- Rio, 7 de abril de 1893
- Rio, 21 de abril de 1893
- Rio, 6 de maio de 1893
- Rio, 23 de maio de 1893
- Capital Federal, 22 de novembro de 1893
- Rio, 25 de novembro de 1893
- Rio, 2 de dezembro de 1893
- Capital Federal, 11 de dezembro de 1893
- Capital Federal, 15 de dezembro de 1893
- Rio, 29 de dezembro de 1893
Rio, 7 de abril de 1893
Porchat
Nem sei como começar esta carta…
Deves ter acreditado que eu me tenha esquecido dos amigos e etc. graças a este silêncio incompreensível que tenho mantido.
Razões sérias, poderosos motivos, porém, têm concorrido: além de preocupações particulares como uma moléstia em pessoa da família, têm-me distraído preocupações de natureza muito geral e que dizem respeito à nefasta política que atualmente nos desgoverna.
Felizmente a Saninha já se acha melhor de um ameaço de linfatite ― e eu tenho um quarto de hora para abraçar um amigo.
Não posso porém ser longo; daqui a alguns dias mais ― então conversaremos muito detalhadamente. O meu único objetivo escrevendo-te hoje é dizer-te que não esqueço os amigos e pedir-te para transmitir à Exma. família as minhas saudações e as da Saninha.
Amanhã conversarmos acerca do atual estado de coisas com as reservas necessárias impostas pela atual honorabilidade do correio e a inviolabilidade fictícia das correspondências.
O que, por hoje, te posso afirmar é que estamos na véspera de acontecimentos gravíssimos: os negócios do Rio Grande, onde, em que pese aos telegramas governistas, o governo tem sido batido em toda a linha ― os negócios do Rio Grande repito, talvez sejam os pródromos de agitações extraordinárias, imprevistas e terminais…
Esperemos.
Estou ainda na mesma casa, no Campo de S. Cristovão n. 11.
Adeus ― recomende-nos, a mim e a Saninha a toda a família ― e aceite um abraço do amº
Euclides da Cunha
Rio, 21 de abril de 1893
Porchat
Saúdo-te, assim como a Exma. família.
Lastimo não poder desculpar-te da demora em responder-me; quaisquer que fossem os teus negócios de advogado, não acredito que te não pudessem dar um quarto de hora para escrever a um amigo ― e não acredito porque a tua carta encontrou-me rodeado de livros, encontrou-me estudando para um concurso, encontrou-me meditando sobre a melhor maneira de desenvolver uma tese… e no entanto foi lida com a maior satisfação e respondo-a de pronto. E queres saber onde me encontrou ela? Entre as constelações, perdido entre os mundos, no ponto culminante da Astronomia, no vasto desenrolar das leis maravilhosas de Newton… No entanto desci logo à Terra e não lastimei o fato porque realmente nada se perde abandonando uma estrela para abraçar um amigo.
Passemos, porém adiante. A tua carta demonstrou-me amplamente que toda a perturbação que por aqui vai, reflete-se aí. Estimei o fato e ainda mais por ver que estamos de harmonia acerca do final desfecho da dégringolage e acerca dos homens que inconscientemente a estimulam.
O Rio de Janeiro continua hipnotizado pelo telégrafo do Sul e os telegramas continuam, abalando-o espantosamente. Não acredito entretanto que toda a sua açãová além disto. O nosso povo, meu caro Porchat, por abdicação completa de todas as energias, não tem forças para agitar-se além das arruaças desprezíveis. Eu às vezes acredito que houve duas abdicações no dia 15 de novembro ― a do Imperador e a dele. Os boatos continuam persistentes como se isto fosse uma terra de d. Basílios e nada mais. Nós atravessamos uma revolução ― a revolução dos cochichos: os revolucionários vivem a discursar pelas esquinas inclinados para o ouvido dos comparsas ― mas toda a sua ação não vai além disto. Falta-nos vigor, falta-nos brio, falta-nos sentimento e falta-nos espírito. Durante largo tempo, podes ficar certo, estaremos à mercê de todas as ousadias da inconsciência política. É por isto que eu bato palmas à revolução do Sul, quando menos é um exemplo, quando menos ela nos está dizendo que se nesta terra não há quem saiba viver à luz dos princípios, existe uma minoria que sabe morrer por eles.
