Atos e Palavras

Província de S. Paulo, 10 de janeiro de 1889

I

Como preâmbulo a esta seção — definamo-nos.

Não nos destinamos à imprensa.

Os artigos aqui escritos exprimirão parêntesis abertos em nosso estudo e torná-los-emos reflexos dele.

Excluímos o estilo campanudo e arrebicado. A ideia que nos orienta tem o atributo característico das grandes verdades — é simples.

Estudá-la é uma operação que requer mais que as fantasias da imaginação — a frieza do raciocínio.

Analisá-la, dia a dia, é uma coisa idêntica à análise da luz: é preciso que se tenha no estilo a contextura unida, nítida e impoluta dos cristais.

Lutar por ela, desenvolvê-la, fixá-la no seio da nossa nacionalidade é fazer todo instante, continuamente — apelo à orientação segura do pensamento.

Nessa luta ideal, pois, apaixonar-se é enfraquecer-se.

Indignar-se é tornar-se indigno.

*

A democracia, que é antes de tudo uma ideia altamente séria, começa a receber o ataque grotesco dos garotos assalariados.

Não podendo feri-la num combate leal, frente a frente, a plutocracia mal disfarçada declara-lhe a campanha do descrédito.

A vitória consistirá nisto — desmoralizar.

Diante da palavra de Silva Jardim põe escandalosamente a navalhada dos capangas.

Ante a postura retilínea de Quintino Bocaiúva — as contorções tristemente ridículas do senhor Patrocínio.

Em frente da Pátria — a guarda negra.

Diante de tudo isto, o republicano, o revolucionário brasileiro, não só pelo antagonismo natural da posição, mas sobretudo pela própria essência de seus princípios, deve-se conservar austero e inflexível.

Precisa destruir e tendo espírito bastante para reconhecer que a verdade é nas sociedades decadentes elemento de destruição — adota-a.

De fato, para defender-se e ofender basta-lhe isto — dizer a verdade.

Di-la-emos.

Para sermos invencíveis na posição que ocupamos basta-nos registrar os atos e palavras dos partidos que se digladiam.

Fá-lo-emos, contudo, através do nosso temperamento.

Escreveremos um depoimento libelo.

Seremos — testemunha e juiz.

Província de S. Paulo, 11 de janeiro de 1889

II

Temos como desigual qualquer luta com nossos adversários. Sugere-nos esta afirmativa a consciência da própria força.

Não vai nela violação de modéstia.

Ante a fortaleza do pensamento, a extensão das ideias exerce função idêntica ao comprimento das alavancas ante a força material — multiplica-a.

Desiludam-se os que acreditam que somos motores da propaganda republicana; ela é que nos impulsiona para o futuro e todo o nosso trabalho — na imprensa ou na tribuna — consiste em transmitir à pátria o movimento que nos impele a fazê-la caminhar conosco.

Nosso desideratum é este — propagar, comunicar um movimento adquirido.

Não nos preocupa a ideia de o conseguirmos ou não.

Sentimo-nos fortes — e isto nos basta.

Sentimos a firmeza positiva de nossas ideias e isto nos consola; porque se amanhã, por uma disposição qualquer de circunstâncias, tiverem de cair, terão a queda aparente dos astros — assim como estes desaparecem no horizonte para surgirem em outro, em vista do próprio movimento da Terra — porque eles não caem — aquelas se obscurecem num século — para surgirem em outro — em vista do próprio movimento das sociedades — porque elas não morrem…

*

Os antagonistas da propaganda republicana pertencem a diversas categorias.

É uma coisa difícil classificá-los.

Vão desde o áulico de recente data — em geral ex-demagogo, ex-petroleiro — tristemente desfrutável que ainda há pouco fulminava com letras maiúsculas o trono, a tirania etc., na melopéia monótona de uns alexandrinos defeituosos — ao conservador de velha data — austero, rígido, mas teimoso, imperterritamente imóvel ante o choque das ideias — como a estátua de Glauco ante o embate das ondas…

Qualquer, porém, é extremamente fraco, o que mais ainda nos fixa a convicção de que travamos um combate desigual.

