Revista da Família Acadêmica, Rio de Janeiro, maio de 1888
Sejamos francos.
A maioria de nossos críticos se caracteriza por uma deplorável infecundidade; constituem — na as mais das vezes, meia dúzia de literatos descrentes e aborrecidos — indivíduos cuja preocupação única é esconder uma profunda esterilidade mental, nas criações estranhas.
Para conhecê-la e ter o desassombro de erguê-la aqui — não me foi preciso interrogar aos mestres no assunto — nem alentar o espírito nas páginas preciosas de Mirecourt ou Sainte-Beuve; bastaram-me uma rápida observação e um pequeno impulso de meu temperamento.
De fato, vi-os por aí respingando — inconscientes e irrequietos — animados de um grande desejo de fazer mal; aderindo aos grandes monumentos emanados do espírito dos pensadores reais e procurando arrebatar às frontes obscuras os brilhos que delas irradiam; vi-os, arrancando a inteligência do estreito círculo de seus estreitos ideais e procurando injetar-lhe a fortaleza e vida, ora amplificando-a no céu ideal de uma tela, ora fazendo-a respirar sob a atmosfera luminosa de um poema.
Vi-os muita vez estabelecerem o combate estúpido do escândalo em torno das vocações reais e insuflarem jogralmente poetas de uma boçalidade africana.
E tenho-os visto animados de um grande fanatismo pela realidade, tristemente ridículos, lacrimalmente desfrutáveis, procurando o que há de mais hediondo e nojento nas belíssimas páginas de E. Zola, o que há de mais impuro nos brilhantes capítulos de Eça de Queirós e o que há de mais horrivelmente extravagante nas poesias desse capadócio inteligente e poeta como poucos — Richepin.
A Bíblia dessa gente é O primo Basílio.
Quereis matá-los à míngua de ar e de luz?…
Envolvei-os na límpida cintilação de uma página de Lamartine; lançai-lhes às frontes os brilhos de um grande sonho de Goethe, recitai-lhes um alexandrino brilhante de Victor Hugo. Para essa gente, a síntese suprema da realidade é a lama…
Uma campina florente, envolta na clâmide cintilante de um sol de primavera a transbordar de aromas e cheia da música selvagem e estranhamente harmoniosa da natureza, é um sonho…
Um beco, obscurecido e lamacento, aonde a luz amortecida de um lampião imprestável esvai-se afogada pelas sombras e cheio das risadas histéricas das prostitutas, é um fato!…
A verdade para eles está em tudo que é informe e truncado e imundo…
Vai a escória das coisas às grandes ruínas morais, dos canos de esgoto às almas dos bêbados.
Fora disso, o sonho, a ficção…
Mas deixemo-los; voltemo-nos aos que ocupam o extremo oposto.
São talvez os piores, se os precedentes, brutalmente pessimistas, só veem a verdade no mal, esses, abroquelados em um misticismo anacrônico, entendem que ela só deve existir no que é belo e no que é puro.
Escandalizam-se ingenuamente, se o escritor, impelido pela lógica mesmo dos fatos, é às vezes obrigado a descobrir um quadro mais livre que muitas vezes surge entre outra coisa elevada; não compreendem, não sabem ou não querem saber que o mal é mais natural do que o bem, necessário à virtude, porque a virtude mais do que em praticar racionalmente o bem, consiste em racionalmente reagir contra o mal.
Esses indivíduos pertencem à classe problemática dos puros, dos homens que coram sob os fios da barba ante uma ascensão mais exagerada da perna de uma bailarina e querem fazer acreditar aos mais que tudo quanto na natureza brilha, canta, agita-se, vive enfim, reflete-se-lhes no cérebro de uma maneira imaculada e casta.
Para eles tudo quanto Zola escreve não presta; tudo quanto E. Queirós faz em Portugal, não presta; tudo quanto A. Azevedo faz no Brasil, não presta; e isso de um modo categórico, firme e absoluto — não presta…
Todos eles entendem que é mau todo o escritor que não escreve como eles pensam, todo poeta que não canta como eles sentem.
Fazem a crítica do meio de todas as suas inclinações, de todas as suas tendências individuais, e se o livro com elas não se harmoniza, repelem-no , brutal e inconscientemente.