O que posso te dizer é isto ― a nossa situação é deplorável e perigosa, vamos atravessar longos e sombrios dias de anarquia sem nome, até que o espírito nacional duramente provado faça com que a nossa Pátria volte para a comunhão dos povos como o filho pródigo ― educada pelas desgraças…
Escrevi para o Estado, segundo compromisso que havia estabelecido, uma correspondência que acredito não será publicada em vista da função um tanto oposicionista que ela tem. Sabes tanto quanto eu que os ignos companheiros redatores daquela folha são bons, leais e sinceros republicanos e além disto caracteres independentes a toda prova. Apesar de tudo isto as paixões políticas são capazes de todos os desastres. Como não tenho recebido o Estado para verificar o que vai dito apelo para você, esperando resposta nesse sentido. Se tiver sido publicada peço-te igualmente mandar-me o exemplar do jornal que a trouxer. É muito reservadamente que faço um tal pedido.
Nada mais tenho a escrever. Segundo já disse vivo à parte do movimento geral; interrompi o estudo para escrever-te, encerro esta carta para estudar. Nem mesmo irei presenciar a festa que, dizem, farão hoje ao protomártir de nossa independência.
Felizmente continuamos bons de saúde, a Saninha, o filhinho e eu. Acredito que o mesmo se dará contigo e os teus.
Escreva-me breve; faça como eu, escreva logo que receberes esta ― abandone um pouco os autos, como eu abandono as cartas do céu. Abrace por mim a todos os bons comapnheiros e considera sempre como um amº
Euclides da Cunha
Campo de S. Cristovão n. 11
N.B. ― Peço-te o favor de mandares os números do Estado de 21 e 22 do corrente.
Euclides
Rio, 6 de maio de 1893
Porchat
Saúdo-te e a toda a Exma. família.
Somente hoje te posso escrever sobretudo para agradecer o teu delicado favor. Estive doente, com uma moléstia complicada em que havia um pouco de pneumonia, um pouco de nervosismo e uma dose sofrível de moléstias imaginárias. Por isto, além de demorar a resposta da tua carta que me encontrou ainda de cama, interrompi as considerações que fazia no Estado. Peço-te que digas isto ao Filinto ― e mais que ele deve-me a resposta de um cartão que lhe enviei; autorizo-te a recriminá-lo vigorosamente com toda a tua verve tabelioa, forense e atrabiliária de advogado valente. Diga-lhe todo o horror do crime cometido não correspondendo à barretada satisfeita de um compadre que cumprimenta a pouca gente e etc. Quero ver se a vindita de que te encarrego produz o melhor dos resultados: quero ver se me entra afinal nesta minha casa triste e silenciosa de astrônomo em embrião, como um raio de Sol, a resposta de nosso gordo e ingratíssimo amigo.
Noto que os companheiros daí se estão vendendo demasiadamente caro: o Filinto e o Prestes não me respondem às cartas e você ― que era até bem pouco tempo a expressão vivíssima da maior constância ― parece seguir agora idêntico processo.
Deixemos pois de lado estas coisas tristes e falemos das coisas graves. Estas avolumam-se pavorosamente. A deserção covarde dos secretários do governo operou-se na melhor ocasião para os desertores. A situação complica-se e o prognóstico a tirar dela é tremendo. As probabilidades da vitória revolucionária no Sul são cada vez maiores e se ela se der imaginam-se facilmente todas as consequencias desastrosas. Aonde iremos parar? Não quero me prolongar neste sentido, não quero delinear conjeturas deploráveis e possíveis ― estamos numa situação em que quase é útil a inconsciência do perigo.