A evidência disto manifesta-se na argumentação de que usam e abusam desapiedadamente.

Sem lógica — porque os princípios que adotam, por extremamente arbitrários, não comportam conclusões positivas e racionais, apegam-se a uns velhos argumentos, gastos, moídos e remoídos pelos prelos de todos os tempos e lugares… mudam-lhes o colorido do estilo para parecerem novos.

Certos de que são extremamente fracos, fazem com eles uma espécie notável de guerra de emboscada — assim é que quase sempre os vemos surgindo de uns períodos obscuros e impenetráveis, eivados de uma adjetivação caprichosa e de uma tecnologia arbitrária.

Sempre envoltos numa frase sonora — o que atesta claramente ser ela, antes de tudo — oca.

Ora se utilizam da mesma balela — que consiste em apontar na história as repúblicas infelizes — e, afoitos, impõem à pobre inteligência uma peregrinação imensa pelos séculos afora — quando, sem abandonarem o seu tempo, encontram as grandes repúblicas da Europa e da América.

Ora, tomando ingenuamente ao pé da letra a fórmula “governo do povo pelo povo”, entendem que este, atrasado como está, não se pode governar. É um triste argumento este.

Esta fórmula diz que todo cidadão pode se tornar apto para dirigir.

O governo republicano — digamo-lo sem temor — é naturalmente aristocrático — os pergaminhos dessa nobreza, porém, ascendem numa continuidade admirável, das oficinas às academias.

É o governo de todos por alguns — mas estes são fornecidos por todos.

Outros, porém, dão uma altitude especial à argumentação, encarando a idéia de uma maneira mais original e mais séria.

Assim fazendo, confessam que ensarilham as armas ante o sistema geral de seus princípios.

Vão mais longe — adotam-no inteiramente ante as duas ciências superiores — Moral e Sociologia — de onde se derivam as noções positivas do dever e do direito.

Reconhecem que possui todos os elementos de ordem e que se presta à organização geral da sociedade.

Concluem daí forçosamente — que é superior a todos. Mas combatem-no porque prevê as anomalias de sua adaptação empírica — aceitam a sua dinâmica — julgam-na inconveniente.

É sempre mau fazer-se juízo antecipado.

De mais, a sociologia é uma ciência que começa, e, portanto, incapaz de realizar a previsão no campo dos fenômenos que estuda.

Na frase de Kant — qualquer noção da realidade deve se basear na experiência. Ninguém pode afirmar as concreções anômalas do sistema republicano.

A bem disto, como se aceita a sua estática e repele-se a sua dinâmica?

Se a julgam própria ao estabelecimento da ordem, por que não a seu desenvolvimento — o progresso — que é menos difícil?

Que espécie de argumentação é esta — consistindo em atribuir uma função má a um órgão reconhecido bom, quando aquela depende unicamente deste?

A própria biologia diz que isso é um contra-senso.

Província de S. Paulo, 12 de janeiro de 1889

III

Por nossa parte recebemos também, com sincera satisfação, o aparecimento da guarda negra.

Este fato, aparentemente assustador — indica-nos unicamente a subordinação necessária dos acontecimentos às leis necessárias.

Toda reação é oposta à ação.

Ante o batalhão sagrado do futuro, iluminado e audaz, ela devia aparecer escura e obscura.

Não compreendemos, contudo, o entusiasmo que tem despertado em alguns, nem o temor que tem infundido em outros.

Achamos igualmente exagerados os ditirambos harmoniosos e os artigos violentos, que lhe têm pairado em torno.

Temo-la por intensamente fraca, por ser enormemente ridícula.

Essa pobre gente, assim tragicomicamente postada ao lado do trono, não tem por certo a audácia indomável dos thugs nem certamente — nas veias — sinistro — o veneno embriagador do haschisch.

Um jornalista da corte apontou-a como causa provável de um conflito de raças — como o que se deu e não terminou ainda de todo nos Estados Unidos. Não cremos que isto se dê.