Os místicos ruborizam-se de pronto, fogem apavorados à sedução perigosa dos olhos de Naná e amaldiçoam a pena que, como um escalpelo amestrado, tão bem pintou-lhes a decomposição medonha daquele corpo admirável de mulher, e no entanto, bem sabem que a forma onde elas se fazem ainda não foi quebrada e bem podem ainda vê-las, brilhando na rua do Ouvidor, estiolando na temperatura febril dos salões e decompondo-se nos hospitais.
Bem sabem que o maior caiporismo de Zola é ter inspirado um fanatismo desenfreado a uma série de mentecaptos; bem sabem que ele é simplesmente um burguês de talento que gosta de dizer a verdade, das coisas tristes desta vida, mas que é, certamente, o primeiro a proibir que sirvam-se de livros como elementos para uma indução horrível.
Os realistas fecham os olhos, aterrados às grandes produções da cabeça olímpica de V. Hugo; Jean Valjean, por exemplo, é um espantalho, um porto monstruoso de um temperamento enormemente enfermo; um manequim estranho animado por uma alucinação, por um sonho de poeta, e inteiramente isolado das leis naturais…
E no entanto, meditando, esses deviam crer que esse monstro sublime nunca existiu, pode e deve existir…
Eu acho-me no início da vida, nunca me foi necessário, num instante de angústia suprema, fazer um supremo apelo às energias de minha vitalidade; nunca me achei nesses movimentos, aliás comuns, em que se tem de fazer uma coisa horrível, meditar chorando, levantar a luz do cérebro para espancar, aniilar uma sombra no coração, apelar para a rigidez fria da razão, ter necessidade da calma, com o sangue a ebulir nas veias, o coração a estuar doloridamente e a vida combalida, oscilando, num desequilíbrio cruel de todo o sistema nervoso.
A existência ainda é para mim uma quimera dourada e fascinante que eu guardo com um ciúme alucinado de avaro; faço da dor um brinquedo; e fantasio-me de descrente, por desfrute.
Pois bem, eu que ainda não sei até onde pode subir a energia de um caráter, eu que não sei até que ponto pode ser heroica a virtude, eu, por honra minha, creio ser Jean Valjean, um personagem real, creio naquela esplêndida e deslumbrante evolução de um caráter; creio sinceramente naquela ascensão progressiva de uma alma…
Suponho ter claramente definido a minha posição ante essa gente, cujo fim é definir a dos outros.
E meu fim aqui é reagir contra a invasão dos analfabetos d arte e que tentem tudo destruir, animados da triste coragem da ignorância; é dizer-lhes que na página de um livro se reflete toda a alma de um prosador, como todas as suas ilusões, toda a sua sensibilidade e toda a sua delicadeza e que portanto atacá-lo irrefletidamente, às cegas, sobre ser estúpido é criminoso; é dizer-lhes que a par de muita coisa feia há muita coisa bonita e que a própria existência humana emerge da reação contínua dos contrastes; é dizer-lhes que o fanatismo é o único sintoma de vida dos imbecis e que tão boçal é o indivíduo genuflexo ante Zola, como um adorador enragé de Lamartine…
Tratem de andar pelo meio.
Leiam a Graziella e digam: sublime, leiam O homem e digam: admirável…
O mal através de um temperamento bem-feito pode ser belo e o bem-visto através de outro, pode ser medonho.
Não critiquem, animados de suas tendências, brutalmente absolutas, porque isso justifica e requer mesmo uma reação — a bengala!…
É o que farei se tiver a desgraça de ser escritor, um dia.
Podia, no correr deste artigo, citar muitos nomes; não o fiz para generalizar o mais possível a verdade e elevar a discussão, fora das páginas da Revista, porém, em qualquer outro campo, particularizá-la-ei.
Euclides da Cunha
CUNHA, Euclides da. Críticos. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Crônicas. são Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/cronicas/criticos. Acesso em: [data]. Reprod. de CUNHA, Euclides da. Críticos. In: Obra completa. Fragmentos e relíquias. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1. pp. 806-8. Publicado originalmente na Revista da Família Acadêmica, Rio de Janeiro, ano 1, n. 7, 1º maio de 1888, pp. 209-213.