Estimarei que tenhas levado avante os teus esforços em prol do Liceu de Artes e Ofícios. Responda-me com brevidade, dizendo-me alguma coisa acerca dessa política paulista que afinal é a única que se me afigura mais ou menos definida na balbúrdia geral. São 9:1/2 da manhã, encerro esta a fim de ― seguir para o Observatório Astronômico ― e lastimo sinceramente não poder por mais tempo conversar contigo.
Recomende-nos muito, a mim e a Saninha a toda a tua família da qual não esqueceremos e receba um grande abraço do amo velho
Euclides
Rio, 23 de maio de 1893
Porchat
Respondo com a maior satisfação a melhor carta entre todas as que me tem escrito, pedindo-te que no meu nome e no de Saninha transmitas à Exma. esposa e Exma. família as mais sinceras congratulações pelo feliz sucesso. Respeito tanto a tua alegria que serei brevíssimo, não querendo roubar-te o tempo melhor da vida. Não te direi que recebi com imensa alegria a agradável notícia porque não te faço a injustiça de supor que isto seja necessário. Dir-te-ei porém o seguinte: recebi a tua carta com o meu pequenino Solon ao colo e ao lê-lo acudiu-me ao espírito a idealização de uma amizade futura entre ele e o teu, amizade tão sólida que pudesse recordar a velha amizade dos pais. Acredito que não podia ter melhor pensamento para corresponder à boa notícia que me deste.
Continuo seguindo as asperezas de um estudo ingrato, tendendo para um concurso sem esperanças. Quanto à política… não falemos mais nisto; afastei-me inteiramente de tal assunto ― compreendi afinal que nesta terra a política é a ocupação cômoda dos desocupados e só tenho um arrependimento sincero e profundo na vida: o ter-me, embora fracamente, preocupado algum tempo com tal coisa.
Adeus ― espero que não te demorarás tanto quanto nas outras vezes ― em responder ao velho amo
Euclides da Cunha
Capital Federal, 22 de novembro de 1893
Porchat
Saúdo-te e à Exma. família.
Se eu intentasse justificar o meu longo silêncio de meses gastaria todo o tempo que tenho para escrever-te; renuncio, pois, à empresa, confiante mais uma vez na grande generosidade do distinto amigo.
Sei que és feliz nesta boa terra paulista aonde acredito que uma atmosfera mais serena e menos coalhada de fumaça te aviventa e alegra; dou-te os meus parabéns por isto. Não poderei dizer de mim o mesmo; ― rodeia-nos aqui uma trágica monotonia de praça de guerra, cheia de notas vivas de clarins e estouros de metralha.
Parece que a revolta da Armada, na falta de um princípio orientador e sério, enlouquece, vibrando numa epilepsia sinistra, estortegando-se através de bombardeios contínuos.
No meio de tudo isto eu tive felizmente bastante lucidez para descobrir a estrada do dever, e nela estou e nela prosseguirei. Coloquei-me naturalmente, espontaneamente ao lado da entidade abstrata ― governo ― porque repilo a perspectiva desmoralizadora dos pronunciamentos e porque entendo que a salvação própria sendo um direito para os indivíduos é um dever para os governos.
Além disto a nossa pobre Pátria, tão exausta já ― não pode suportar reações armadas, não pode mais emprestar sangue para movimentos políticos… que sejam afinal movimentos de tropas!
Há ainda uma razão poderosa que fixa a minha posição: pressinto através da feição dúbia de alguns caracteres, através da simpatia suspeita pela revolta, por parte da esquadra estrangeira ― o fantasma do 3° Império. Deves convir que isto não é um sonho ― a história está cheia de tais prestidigitações e eu não creio que a sua larga porta esteja já fechada à entrada dos prestimosos políticos. Em suma, meu digno amigo, errando ou acertando, a posição que adotei é perfeitamente consciente. Deixando porém de parte assunto que me levaria muito longe, passemos a outro. Como vamos de advocacia? A situação atual tem-se refletido nos cartórios, paralisando as demandas, entorpecendo as questões de toda a sorte ― de modo a desequilibrar o orçamento dos advogados?