Como tudo o que é anormal, isto não é geral.

Demais, a raça negra, em sua essência nimiamente afetiva, harmoniza-se admiravelmente à latina, profundamente vinculada à nossa sociedade — constituindo-a quase; a separação que deveria preceder a esse conflito teria o caráter de uma extirpação — o que é impossível.

Três séculos de contínua exploração e subordinação forçada — não conseguiram abastardar-lhe o gênio, e, durante esse tempo, ela aliou às nossas mais gloriosas tradições o nome de seus filhos.

Não a confundamos com a guarda negra.

Esta simboliza, na tez denegrida, uma espécie tristíssima de eclipse total da moralidade e da inteligência.

Aquela tem na história, como dinamômetro à sua fortaleza, a espada impetuosa de Henrique Dias e a sua verdadeira cor irradiou na fronte iluminada de Luís Gama.

Afinal a guarda negra não deve inspirar ódio, nem medo — inspira compaixão. Deve-se ver nela a parcela mais infeliz de sua raça.

Liberta de uma exploração odiosa, pelo decreto de 13 de maio, caiu pelo mesmo decreto noutra exploração.

Saiu da exploração dos senhores para a exploração dos escravos.

E criou-se, afirmam, não para o atacar, mas para resistir; entretanto, vê-se bem, que de si mesma ela é um ataque à ordem da sociedade, pela infração flagrante da moral, revestida como está de um caráter escandaloso — o da ociosidade legalizada.

Criou-se para resistir; não sabemos a quem.

Uma vaidade natural — impede-nos de conjeturar sequer que seja uma resistência a nossos atos. Na posição em que nos achamos, não nos podem atingir os trágicos de Offenbach.

Aceitamos impávidos o combate mais brilhante e mais rude das ideias.

Obedecemos mais que aos impulsos da razão; à fórmula antiga

“querer é poder”

substituímos a fórmula profundamente elevada.

“dever é poder.”

Acreditar, pois, um só instante que são nossos adversários, equivale a abdicarmos voluntariamente de nossa honra e de nosso brio.

O seu aparecimento, contudo, nos satisfaz plenamente — é a primeira manifestação da força material — é a primeira manifestação de fraqueza.

Província de S. Paulo, 15 de janeiro de 1889

IV

O Sr. D. Pedro de Alcântara ali a um grande espírito um grande coração, afirmam convictos os tiribulários de seu reinado. Façamos um esforço — admitamos isto.

Empiricamente, esta hipótese é a mais valiosa que possuímos, a fim de atingirmos a demonstração da tese que advogamos.

Ampliada pelo estudo, robustecida pelo vigor de seu temperamento exuberante de meridional, a sua inteligência percorreu por certo, inteira, a curva desmesurada com a qual Vico simboliza o curso da evolução humana.

A ciência foi, sem dúvida, a Ariadne salvadora que o orientou, nessa romagem olímpica através do tumulto das gerações desaparecidas; para isto, subordinou, certamente, seu espírito à disciplina inviolável, fazendo-o ascender, metódica e brilhantemente, da simplicidade admirável dos princípios gerais da matemática à espantosa complicação dos fenômenos sociais.

Inclinado à astronomia — grande astrônomo, segundo propalam — deve possuir no pensamento brilho e amplitude para seguir a órbita imensa e iluminada dos mundos…

Erudito e profundo — tem por vezes deixado esta nossa terra retrógrada e inculta, para seguir, ansioso, a deslumbrante miragem da civilização, que lhe acena do alto das capitais da Europa; e lá, ombreando-se aos diretores do espírito contemporâneo, asseveram, os brilhos de sua coroa têm-se obscurecido ante a cintilação de sua fronte…

Democrata, sonhador e cavalheiro — abraçou como a um companheiro de armas ao heróico atleta da liberdade — ao velho mais moço do mundo — que, ao morrer, nos legou, a nós sonhadores também, o seu grande ideal, na grandiosa harmonia de seus alexandrinos imortais.

