A Guerra das Caatingas

O Paiz, Rio de Janeiro, 6 de agosto de 1902

Os doutores na arte de matar que hoje, na Europa, invadem escandalosamente a ciência, perturbando-lhe o remanso com um retinir de esporas insolentes – e formulam leis para a guerra pondo em equação as batalhas, têm definido bem o papel das florestas como agente tático precioso, de ofensiva ou defensiva.

E ririam os sábios feld-marechais guerreiros de cujas mãos caiu o frankisk heroico trocado pelo lápis calculista, se ouvissem a alguém que às caatingas pobres cabe função mais definida e grave que às grandes matas virgens.Porque estas, mau grado a sua importância para a defesa do território – orlando as fronteiras e quebrando o embate às invasões, impedindo mobilizações rápidas e impossibilitando a translação das artilharias – se tornam de algum modo neutras no curso das campanhas. Podem favorecer, indiferentemente aos dois beligerantes, oferecendo a ambos a mesma penumbra às emboscadas, dificultando-lhes por igual as manobras ou todos os desdobramentos em que a estratégia desencadeia os exércitos. São uma variável nas fórmulas do problema tenebroso da guerra, patenteando as mais opostas soluções.

Ao passo que as caatingas são um aliado incorruptível do sertanejo em revolta.

Entram também, de certo modo, na luta. Armam-se para o combate; agridem. Trançam-se, impenetráveis, ante o forasteiro, mas abrem-se em trilhas multívias para o matuto que ali nasceu e cresceu.

E o jagunço faz-se o guerrilheiro thug, intangível…

As caatingas não o escondem apenas, amparam-no.

Ao avistá-las, no verão, uma coluna em marcha não se surpreende.

Segue pelos caminhos em torcicolos, aforradamente. E os soldados, devassando com as vistas o matagal sem folhas, nem pensam no inimigo.

Reagindo à canícula e com o desalinho natural às marchas, prosseguem envoltos no vozear confuso das conversas travadas em toda a linha, virguladas de tinidos de armas, cindidas de risos joviais mal sofreados.

É que nada pode assustá-los.

Certo, se os adversários imprudentes com eles se afrontarem, serão varridos em momento. Aqueles esgalhos far-se-ão em estilhas a um breve choque de espadas e não é crível que os gravetos finos quebrem o arranco das manobras prontas.

E lá se vão, marchando, tranquilamente heroicos…

De repente, pelos flancos, lhes estoura, perto, um tiro…

A bala passa, rechinante, ou estende, morto, em terra, um homem.

Sucedem-se, pausadas, outras, passando sobre as tropas, em sibilos longos.

Cem, duzentos olhos, mil olhos perscrutadores volvem-se impacientes, em roda.

Nada veem.

Há a primeira surpresa. Um fluxo de espanto corre de uma a outra ponta a outra ponta das fileiras.

E os tiros continuam raros, mas insistentes e compassados, pela esquerda pela direita, pela frente agora, rompentes de toda a banda…

Então estranha emoção invade os mais provados valentes, ante o antagonista que vê e não é visto.

Forma-se celeremente em atiradores uma companhia, mal destacada da massa de batalhões constritos na vereda estreita. Distende-se pela orla da caatinga. Ouve-se uma voz de comando; e um turbilhão de balas rola estrugidoramente dentro das galhadas…

Mas constantes, longamente intervalados sempre, zunem os projéteis dos atiradores invisíveis batendo em cheio nas fileiras. A situação rapidamente engravesce exigindo resoluções enérgicas.

Destacam-se outras unidades combatentes, escalonadas, por toda a extensão do caminho, prontas à primeira voz; – e o comandante resolve carregar contra o desconhecido.

Carrega-se contra os duendes.

A força, baionetas caladas, rompe, impetuosa, o matagal numa expansão irradiante de cargas.

Avança com rapidez. Os adversários parecem recuar apenas.

Nesse momento surge o antagonismo formidável da caatinga.

As seções precipitam-se para os pontos onde estalam os estampidos e estacam ante uma barreira flexível, mas impenetrável, de juremas.