São perguntas que se referem a ti. Pelo que me diz respeito, além do que já disse, tenho a acrescentar o sombreado tristíssimo de uma grande saudade pela Saninha e o filhinho, que aí estão em S. Paulo, na fazenda do meu pai. Já vês que não é invejável a minha vida. Sobre tudo isto ainda caiu, como uma pedrada, uma decepção: o meu lugar na Escola de Engenharia daí, parece que foi ocupado por outro mais apto; apesar do interesse decidido de amigos influentes como o Mesquita e outros, apareceu entre os concorrentes cópia tal de aptidões provadas, que eu tive de ficar na penumbra.
Eu dou os meus sinceros parabéns a S. Paulo.
Felizmente não me fecharam a porta, restam algumas cadeiras que se devem preencher por concurso e se não entrei agora, como cavalheiro, levado delicadamente pela mão de um amigo, hei-de lá entrar amanhã ― só ― sem apresentações ― e sentar-me numa cadeira… sem que ninguém a ofereça.
Como vai o teu filhinho?
Esta pergunta devia ser feita no princípio, escrevo porém tão precipitadamente e dispondo de tão pouco tempo que é desculpável tal descuido. Responde-me com brevidade mandando a carta para a Praça da República 32 ― e dê-me notícias tuas e de todos.
Recomenda à Exma. família e recebe um abraço do amo
Euclides da Cunha
[Timbre Comissão Técnica Militar Consultiva ― 32, Praça da República]
Rio, 25 de novembro de 1893
Porchat
Peço-te desculpas por me utilizar de um papel tão genuinamente burguês, como este em que te escrevo; acho-me porém, neste instante na Escola e quero aproveitar a meia hora que ainda tenho antes da hora da aula, para cumprir um dos melhores deveres que atualmente tenho — o de escrever-te.
As boas, as felizes notícias que nos destes acerca da saúde de d. Esmeralda — e era escusado dizer-te isto — foram recebidas por mim e por Saninha com a mais viva satisfação, tal que nos habilita a avaliarmos toda a imensa e justa alegria que deve atualmente pairar sobre o teu lar — tão duramente provado pelos reveses nestes últimos tempos.
Pelo que me diz respeito, espero a todo o instante, aqui em casa, a mais atraente novidade entre todas as que me podem preocupar e serei bem feliz se por estes poucos dias mais pudermos participar-te a exemplificação objetiva de um excesso de crescimento, na incisiva e límpida frase do majestoso mestre britânico.
Não fostes então nomeado para a 2ª promotoria daí… E tiveste o magnífico orgulho de não te queixares; admiravelmente. Como não me poupo a esforços para seguir os bons exemplos, sigo mais uma vez um dos teus; — nada te responderei acerca de tal coisa.
Depois de terminados, aqui, os trabalhos da Escola, irei com a Saninha até aí, passar um mês ou dois, talvez os de janeiro e fevereiro — e então conversaremos largamente e então talvez eu te diga tudo o que sinto, acerca de toda essa agitação, infecunda e anárquica, que por aí vai e pela qual já um dia (pro pudor!), cego de entusiasmo, quebrei lanças…
Felizmente — o meu pai pretende seguir comigo em março para a Europa e lá, graças à minha índole exagerada de fetichista, doido pelos modernos prodígios de civilização, talvez eu me esqueça um pouco do triste rebaixamento em que caiu esta nossa pátria — entregue inteiramente às insânias dos caudilhos eleitorais e ao maquiavelismo grosseiro de uma política que é toda ela uma conspiração contra o futuro de uma nacionalidade… Mas… basta! Talvez não te agrade esta tonalidade, talvez não concordes com este modo de exprimir — não sendo além disso, prudente, pelos tempos que correm confiar à problemática discrição do correio — verdades de certa natureza.