Ainda há pouco, uma república sul-americana manifestou desejos de galardoá-lo com uma dádiva riquíssima e S.M. — correto e delicado — pediu que lhe mandassem antes, dentro dos livros de seus escritores, a sua alma profundamente artística e elevada de nacionalidade inteligente e civilizada.

Ante este fato — entoaram-lhe as loas habituais; o velho turíbulo oficial fervorosamente agitado — encheu o ambiente moral da pátria — com as suas emanações puríssimas e purificadoras, e mais uma vez ante as multidões, S.M. apareceu tendo na fronte em vez de uma coroa — um nimbo imaculado e casto.

Pois bem — justamente porque S.M. é um homem de espírito —, justifica-se a posição dos únicos homens de espírito desta terra.

Justamente porque o Imperador é bom — devem aumentar-se os esforços dos que entendem como uma coisa demonstrada — que o Império é mau.

Como homem de espírito — compreende que os fenômenos sociais são fenômenos naturais de uma ordem mais elevada, mais especial e mais complicada e que, assim como não se violam aqueles, não se violam estes; pode certamente descortinar — no campo da sociologia descritiva — através da desarmonia secular das raças e das sociedades, a marcha retilínea e imutável das leis naturais da civilização. Sabe que há uma lógica diretora dos acontecimentos — lógica que nos faz ver nos períodos aparentemente os mais sombrios da história, as épocas mais brilhantes da humanidade — que nos faz descortinar através do despotismo da Idade Média, o renascimento prodigioso das crenças e das ideias, que, em breve, irromperiam na modernidade, envoltas no fulgor das teses admiráveis de Lutero… Tem consciência de que as ideias são funções que definem um certo estado de organização social; sabe e acreditamos que a própria fisiologia lhe ensinou isto, que, se elas se incompatibilizam com os órgãos produtores, extinguem-se por si mesmas, pela reação natural dos meios em que aparecem — mas que se definem positivamente o estado destes, para destruí-los — será preciso destruí-los, o que é naturalmente impossível. Ninguém destrói uma sociedade; ninguém a faz parar sem abalos; seria absurdo este idêntico ao de quem pretendesse supor a imobilização instantânea da Terra, sem que esta explodisse e se volatizasse num segundo… Os próprios cortesãos, pois, fazem com que vejamos S.M. como um elevado espírito inteiramente absorvido na observação dos acontecimentos atuais, procurando talvez descortinar-lhe a feição filosófica e civilizadora e vendo se o seu desenvolvimento se harmoniza com as leis do que Spencer chama — História Natural das Sociedades.

Podemos, pois, agir desassombradamente — sem temer que se anteponham à fortaleza de nossas ideias os ferros dos janízaros.

O adversário mais interessado em nossa derrota conhece a fragilidade, a nulidade desses meios e, além de espírito, tem coração bastante, para impedir que, por meio deles, se dilacere inutilmente o grande seio da pátria.

Baseando-nos, pois, na hipótese de ser o senhor D. Pedro um grande espírito e um grande coração, concluímos logicamente que ser hoje revolucionário — é ser oportunista! Esta posição não exprime somente a coerência necessária entre os nossos atos e nossas ideias — patenteia também de nossa parte um grande interesse pela ordem posterior da sociedade.

Porque sabemos que a República se fará hoje ou amanhã, fatalmente como um corolário de nosso desenvolvimento; hoje, calma, científica, pela lógica, pela convicção: amanhã…

…Amanhã será preciso quebrar a espada do senhor Conde d’Eu.

Província de S. Paulo, 16 de janeiro de 1889

V

Referindo-se ultimamente a certos preceitos de higiene moral, nos quais baseava as suas convicções, um democrata ilustre estabeleceu o diagnóstico de uma moléstia assustadora, misteriosa, horrível e de há muito localizada profundamente no organismo da pátria.

