A Pátria e a Dinastia

Província de S. Paulo, 22 dez. 1888
Os últimos acontecimentos demonstram eloquentemente que o governo atual, apeado ao terreno infecundo dos expedientes, abandonou consciente da própria esterilidade a verdadeira política, desviando de todo o seu espírito da elaboração elevada das verdades sociológicas imediatamente, adaptadas à direção positiva da nossa nacionalidade. Ignorante, diante das noções mais rudimentares do direito constitucional e além disto profundamente incompatibilizado com o elevado destino da política americana, a sua posição até então indefinida — perante a civilização — começa a assumir um caráter nimiamente agressivo. No entretanto, nenhuma quadra melhor se apresentaria a receber o influxo, a ação poderosa de uma política francamente progressista que aproveitando e orientando racionalmente a vitalidade da Pátria, criasse, através da comunhão necessária dos interesses a grandiosa harmonia, a ligação indispensável de seu futuro ao de suas coirmãs da América.

Nada disto, porém, sequer intentou realizar.

Erguido ao poder a fim de ser, felizmente, o redator autômato da vontade popular, literalmente expressa no decreto de 13 de Maio; coagido pela própria evolução da sociedade — a ser grande; orientado — quando devia orientar; nivelado, quase involuntariamente, às ideias de seu tempo — o governo não soube ou não quis aproveitar a grandeza ocasional em que se achou e longe de seguir o único programa civilizador de que pode dispor — conservar melhorando -, emergiu agora da inércia em que deperecia, para implantar no seio da sociedade, que lhe confiou o futuro, abruptamente, uma apreensão séria que se refletirá do modo mais deplorável, em todos os ramos de sua atividade.

Como explicar esse imprevisto movimento de armas, agora — em que se devia iniciar a convergência de todas as atividades para a luta prodigiosa da paz e do trabalho?…

Não acreditamos que seja uma medida de ordem puramente administrativa — nem que o governo inspirando-se nas teorias do eminente criador do poder moderador — pretenda entregando aos cidadãos armados, à guarda nacional, a segurança interior do estado, investir a força arregimentada de sua verdadeira função que é defendê-lo no exterior. Esta medida seria precipitada sobre ser extemporânea. A guarda nacional é entre nós um mito — e que o não fosse pior ocasião não se poderia apresentar, para esse movimento assustador de dez mil baionetas na direção de uma fronteira — já de si fortalecida pela debilidade da nação limítrofe.

Se pretende fazer sentir nos destinos das nacionalidades em litígio a sua influência, no peso da espada de um marechal ilustre — patenteia um triste retrocesso mental, fere de frente o direito constitucional, que negando-lhe a faculdade de declarar a guerra impede-lhe, portanto, de originar-lhe causas e indica limpidamente ter a mentalidade trancada ao maior ideal da política moderna, feito pela sistematização de todos os princípios generosos, em que a supremacia mental inspira e onde a fortaleza das ideias concorre vitoriosamente com o frágil vigor das espadas. Colocou, além disto, de um lado ou doutro dos próximos beligerantes, ou entre ambos, dez mil homens, dez mil temperamentos, expostos a todas as emoções, à magia e às esperanças da glória e dos combates — é ocasionar a guerra, o estéril dispêndio no exterior — agora — em que assoberba-o, crescente, no interior — a anarquia econômica!

Pretenderá dar ao nosso século — o escândalo de uma guerra de conquista?… Acreditamos que não.

A causa, a verdadeira causa talvez — da ação teatral do governo — já está de há muito desvendada.

Sentindo desaparecer dia a dia, o automatismo que por tanto tempo aniquilou a orientação digna da maioria dos atos da sociedade brasileira; compreendendo, diante do espírito nacional vigorosamente alentado por novas aspirações, a fragilidade do cômodo regime que o sustenta; notando — o que é mais sério — que a fronte do soldado, banhada nas correntes iluminadas do espírito contemporâneo, ousava cometer um delito, não previsto pelo conde de Lippe — racionar, o que transmudava-o numa força, força que se traduzia num movimento desassombrado e harmônico com o da sociedade; temendo, sobretudo, esse consórcio do pensamento com a espada — aliança que coloca esta ao lado do futuro e da liberdade — o governo resolveu antepor à política da Pátria a política imperial. E adotou a norma banal de dispensar para enfraquecer. Dispensa o exército, e tendo-o assim, não podendo destruir-lhe no cérebro a noção digna que começa a ter do futuro — excita-lhe a ambição com a imagem encantadora de futuras glórias. Santa ilusão, porém, em tudo isto!…

Desiluda-se o governo. A civilização é o corolário mais próximo da atividade humana sobre o mundo; emanada imediatamente de um fato, que assume hoje na ciência social o caráter positivo de uma lei — a evolução — o seu curso, como esta, é fatal, inexorável, não ha tradições que demorem-lhe a marcha, nem revoluções que a perturbem — tanto assim é que atravessando o delírio revolucionário de 93 e tendo pela frente — impugnadora — a espada de Bonaparte, onde irradiavam as gloriosas tradições do maior povo do mundo — emerge-o tranquilo no vasto deslumbramento do século XIX.

Desiluda-se pois, o governo; a evolução se opera na direção do futuro — e quer o governo queira, quer não, embora voltado para o passado, caminhará com ela, para a frente, mas como os covardes — recuando.

 
E.C.

Como citar
CUNHA, Euclides da. A Pátria e a Dinastia. EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Crônicas. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/cronicas/. Acesso em: [data]. Artigo publicado originalmente em n’ Província de S. Paulo, atual O Estado de S. Paulo, em 22 dez. 1888. Reprod. CUNHA, Euclides da. Crônicas. In: Obra completa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1. pp. 691-2.