Como novidade literária, tenho a noticiar-te que estou lendo uma obra-prima velhíssima, o Ivanhoe de Walter Scott; estou lendo-a no original em inglês — de dicionário ao lado, a fim de adquirir mais seguras relações com uma língua que (convirás nisto apesar da tua italofilia) é incontestavelmente uma das mais expressivas e de mais caprichosa composição das atuais do mundo civilizado.
Noto, porém, que vou num egoísmo bárbaro a falar unicamente de mim.
Quando responderes a esta manda-me mais ampla notícia acerca dos teus — assim como dos poucos amigos comuns que aí temos e entre estes — o Bonifácio Teles, e família, dos quais há muito não temos notícias.
Recomenda-nos muito a mim e Saninha a d. Maria Júlia e toda a Exma. família; dispõe do obrdo.
Euclides da Cunha
Rio, 2 de dezembro de 1893
Porchat
Saúdo-te assim como a toda a família.
Infelizmente não poderei longamente responder a tua carta, que acabo de ler e que com certeza hei de reler muitas vezes.
Ela me foi altamente consoladora; abri-a como quem abre uma janela à entrada de manhã claríssima na câmara de um doente. Envio ao distinto amigo o agradecimento mais sincero pelas suas consoladoras palavras.
Sobre o que disseste acerca da Escola de Engenharia daí, estou de completo acordo; felizmente deixaste transparecer a convicção na minha perfeita indiferença ante uma aspiração abortada. Mediste bem a atitude dos concorrentes felizes — entre os quais um, um só, bruxuleia tenuíssima luz. Não falemos porém desta questão mexida e sem interesse. Lamentei que por excesso de delicadeza te ocupasses na tua carta muito pouco de tua pessoa; deves entretanto saber que ligo algum interesse à fortuna dos amigos ; assim, pois, quando responderes a esta não te esqueças de dar-me mais amplas notícias do digno amigo Reinaldo Porchat.
Acerca dos negócios políticos em nada me poderei avantajar às notícias dos jornais.
Eu persisto no cumprimento difícil e constante do dever.
Aceito o abraço enviado pelo velho amigo dr. Almeida; — diga-lhe que para enviá-lo ele não poderia encontrar melhores órgãos e que a estes mesmos confio a tarefa de uma retribuição sincera.
Escreva-me sempre; desculpa a brevidade desta carta, escrita de afogadilho e cujo objetivo essencial é pedir-te que recomende muito a Exma. família e te recordes sempre a um amo.
Euclides da Cunha
[Timbre: Comissão Técnica Militar Consultiva — 32, Praça da República]
Capital Federal, 11 de dezembro de 1893
Meu Pai
Abraço-vos desejando saúde e felicidades.
Escrevo sob a mais triste impressão. O longo afastamento dos que tanto estimo aliado aos trabalhos da minha posição, as preocupações que a todo momento me agitam, o pensamento constante no futuro e toda a incerteza do presente ― têm-se refletido da pior maneira sobre mim. Sinto-me abater dia a dia, minado por doença pertinaz (peço-vos não dizer isto a Saninha) sinto-me cada vez mais fraco e com o pressentimento cada vez maior de um tristíssimo fim. A minha energia moral pode apenas dominar todo esse abatimento da minha natureza. Se há um Deus, ele sabe de quanta virtude eu disponho para arcar com o cumprimento de tão penosos deveres; aliados a sacrifícios tão grandes. Acabo de receber uma carta de Saninha que ainda mais me abateu: diz-me que está doente e pede-me para ir buscá-la. Eu sei que ela deve sofrer muito na dolorosa situação em que está, na iminência constante de uma viuvez que a pode assaltar quando menos a esperar, mas o que hei de fazer? Não posso sair daqui. Não posso abandonar a minha posição. Não posso desonrar-me pela deserção ― não posso, não devo e não quero. Apesar disto não a quero