A sua denominação não é nova; há 300 anos, Descartes, a fim de definir claramente uma separação desnecessária entre a atividade e a atividade propriamente animal — sobre ela apresentou uma teoria paradoxal — que não conseguiu se avolumar, destruída por Flourens e Montaigne.

Não pretendemos regenerá-la, damos-lhe uma orientação; o que Descartes enunciava como coexistente com a essência íntima das coisas — apresentamos como uma coisa anormal; o que ele aplicava aos animais, aplicamos ao homem; ele fez daquilo um fato positivo e natural — nós temo-lo como uma moléstia — um deplorável estado patológico.

Ante ela toda a ação da terapêutica se nulifica, os melhores experimentadores recuam impotentes; no entanto, faz mais vítimas que o cólera e atrofia mais do que a sífilis.

Transmitindo-se pelo contato, assume o caráter generalizado de uma epidemia medonha; por uma espécie assustadora de endosmose infiltra-se, não em nosso organismo, em nossa alma — à proporção que ela esvazia-se de todos os princípios elevados e fortificantes da virtude, com a qual se incompatibiliza.

Aniquila a um tempo o cérebro e o coração.

Para alimentá-la, voraz e inexorável — faz-se necessário o sacrifício espantoso das ideias, das mais sagradas ilusões, dos sonhos os mais brilhantes e elevados, violam-se os preceitos austeros da virtude e afogam-se as expansões indomáveis do brio; quando, afinal, nada disto mais existe, ela completa o seu curso sinistro, o indivíduo fica materialmente completo — a vida, porém, traduz-se apenas na vibração mecânica dos nervos e resta uma coisa mais triste e mais dolorosa que a decomposição do organismo, a decomposição do caráter!

Atingido por ela, tendo-a, sinistra, localizada na alma, o paciente, em geral, manifesta-se feliz; tem a cômoda despreocupação dos que não podem pensar, dos que não sabem sentir; adquire ante as reações constantes e contínuas da vida, a impassibilidade feliz dos eunucos; enfrenta imperturbável o perigo de todas as posições; na tribuna — assume a postura teatral de Mirabeau, ruge como Danton, finge pensar como Condorcet e imita a tranquilidade soberana e nobre de Vergniaud; na imprensa, reveste-se à vontade das lantejoulas do estilo, dá aos períodos as ondulações caprichosas e suaves das serpentes, caracteriza-se de Rochefort e exprime-se violentamente, sabe ser irônico como Alphonse Karr e procura tranquilamente imitar o brilhantismo de Girardin; em todos os ramos da atividade aparece revestido de um vigor aparente, feliz, brilhante, ruidoso…

No entanto, está morto.

Toda a sua ação, reflexa — é inconsciente; a sua voz, existe na existência de outras vozes — é um eco; os seus atos, longe de exprimirem uma função de sua vontade, indicam a existência de outros atos; não raciocina, não fala, recita; não vive — move-se, agita-se fervorosamente, enquanto as células cerebrais conservam-se friamente imóveis e o coração oscila-lhe no peito, mecanicamente, com a insensibilidade material de um pêndulo. Esta epidemia existe, está entre nós — vimo-la ontem, ostensivamente, ao entrarmos na sala das sessões da Assembléia Provincial. Sentimos os seus germes destruidores no ambiente onde pairava, grandiosa e violenta, a vibração da palavra brilhante do Dr. Campos Sales. Vimos, claramente, agitarem-se em frente às suas vítimas, revestidos dos movimentos bruscos e inconscientes dos cadáveres impulsionados pela galvanoplástica.

Pairava-lhes em torno, a expansão invencível e brilhante das ideias mais generosas de nosso tempo e enquanto os corações revelavam-se comovidos, apaixonada e altiva a lógica do Dr. Prudente de Morais — rígida e inteiriça como o seu caráter — levava de vencida os velhos expedientes que tantas vezes antolham-se às discussões sérias; toda aquela gente obedecia a um mecanismo oculto — impassível, aniquilada — morta.

Esta sombria moléstia tem um nome — automatismo.