Enredam-se no cipoal que as agrilhoa, que lhes arrebata das mãos as armas, e não vingam transpô-lo. Contornam-no. Volvem aos lados.

Vê-se um como rastilho de queimada, uma linha de baionetas enfiando pelos gravetos secos. Lampeja por momentos entre os raios de sol joeirados pelas árvores sem folhas; e parte-se faiscando adiante, dispersa, batendo contra espessos renques de xiquexiques, unidos como quadrados cheios de falanges, intransponíveis, fervilhando espinhos…

Circuitam-nos estonteadamente, os soldados.

Espalham-se. Correm, à toa, num labirinto de galhos. Caem presos pelos laços corredios dos quipás reptantes; ou estacam, pernas imobilizadas por fortíssimos tentáculos. Debatem-se desesperadamente até deixarem em pedaços as fardas, entre as garras felinas de acúleos recurvos das macambiras…

Impotentes estadeiam, imprecando o desapontamento e a raiva, agitando-se furiosos e inúteis.

Por fim a ordem dispersa do combate, faz-se a dispersão do tumulto. Atiram a esmo, sem pontarias, numa indisciplina de fogo que vitima os próprios companheiros.

Seguem reforços. Os mesmos transes reproduzem-se maiores, acrescida a confusão e a desordem; – enquanto em torno circulando-os, rítmicos, fulminantes, seguros, bem apontados, caem inflexivelmente os projéteis dos adversários.

De repente cessam.

Desaparece o inimigo que ninguém viu.

As seções voltam, desfalcadas, para a coluna depois de inúteis pesquisas nas macegas. E voltam como se saíssem de recontro, braço a braço, com selvagens: vestes em tiras; armas estrondadas ou perdidas; golpeados de gilvazes; claudicando, estropiados; mal reprimindo o doer infernal das folhas urticantes; frechados de espinhos…

Reorganiza-se a tropa.

Renova-se a marcha.

A coluna, estirada a dois de fundo, deriva pelos descampados, estampando no cinzento da paisagem o traço vigoroso das fardas azuis listradas de vermelho e o coruscar intenso das baionetas ondulantes.

Alonga-se; afasta-se; desaparece.

Passam-se minutos.

No lugar da refrega, então, surgem, dentre moitas trançadas, cinco, dez, vinte homens no máximo.

Deslizam, rápidos, em silêncio, entre os arbustos secos…

Agrupam-se na estrada. Consideram por momentos a tropa, indistinta ao longe; e sopesando as espingardas ainda aquecidas, tomam precipites pelas veredas dos pousos ignorados.

A força, adiante, vai prosseguindo mais cautelosa agora.

Subjugam o ânimo dos combatentes, caminhando em silêncio, o império estranho do inimigo impalpável e a expectativa torturante dos assaltos imprevistos.

O comandante rodeia-os de melhores resguardos: ladeiam-nos companhias dispersas, pelos flancos: duzentos metros na frente, além da vanguarda, norteia-os um esquadrão de praças escolhidas.

No descair de encosta entorroada, porém, escancela-se um sulco de quebrada que é preciso transpor.

Felizmente as barrancas, esterilizadas dos enxurros, estão limpas: escassos restolhos de gramíneas; cactos esguios avultando raros, entre blocos em montes; galhadas mortas de umbuzeiros alvejando na estonadura da seca…

Desce por ali a guarda da frente. Seguem-se-lhe os primeiros batalhões. Escoam-se, vagarosas, as brigadas pela ladeira agreste.

Embaixo, coleando nas voltas do vale estreito, já está toda a vanguarda, armas fulgurantes, feridas pelo sol, feita uma torrente escura transudando raios…

E um estremecimento, choque convulsivo e irreprimível, fá-la estacar de súbito.

Passa, ressoando, uma bala.

Desta vez os tiros partem, lentos, de um só ponto, do alto, parecendo feitos por um atirador único.

A disciplina contém as fileiras; debela o pânico emergente; e, como anteriormente, uma seção se destaca e vai, encosta acima, rasteando a direção dos estampidos.