contrariar. Ela tem sofrido tanto que eu não seria digno se permanecesse surdo ao seu pedido. Quando surgiu essa maldita revolta que a tantos tem feito sofrer, pensei imediatamente no sr. como a única pessoa capaz de me amparar no doloroso transe, a única a que eu podia confiar a minha mulher e o meu filho. E eu não me iludi. Estou certo de que a Saninha encontrou no sr. um verdadeiro pai (e isto ela me tem dito) ― mas como na carta que me acaba de enviar disse-me que se sente doente e teme até morrer aí, desejando voltar, eu, não podendo sair daqui, fico no desespero dos que não podem tomar deliberação alguma. Como contrapeso a tudo isto aparece-me agora uma tosse insistente e rebelde e progredindo espantosamente. Os médicos dizem que eu devo ter muito cuidado, que os sintomas são maus e etc. Nada porém eu posso fazer, nem mesmo para tratar da saúde se dão licenças. Vivo uma vida realmente miserável ― não por falta de dinheiro ― sem poder ter a mais ligeira higiene como regularidade de alimentação. Reconheço assim que é preferível que aqui estejam a Saninha e o filhinho, apesar de todos os perigos; quando menos eu sairei de um modo de vida ao qual estou certo que o meu organismo não pode resistir. O sr. tem explosões de gênio mas o coração generoso sempre e o pensamento sempre digno ― há de compreender a situação dolorosa em que me acho e fazê-la cessar.
Meu pai, eu sinto o maior abatimento ― corolário inevitável de preocupações e trabalhos que tenho tido ― peço, pois para desculpar o desânimo que transpira desta carta, lembrando-se que ela é de um filho que vos estima muito mas que atualmente sofre também muito. Todos daqui que me veem acham-me ainda mais abatido e alquebrado. E um dos motivos que fazem com que eu deseje satisfazer o pedido de Saninha é o pressentimento constante de que se tal não fizer talvez não veja mais o filhinho e ela.
Peço para recomendar-me a todos; desculpai e abençoai ao seu filho
Euclides da Cunha
[Timbre:] Comissão Técnica Militar Consultiva ― 32, Praça da República
Capital Federal, 15 de dezembro de 1893
Porchat
Saúdo-te ― desejando-te o que mais me falta atualmente, a paz carinhosa e alentadora da família. Li a tua carta, como leio todas as cartas que me chegam de S. Paulo, com a imensa tristeza dos que escutam a voz dos amigos ausentes, sem a esperança de os tornar a ver. Além disto a tua carta transuda a melancolia que devem realmente sentir os bons, na fase desastrosa que atravessamos. Pelo menos sobre mim a feição última dos acontecimentos refletiu-se da pior maneira. Não que o manifesto Saldanha me fizesse desanimar a mim, republicano feito nas asperezas da propaganda ― mas sim por que a rosnadura do nostálgico molosso, que ora mostra os colmilhos perigosos, ladrando à República, faz-me conjeturar num prolongamento da luta, inevitavelmente desastrosa para a nossa terra.
O que haverá pelas bandas do futuro? Esta interrogação, perene no meu espírito, já se me tornou em perigosa obsessão; todos os meus atos, sinto-os em função dela, de sorte que vivo num constante oscilar ― do desânimo maior às maiores esperanças. O que nos reserva o futuro? A nossa grande Pátria cindida pelas paixões decompor-se-á em minúsculos estados? Resistirá, forte, amparada pela República, à sinistra conspiração, dos velhos devassos imperiais, emudecidos a 15 de novembro e rugidores hoje? O que traduz a feição dúbia das potências estrangeiras e, sobre todas, a dessa perene inimiga do gênero humano ― a Inglaterra ― que realiza o fato assombroso de criar dentro de uma alma tão estreita os maiores homens do mundo, os Newtons, os Byrons e os Parnells?