Província de S. Paulo, 18 de janeiro de 1889

VI

A anarquia…

Arrebatados na corrente prodigiosa das novas ideias, e dos novos ideais, na vertigem de uma queda iminente, os advogados da grande causa perdida que se nos antepõem apegam-se a esta palavra com uma sofreguidão de náufragos; ela constitui a posição de equilíbrio dos movimentos desordenados das suas ideias, e quando — na imprensa ou na tribuna — a inteligência extingue-se-lhes afogada no próprio vazio dos períodos, numa tristíssima pobreza de argumentos sérios — é ela que consegue levantá-los ao nível da discussão.

Diante das ideias que tonificam vigorosamente o organismo da pátria, e que se traduzem no movimento ascensional, deslocam-na assustadora e imensa, provocando a discórdia no seio das instituições, opondo tropeços à administração do governo, estabelecendo o antagonismo dos interesses, destruindo o crédito, exaurindo as fontes de trabalho, obscurecendo as noções elevadas da justiça e perturbando lamentavelmente a serenidade da consciência pública. Em falta de inteligência, expandem amplamente a imaginação — pintam-na inteiramente estendida por toda a vastidão do país, destruindo a coesão que deve presidir os esforços das classes laboriosas, empanando o brilho imaculado das leis, ameaçando o presente pela dispersão violenta de todos os elementos de ordem; levando ainda além a sua missão maldita; insinuando-se no seio das academias — ameaçando o futuro…

E atribuem-na aos republicanos.

Quanta injustiça, porém, em tudo isto. Nós podíamos perfeitamente levantar esta palavra que se nos atira como um argumento inquebrável; podíamos revestir-nos do título de anarquistas, como revestimo-nos altivamente do qualificativo nobilíssimo de revolucionários — bastava-nos para isto um apelo à lógica invencível do pensador mais original do nosso século — Proudhon — e, embora paradoxal a teoria que ele sustenta, abroquelados nela, seríamos invencíveis ante a força liliputiana dos que nos atacam.

Não o queremos, porém — reconhecemos também que a anarquia, justamente pelo fato de se aproximar da liberdade absoluta — não pode existir porque não deve existir; a própria orientação filosófica que possuímos impõe-nos a todo instante a subordinação racional às leis; ante o estado atual da civilização, reconhecemos que o mais livre não é o mais assomado e sim o mais inteligente; a consciência do homem moderno forma-se pela subordinação constante de sua inteligência às leis positivas da ciência e atualmente revolta-se contra o que está racionalmente estabelecido; indica, antes de tudo — ignorância.

Na posição em que nos achamos nivelados, pela altitude de nossas ideias, à civilização do nosso tempo, inteiramente subordinado às leis que regulam o desenvolvimento natural da sociedade, somos por certo revolucionários, porque a força que transmitimos ao sistema social, em conflito com a sua deplorável fraqueza — produz naturalmente a perturbação, o desequilíbrio.

Isto, porém, justamente porque exprime uma revolta contra o estado atual das coisas, patenteia uma elevada e digna subordinação aos princípios que racionalmente regulam a organização e desenvolvimento de nossa pátria.

A anarquia não parte de nosso lado; deriva-se da nossa ação, é certo — mas justamente por isso, como reação, nos é oposta; ela é que nos ataca — nas ruas, no parlamento e na imprensa — com a brutalidade dos capangas, como as injúrias inconscientes dos pseudo-representantes da pátria e com a descortesia escandalosa dos jornalistas sem critério.

