Amanhã

Democracia, Rio de Janeiro, nº 60, 12 de maio de 1890

Despertará festiva a capital da República.

Sobrepondo-se a data mais humana de nossa história e a qual, sob o ponto de vista filosófico, aliou melhor à evolução geral a civilização de nosso país. É bem natural, pois, que como toda a gente nos sintamos felizes, nós que certamente estamos destinados a muitas vezes comemorá-la entre os deslumbramentos do futuro.

Compreendemos, pois, toda essa alacridade feliz que, dominando todas as classes, revela-as e impulsiona-as. E como todos, como todos que pensam e que sentem, demarcaremos os minutos desse dia com o ritmo febril de nossos corações.

No entanto, considerando em torno, fixando os aprestos da cerimônia, perturba-nos a imagem a mais desoladora.

Um protesto, profundamente meditado, reflexo imaculado de algumas consciências novéis mas talvez por isso mesmo, puras — definiu-nos uma posição singular, em meio da agitação geral.

Sem ferir os indivíduos ou as classes, pois que as associações condenadas comportam representantes de todas elas, antes obedecendo unicamente à consideração nobilíssima de que estas associações, pelos seus destinos são — socialmente — um elemento perturbador da continuidade que deve presidir ao esforço comum e — moralmente — profundamente nocivas à alma humana, vimo-nos inopinadamente agredidos pela reprovação geral — não nos restando sequer o apoio dos companheiros que conosco meditam sobre os mesmos livros!…

No entanto p[…], envolva-nos embora a atrabílis ou o humorismo de muitos — sentimo-nos admiravelmente bem, nesta posição.

Para nós a Pátria nada mais é do que a generalização da família; a par de responsabilidades e esforços maiores, temos por ela, idêntica em tudo, a veneração imaculada, que é todo o encanto dos nossos lares.

As festas nacionais, instituídas pela República, nada mais são do que a manifestação exterior deste culto e como não justificar pois que seja, para nós um sacrilégio o desdobrarem-se sobre elas os estandartes impuros, dos que realizaram nos tempos de hoje as lupercais antigas?

Firmamos ante as consciências esta interrogação.

Não nos eximiremos, contudo, às festas do amanhã.

Deslumbrar-se-á, feliz, a capital da República; todas as classes irmanadas por um sentimento generoso, desdobrar-se-ão num longo cortejo rutilante e harmonioso e, para caracterizar melhor o tom feliz da festa, circundar-se-á com os guizos do carnaval a majestosa expansão da alma popular.

Nós festejaremos também o dia de amanhã; mas de outra maneira.

Sós, em minoria extrema, mas felizes por estarmos sós, pois que este isolamento, como o das águias, explica-se pela altitude, iremos aos túmulos dos valentes que se acolheram à história; legando-nos o impulso inicial da ascensão das nossas ideias e dos nossos sentimentos.

Adaptando às condições atuais o delicadíssimo pensamento de Louis Blanc acerca da ação maravilhosa dos mortos ilustres sobre o destino humano, saudaremos as memórias augustas de Paranhos e Ferreira de Menezes.

Cada um desses nomes é a síntese de gerações que de há muito bateram-se pela nobilitação de um povo.

Voltarmo-nos para eles, aproximarmo-nos de seus túmulos imortais, equivale a robustecerem-se em nossa alma os elementos nobilíssimos dessa extraordinária solidariedade humana, que fixando através da história os labores de gerações cria a evolução, a fórmula mais positiva do progresso.

Relembram-nos caracteres inquebráveis, que entregues aos embates das mais perigosas lutas, nos choques das mais poderosas paixões, delas emergiam como os diamantes, mais rígidos e fulgurantes.

Em torno de seus túmulos imortais alentaremos melhor esse imenso amor à Pátria que tem para nós, mais do que a fragilidade de uma expressão afetiva, a feição austera de um produto consciente, pois que é a sistematização brilhantíssima de todos os nossos sonhos no futuro, aliado a todos os esforços, a todas as esperanças, todos os ideais que iluminaram as grandes consciências do passado.

O batalhão acadêmico manifestar-se-á pois — sem destoar do sentimento geral, sob uma forma profundamente honesta e profundamente altiva.

2º tenente
Euclides da Cunha

Como citar
CUNHA, Euclides da. Amanhã. EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Crônicas. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides-cronicas/amanha. Acesso em: [data]. Reprod. Democrata, São José do Rio Pardo, São Paulo, 7 maio 2005. Caderno Cultura 2. Publicado originalmente em Democracia, Rio de Janeiro, n. 60, 12 maio 1890. Texto resgatado por Joel Bicalho Tostes na Biblioteca Nacional.

Ver também
Resposta à Confederação Abolicionista