Não vês a maneira pela qual as gentes pseudocivilizadas tratam os selvagens de todo mundo? A França, a Inglaterra, a Alemanha, exercendo miseravelmente o banditismo mais torpe roubando pátrias, saqueando os lares tranquilos dos bárbaros na África e na Ásia. E ultimamente a Espanha, tão ciumenta da própria liberdade e tão cavalheira para defendê-la, investindo covardemente contra os Cabilas seminus e incultos? Suporão esses países gastos e fúteis, com a sua civilização ridícula de bulevares repletos de boêmios infecundos e desprezíveis, que somos nós uma variedade qualquer dos bôeres ou dos Cabilas? Todas estas interrogações, meu amigo, acodem-me de chofre e com tumulto ao meu espírito. Tenho-as sempre, vivíssimas e insolúveis. Nunca senti tão violento como hoje o que dantes era para mim um sentimento mau, traduzido por uma palavra que eu entendia não dever existir na linguagem humana ― o nativismo. Tenho-o hoje, exageradamente. O estrangeiro, o estrangeiro que se diz civilizado ― considero-o inimigo. É o inimigo pior e covarde, de luvas de pelica e sorridente, que nos mata e ao mesmo tempo avilta-nos. E eu pressinto que ele tem hoje o olhar cobiçoso sobre a nossa terra. O século XIX porém não testemunhará o desastre do aniquilamento de uma nacionalidade. As usinas do Krupp, Schneider, Bange e tantos outros […] do progresso não impedirão a majestosa evolução do espírito democrático confiado à política americana.
Já vai longa esta carta; escrevi rapidamente, de propósito, como que para apanhar em flagrante a minha maneira de sentir. Encarrego-te da missão de abraçar a todos os bons companheiros daí. Recomenda-me a toda a família e escreva sempre ao amo seguro
Euclides da Cunha
[Timbre:] Comissão Técnica Militar Consultiva ― 32, Praça da República
Rio, 29 de dezembro de 1893
Porchat
Mando-te daqui um grande abraço e peço-te que me recomende a toda a família. Não respondi de pronto a tua última carta porque somente ontem terminei definitivamente a minha tarefa deste ano, com o último exame de Astronomia, ciência que, à última hora, tive que examinar na Escola.
O meu filhinho vai admiravelmente — cresce visivelmente e torna-se robusto — de sorte que acredito por estes dez dias poder seguir com ele para aí. Sei que vou te encontrar feliz e cheio de esperanças o que verdadeiramente estimo porque assim estaremos de completa harmonia. Sobretudo de esperanças estou eu cheio a arrebentar: tenho, em perspectiva, no futuro uma viagem à Europa com meu pai e um concurso para lente substituto de Sociologia na Escola do Sul. São estas as duas empresas que tenho agora em frente e queiram os Deuses que elas não tenham o destino comum das minhas aspirações, que não se anulem ou extingam.
Abracei há dias na rua do Ouvidor ao Filinto: gordo, feliz, casquilho, sempre com uma flor ao peito e um sorriso na boca e a postura desempenada de um vitorioso. Abracei-o e senti-me pequeno, mirrado como um anão sem músculos ante toda aquela opulência de vida sadia e enérgica, solidamente adaptada a um arcabouço de colosso. O Filinto fez-me saudades de S. Paulo — durante o quarto de hora em que estivemos juntos revi a pequena sala do Estado e os companheiros de prosa.
Apesar disto creio que poucos dias estarei na Capital; vou para a fazenda do velho, porque embora tenha aí a atração poderosa dos amigos acredito que o filhinho passará melhor na roça — e eu não tenho remédio senão sacrificar tudo à vida de uma criança que é afinal a síntese de tudo o que aspiro.
Seguem com esta dois cartões da Saninha para d. Maria Júlia e d. Esmeralda e eu aproveito a ocasião para, pela minha parte, me associar às felicitações que ela envia sobretudo considerando que tais felicitações se referem também, logicamente, à tua digna sogra e tia.
Como estaremos em breve juntos não serei mais extenso. Recomenda-me a todos. Não dá lembranças aos companheiros e aceita um abraço do amº.
Euclides da Cunha