4º Centenário do Descobrimento do Brasil

O Rio Pardo, 6 de maio de 1900

No século XVI a Humanidade dilatou o cenário da história.

Despeada do tumulto medieval voltou-se para o passado, atraída pelo fulgor da antiguidade clássica, reatando pela cultura humanista, os elos da continuidade social partidos desde a irrupção dos Bárbaros. E à medida que por tal forma o espírito humano renascia, crescendo na ordem intelectual, como que se lhe impôs, indispensável ampliar também, na ordem física, o palco desmedido em que apareceriam as sociedades transfiguradas.

De sorte que, logicamente, a Renascença coincide com a época dos grandes descobrimentos geográficos — que longe de traduzirem feituras do acaso favorecido pela audácia de alguns marinheiros temerários, foram um resultado imediato da reorganização geral.

Colombo meditativo diante da Imago mundi de Petrus Aliacus ou deletreando as cartas de Paolo Toscanelli, ligava-se através dos séculos a Strabo; Bartolomeu Dias, rumando impávido para o mar immoto do Atlântico Sul, singrava na esteira secular do périplo de Hannon…

[Os países futuros iriam surgir indicados pelo passado.]

Além disto, a atração irreprimível do Oriente opulentíssimo por um lado, e de outro o anelo de atingir as terras misteriosas do Ocidente onde demorava a Atlantide fantástica dos Gregos, eram estímulos poderosos às gentes europeias.

Norteados por tais desígnios os barinéis ligeiros, as galés e as naves majestosas, e as caravelas atrevidas fizeram-se aos mares desconhecidos, velejando de Palos e Lisboa. Procurando com Vasco da Gama as altas latitudes do hemisfério sul e contornando a África ou com Vicente Pinson endireitando ponteiros para oeste, visando el levante por el poente, demandavam todos, variando na rota, um objetivo único — alcançar a Índia portentosa.

O descobrimento da nossa terra realizou-se, então, como um incidente inesperado, mas não inteiramente fortuito, dessa tentativa fascinadora.

Pedro Álvares Cabral zarpara a 9 de março de 1500, de Lisboa, para a Índia onde ia suceder ao Gama e este, mais experimentado daqueles mares, recomendando-lhe que se alongasse o mais possível para o ocidente, amarando da costa africana de modo a evitar as calmarias do golfo de Guiné, tinha, talvez, o secreto intuito de ver realizada uma travessia nas paragens ignotas cujas terras, ainda não descobertas, pertenciam, pelo recente tratado de Tordesilhas, à coroa portuguesa.

Partiu o feliz navegador e inesperadamente, a 22 de abril (data inutilmente transposta pelo calendário gregoriano para 3 de maio) deparou com lugares nunca vistos naqueles mares, nunca dantes navegados.

*

Foi há quatrocentos anos…

Em geral os nossos historiadores dão ao acontecimento um aspecto dramático: doze caravelas
desarvoradas — mastros desaparelhados e velames rotos, sacudidos violentamente pelo Atlântico, arrebatados nas lufadas fortes dos ventos desencadeados — e arribando à enseada salvadora de “Vera Cruz”.

Estava descoberto o Brasil.

E como aqueles rudes lidadores, que haviam deslocado para o oceano tormentoso a bravura romanesca da cavalaria medieva, não dilatavam somente o império mas também a fé, dias depois, a 1º de Maio, diante do gentio deslumbrado, realizaram a primeira missa.

E partiram. Reataram a rota aproando outra vez para as Índias, deixando em terra, alteada sobre um
monte, avultando nas solidões do novo continente e dominando o mar, uma cruz de madeira.

Estava cravado o primeiro marco da nossa história.

O belo símbolo cristão ali ficou; e muito alto, projetando-se nos céus entre as fulgurações do Cruzeiro, braços largamente abertos para os mares, braços abertos para a Europa, era como um apelo ansioso, o primeiro reclamo da terra ainda virgem à Civilização afastada…

E.C.

Como citar
CUNHA, Euclides da. 4º Centenário do Descobrimento do Brasil. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Crônicas. São Paulo, 2021. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/cronicas/4o-centenario-do-descobrimento-do-brasil/ Acesso em: [data]. Publicado originalmente em O Rio Pardo, São José do Rio Pardo, São Paulo, 6 de maio de 1900. p. 1. Reprod. CUNHA, Euclides da. Crônicas. In: Obra completa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1. pp. 748-794.