que nos estende a velha civilização, guiando-nos para o futuro.

Foi por isto que a feição honesta e digna do jornalismo explicou limpidamente o lamentável caso de Santos. Infelizmente sem resultado.

Agora, ante os últimos acontecimentos, pode a maioria digna e consciente da colônia italiana, assumir as responsabilidades que lhe sejam corolários?

Acreditamos que não. Parece-nos que ela, de há muito fraternizada à sociedade brasileira, pelo trabalho e cooperação comum para o nosso progresso, não deve, não deseja e não pode sancionar a insânia dos que criminosamente, transformando em sediciosa a bandeira de uma nação amiga — e irmã nossa pelas mais íntimas afinidades de raça, passearam-na pelas ruas, num alarido deprimente, rompendo à sua sombra a solidariedade com um povo, que os acolhe, obrigando-o à mais desassombrada represália.

Muito menos alimenta-nos qualquer temor de futuras complicações internacionais; fora descrer da atitude da política moderna e sobrepor arruaças sem valor à grande amizade das nações, ou admitir a aparição de notas diplomáticas num caso que modestamente faz jus às notas policiais.

Como citar
CUNHA, Euclides da. Dia a Dia. EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Crônicas. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/cronicas/. Acesso em: [data]. Série de 27 artigos publicados em 1892 por Euclides da Cunha n’ O Estado de S. Paulo. Reprod. CUNHA, Euclides da. Crônicas. In: Obra completa. Notas de Olímpio de Sousa Andrade. org. Paulo Roberto Pereira. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1. pp. 748-794. As notas do editor do jornal e de Olímpio de Sousa Andrade não foram reproduzidas.