A anarquia não penetrou nas academias, insinuando-se no ânimo da mocidade; desde a matemática à sociologia, toda a ciência opõe-se-lhe vitoriosamente, cada página dos livros é-lhe uma barreira insuperável, podem nelas existir talvez revolucionários, altivos e audazes, temperamentos que se expandem violentamente, altivamente e dignamente, e falamos por experiência própria — mas quando isto se dá, quando se manifesta esse desequilíbrio lamentável entre as paixões e as ideias, por sobre o delírio espantoso de nossa alma, se alevantam serenos e imaculados os grandes ideais que a iluminam, como se alevantam tranquilos e grandes os brilhos das constelações sobre o delírio pavoroso das tempestades…

Província de S. Paulo, 23 de janeiro de 1889

VII

Sem cedermos de nossas convicções, antes subordinados a elas, inteiramente, afirmamos, com os nossos adversários, que o partido republicano não existe. De fato, não restringimos as nossas ideias a um tão estreito círculo de ação; entre as forças que nos alentam — por escusado temos demonstrar — que não entram as que efêmeras e frágeis se adaptam, contudo, melhor à existência de uma parcialidade política.

A nossa evolução mental precedeu necessariamente a um elevadíssimo desenvolvimento emocional e por isso as nossas próprias paixões têm um caráter mais geral e mais nobre.

Não constituímos uma agremiação de indivíduos, que impele violentamente uma opinião para esmagar um trono — afastamo-nos deste pelo impulso de uma ideia. Certos, profundamente convictos, de que o regímen atual é em sua essência estacionário, para destruí-lo, para livrarmo-nos dele, basta-nos uma coisa simplíssima — fazer caminhar a pátria!…

Somos alguma coisa mais que um partido, embora relativamente pouco numerosos, aumentados pela extensão dos princípios e pela sua generalidade, podemos afirmar — sem que se veja nisso um exagero de frase — que constituímos a molécula integrante de uma nova sociedade…

A propaganda republicana teoricamente tem, antes de tudo, o caráter doutrinário de um apostolado; cingida do sistema geral de seus princípios, tem para impeli-la a força que se deriva da inteira adaptação destes às necessidades atuais; empiricamente, longe de exprimir a atividade de uma facção partidária, é o reflexo, no mundo político, de um movimento social ou, antes, de uma transformação; como tudo na natureza, as nacionalidades se transformam e ela representa o estado intermediário, de transição — entre uma decomposição e uma recomposição.

De fato, obedecendo à própria lei da concorrência vital, que preside ao desenvolvimento universal da vida, há, sob os brilhos da constelação do Cruzeiro — uma sociedade que se decompõe, à proporção que em seu próprio seio, mais robusta e maior, uma outra se desenvolve.

Como os indivíduos e numa escala maior — as nacionalidades obedecem fatalmente às exigências sempre crescentes da vida, e, nesse combate eterno e prodigioso, em que têm de apelar para todos os ramos da atividade, concorrendo violentamente com os que, por demasiado fracos, se inabilitam à realização de seus elevados destinos, abdicam forçosamente da própria existência.

À nossa nacionalidade — confessamos pesarosamente — nunca foi necessário o apelo à própria energia para viver, enquanto ao resto das nações, o futuro constituía um problema imenso, ante o qual tornava-se-lhes indispensável, constantemente, enrijar a própria organização, na rudeza disciplinadora dos trabalhos industriais, a que precedem forçosamente os esforços da inteligência; protegida pela natureza, bastava-lhe — para viver — adotar a forma primitiva da atividade humana. Além disto, barbarizada e egoísta, assumiu ante o movimento geral da civilização uma posição singular, divorciando-se da humanidade por meio de um escândalo — a escravidão; perdendo assim o movimento progressista do conjunto, desprotegida ante o maquiavelismo de uma velha política, automatizada, sem energia própria, movendo-se sem progredir, circularmente, ao impulso das tradições — em torno de uma dinastia — pela própria natureza desse movimento, adquiriu como única força a repulsão aos elevados princípios que tendiam a impulsioná-lo retilineamente para o futuro. Durante todo este século cresceu, não pelo íntimo desenvolvimento de sua organização — mas por superposição de camadas, como os corpos inorgânicos, sem que atestasse nisso um acréscimo de vida — e hoje, assoberbada pela própria grandeza de um destino que não pôde realizar, terá de refundir-se à luz vivificante dos novos ideais e reviver unicamente no que tiver de bom em uma outra mais robusta e digna.

