Da Corte

Província de S. Paulo, 17 de maio de 1889

Longe de seguir o velho precedente dos cronistas neófitos, em contínua luta com a escassez de assuntos, tolhe-me a pena a acumulação destes. Por um fenômeno idêntico ao da treva, produzida na interferência das luzes —, os acontecimentos e os sentimentos que originam, múltiplos, antagônicos, dispersos, chocam-se, contrabatem-se, reagem, interferem, destroem-se pelo equilíbrio e eu fico sem assunto e insensível.Neste momento — o mais grave talvez de uma profunda transformação, faz-se preciso para esquiçar a feição da nossa nacionalidade alguém de um temperamento monstruoso, através do qual irmanem-se as mais opostas manifestações da afetividade e que sendo a um tempo Juvenal e Dante, possa ter no estilo a expressão dúbia e medonha do choro hilariante, da risada dolorosa de Grinplain!…

De fato — admitindo que os cérebros dos pensadores tenham na reflexão maravilhosa dos acontecimentos a pureza imaculada dos cristais e que assim as ideias sejam as imagens virtuais dos fatos, é bem de ver que tudo o que se passa em torno de nós deve refletir-lhes na alma um misto incompreensível e estranho de alegrias, tristezas e dolorosa ironia.

Colocado no seio da sociedade atual — à mercê das forças que a agitam, expansões egoísticas de milhares de interesses irradiando a todas as direções — o nosso espírito — não poderá fixar uma direção retilínea e agitando-se, morrendo-se, oscilará indeterminadamente, indeciso, da esperança à desilusão — a todo o instante feliz, triste a todo o instante.

Unicamente uma disciplina mental esmagadora, inexorável — tal que pelo aniquilamento inteiro das paixões, nos facultasse a abdicação da própria individualidade, poderia dar à nossa pátria um Guizot que relacionasse os fatos e um Plutarco que definisse os homens… Quanto a nós — apaixonados —, inermes ante o assalto das emoções, em comunicação direta com a perturbação geral, harmonizados à desarmonia, batidos pela inconstância dos homens e dos fatos — meditaremos através de uma vertigem — e o mesmo fluxo de sangue, irrompendo-se do coração, nos levará ao cérebro, a um tempo, a mais consoladora esperança e o mais sombrio desalento…

*

Para os que sabem que em nossa terra não há política, mas sim um partidarismo infrene — pois que aquela é a aplicação de conhecimentos que os nossos pseudopolíticos não têm, nem podem ter, e este redunda afinal, numa tristíssima conspiração contra os caracteres — as linhas que deixamos escritas não exprimirão um pessimismo doentio, estimulado pela preocupação de fazer estilo.

Quanto aos que, dotados de uma feliz ingenuidade — supõe-nos orientados por poderosas compleições intelectuais, sadias, robustas, revigoradas na atmosfera luminosa dos livros — esses — cuja miopia extrema confunde o Sr. João Alfredo e Gladstone, justificar-nos-ão em face dos últimos acontecimentos.

Os últimos acontecimentos… eu poderia perfeitamente, encarando a sua feição boa e honesta, iluminar a minha frase com um reflexo inda que enfraquecido da grande e brilhantíssima expansão de generosidade da alma nobilíssima do povo ante os martírios de Campinas… Volto-me, porém, à sua feição triste e má; imponho-me à pena de procurá-la nas estreitezas do nosso mundo político, pequeno demais para as paixões que contém e que, violentas, insensatas, refluindo numa concentração contínua de forças — umas sobre as outras —, aquecidas pelo egoísmo de todos, produzem a decomposição do caráter, como o acúmulo de temperaturas a dissociação do diamante. Pois bem, é ante o espetáculo da nossa política que me assaltam as mais opostas emoções.

Expulso do Senado, impossibilitado de entrar na Câmara — fechada por um capricho da oposição —, este pequeno grupo de indivíduos, inconscientes da própria posição, agarrados às pastas como avaros às bolsas e sobre cada um dos quais, solene e inflexível pesa a condenação das consciências honestas — patenteia-nos um quadro indefinível, incute-nos um sentimento incompreensível, idêntico ao que nos assoberba ao vermos, envolta na cintilação dos versos de Milton — uma agonia de demônios!…

Realmente o que presenciamos nada mais é que uma tristíssima agonia de alguns homens que, sem espírito e estudo bastante para engrandecerem a vida, harmonizando-a à grandiosa existência da pátria, extinguem-se, lentamente, pela asfixia da própria alma dentro do próprio egoísmo…

Desaparecendo amanhã do curso da existência nacional — essa gente não cairá, dissolver-se-á, a queda supõe anteriormente uma posição elevada: — caindo, no parlamento inglês, do alto de um grande ideal, Gladstone, lembra-nos no mundo moral a queda resplandecente de uma estrela.

Quase sempre — cair não é descer.

Essa gente não cairá.

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À última hora um espírito eminente — denunciou à pátria os horrores de uma conspiração.

Parecia que o aniversário da ação mais elevada e humana de nosso povo — a exemplo das solenidades antigas — sagrar-se-ia no sangue de milhares de vítimas. A coisa, ao que parece, far-se-ia com todos os atrativos de um verdadeiro festival; citavam-se já, à luz meridiana, os nomes dos felizes destinados às aras do sacrifício; havia um programa preestabelecido com todos os elementos de um drama de sensação; as reclames irradiavam a toda parte, levados por entidades patibulares, eminentemente próprias a fazer-nos desmaiar de pavor; segundo corre — a exemplo dos ensanguentados dramalhões de D’Ennery devia ser o elemento principal das situações proféticas — o punhal!

Apontavam-se mesmo, na Rua do Ouvidor, os corifeus da nova Saint Barthélemy — prestes a estender a sua sombra sob o nosso sol americano — talvez por um capricho de neto de Carlos IX…

Como a lei natural do atavismo se exemplifica da história?!…

O que ia se dar se um recrudescimento de covardia não paralisasse à última hora o braço dos covardes — seria como uma invasão de bárbaros no século XIX.

Assim — iam esfacelar a pátria, matar, exterminar, romper-nos o peito a facadas, envergonhar a humanidade e escandalizar o nosso século: serena e inviolável, ideal que constitui a essência mais do que da alma brasileira — da alma americana — a Democracia havia de pairar sobre os destroços — como um Íris feito pela refração maravilhosa dos brilhos de nossas crenças, através do nosso sangue…

Felizmente, porém, lembraram-se os Átilas e Gensericos dessa onda de alucinados — que os seus sócios da Média Idade — viris, indômitos, inexoráveis — após ruírem o maior império do mundo — e colocarem sobre o seio de Roma a rija ferradura dos seus cavalos — estacaram combalidos e respeitosos ante a velha Catedral — guardada pela força sobre-humana do ideal.

Como citar
CUNHA, Euclides da. Da Corte. EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Crônicas. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/cronicas/. Acesso em: [data]. Reprod. CUNHA, Euclides da. Crônicas. In: Obra completa. Notas de Olímpio de Sousa Andrade. org. Paulo Roberto Pereira. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1. pp. 711-3. Originalmente publicada em Província de S. Paulo, 17 de maio de 1889. Reprodução permitida para fins educacionais e desde que citada a fonte.