O torvelinho dos ecos numerosos, porém, torna, aquela variável; e os tiros não revelados, porque o fumo não se condensa naqueles ares ardentes, continuam lentos, assustadores, seguros.

Afinal cessam.

Soldados esparsos pelos pendores, pesquisam-nos inutilmente.

Volvem exaustos. Vibram os clarins. A tropa renova a marcha com algumas praças de menos.

E quando as últimas armas desaparecem, ao longe, na última ondulação do solo, reponta dentre montões de blocos – feito uma cariátide sinistra em ruínas ciclópicas – um rosto bronzeado e duro; depois um torso de atleta, encourado e rude; e transpondo velozmente as ladeiras vivas desaparece, em momentos, o trágico caçador de brigadas…

Estas seguem desinfluídas de todo.

Daí por diante velhos lutadores têm pavores de criança. Há estremecimentos em cada volta do caminho, a cada estalido seco nas macegas.

O exército sente na própria força a própria fraqueza.

Sem plasticidade segue numa exaustão contínua pelos ermos, atormentado no golpear das ciladas, lentamente sangrado pelo inimigo, que o assombra e que foge.

A luta é desigual. A força militar decai a um plano interior. Batem-na o homem e a terra. E quando o sertão estua nos bochornos dos estios longos não é difícil prever a quem cabe a vitória.

Enquanto o minotauro, impotente e possante, inerme com a sua envergadura de aço e grifos de baionetas, sente a garganta exsicar-se-lhe de sede e, aos primeiros sintomas da fome, reflui à retaguarda, fugindo ante o deserto ameaçador e estéril, aquela flora agressiva abre ao sertanejo um seio carinhoso e amigo.

Então – nas quadras indecisas entre a seca e o verde, quando se topam os últimos fios de água no lodo das ipueiras e as últimas folhas amarelecidas nas ramas das baraúnas, e o forasteiro se assusta e foge ante o flagelo iminente, aquele segue feliz nas travessias longas, pelos desvios das veredas, firme na rota como quem conhece a palmo todos os recantos do imenso lar sem teto. Nem lhe importa que a jornada se alongue, e as habitações rareiem, e se extingam as cacimbas, e escasseiem, nas baixadas, os abrigos transitórios, onde sesteiam os vaqueiros fatigados.

Cercam-lhe relações antigas. Todas aquelas árvores lhe são velhas companheiras. Conhece-as todas. Nasceram juntos; cresceram irmãmente; cresceram através das mesmas dificuldades, lutando com as mesmas agruras, sócios dos mesmos dias remansados.

O umbu desaltera-o e dá-lhe a sombra escassa das derradeiras folhas, o araticum, o ouricuri virente, a mari elegante, a quixaba de frutos pequeninos, alimentam-no a fartar; as palmatórias, despidas em combustão rápida dos espinhos numerosos, os mandacarus talhados a facão ou as folhas dos juás – sustentam-lhe o cavalo; os últimos dão-lhe ainda a cobertura para o rancho provisório; os caroás fibrosos fazem-se cordas flexíveis e resistentes… E se é preciso avançar a despeito da noite, e o olhar, afogado no escuro, apenas lobriga a fosforescência azulada das cunanãs, dependurando-se pelos galhos como grinaldas fantásticas, basta-lhe partir e acender um ramo verde de candombá e agitar pelas veredas, espantando as suçuaranas deslumbradas, um archote fulgurante…

A natureza toda protege o sertanejo.

Talha-o como Anteu, indomável.

É um titã bronzeado fazendo vacilar a marcha dos exércitos.

 
Euclides da Cunha
Dos Sertões

Como citar
CUNHA, Euclides da. A Guerra das Caatingas. EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Crônicas. São Paulo, 2021. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/cronicas/. Acesso em: [data]. Artigo publicado originalmente em O Paiz, Rio de Janeiro, 6 de agosto de 1902. Pesquisa e digitalização de Felipe Pereira Rissato. Rev. Juan C. P. de Andrade.