A sua sorte acha-se de todo aliada à da monarquia e quando, amanhã, partido o último dente da medonha engrenagem política, que há tempo tempo realiza a inglória tarefa do esmagamento completo das grandes ideias — aquela cair — o advento da República não indicará a vitória de um partido — exprimirá o renascimento de uma sociedade.

Província de S. Paulo, 24 de janeiro de 1889

VIII

Decididamente, fazemos mal em levar a sério a reação contra os acontecimentos atuais.

Nessa jornada ideal para o futuro — cadenciada ao ritmo febril de nossos corações — chegamos a crer que não fica bem — a nós, moços — esse tom dogmático e austero, ante a hilariante degringolade do velho regímen.

Por que razão, ante os velhos La Palisse dessa nossa política, homens que na proximidade do túmulo tão bem sabem rir e desfrutar a vida — havemos de enterrar nas rugas prematuras da fronte as encantadoras fantasias da mocidade?

Não, decididamente não nos serve a compostura rígida e impenetrável; a frase meditada e severa; a sinceridade na emissão grandiosa das ideias e a espontânea e desassombrada franqueza — para combater essa gente.

Ante ela, não vale realmente a pena a gravidade sistemática que adotamos e que envelhece a nossa mocidade. É preciso que a compartilhemos também um pouco da salutar alacridade que anima; que demos ao estilo a flexibilidade interessante dos acrobatas e dos cortesãos; que façamos espírito sobre as ruínas da pátria; que estabeleçamos larga importação de calembourgs, dentro dos romances franceses e lancemos também ao trapézio ideal da fantasia, como um clown destemido, o pensamento tão precocemente levado aos retiros tristonhos da meditação…

Ante o estado atual das coisas, para que ridicularizarmos as próprias paixões; para que criarmos impiedosamente o descrédito das próprias mágoas?…

Ainda há pouco, ao sabermos do malogro da conferência que pretendia realizar um médico ilustre — o qual tem a imensa infelicidade de ser republicano — , sentimo-nos assoberbados pela violência da maior indignação e expandimo-la amplamente sobre muitas folhas de papel, através das mais severas considerações e do contínuo estrepitar de uns adjetivos virulentos, fulminantes. Foi um trabalho perdido. Raciocinando com mais espírito, vimos nesse acontecimento um fato naturalíssimo.

É exato que a nossa Constituição estabelece plena liberdade de pensamento, mas ela, que nos foi imposta pela insignificante espada de um pequeno Bonaparte, bem pode ser violada pelo cacete, talvez mais forte, de qualquer capanga. Longe vai o tempo em que — aterrorizados pelas visagens truanescas dos corifeus governamentais, pensávamos na expansão violentíssima das grandes almas revolucionárias e heróicas. Chegamos a sentir necessidade de um Danton — tempestuoso e nobre — capaz de transmitir ao povo, através da fortaleza de sua palavra, todo o vigor de seu temperamento: evocamos mentalmente os vultos lendários quase das grandes revoluções; mas hoje, melhor orientados, temo-los por desnecessários.

A velha sociedade extingue-se naturalmente, comicamente até, e se há alguém cuja presença devesse se achar em meio dos acontecimentos atuais, esse é o grande gênio da alta comédia — Molière…

Assim, pois, sintamo-nos felizes com toda gente.

Afirmam, por aí, que somos poucos, que nos achamos sós; ainda bem, alentados pela serenidade imperturbável e boa dos fortes, assistamos ao interessante espetáculo do nosso mundo político, sós e bem altos — da eminência fulgurante do ideal…

 
Proudhon

Como citar
CUNHA, Euclides da. Atos e Palavras. EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Crônicas. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/cronicas/. Acesso em: [data]. Reprod. CUNHA, Euclides da. Crônicas. In: Obra completa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1. pp. 698-710. Originalmente publicadas em Província de S. Paulo, 10, 11, 12, 15, 16, 18, 23 e 24 jan. 1889. Republicadas com notas de Olímpio de Sousa Andrade na Revista do Livro, Rio de Janeiro, n. 15, set. 1959.