Uma comédia histórica

Na Europa diplomática do século XVIII o Portugal de d. João V era uma exceção desanimadora. Despeara-se no progresso geral e ia atingir a quadra revolucionária, mal disfarçando, com a exterioridade deslumbrante das minas do Brasil, os máximos desfalecimentos da originalidade e da vida.

Há um atestado expressivo desse fato: a feição literária do tempo, incolor e exótica, laivada de perífrases e trocadilhos, ou sulcada de metáforas extravagantes, reveladoras dos ressaibos corruptores das canzoni alambicadas de Mazzini ou das agudezas e hipérboles assombrosas de Góngora.

Era um recuo deplorável. O italianismo e o espanholismo, que haviam sido um característico geral da literatura européia, em passado recente, desapareciam em toda a banda. Na Inglaterra, o excêntrico eufuísmo, que lembra um assalto de cansaço depois da formidável elaboração shakespeariana, alastrando-se da fantasia maravilhosa de Milton, as rimas infamíssimas de Wicherley — desaparecia ante a frase lapidaria de Burton; na França, o preciosismo acabava pelo próprio exagero, embora se abrisse no salão de Luiz XIV o grande molde dourado do classicismo, com o recato do pensar e o requintado polido das maneiras e do dizer; e na mesma Itália, de onde surgira o primado efêmero dos pensieri o lirismo vigoroso de Metastasio iniciava triunfalmente uma era nova. É que nestes países se formara a energia de uma renovação científica e filosófica que, com F. Bacon, Descartes e Galileu, alevantara sobre a rumaria da escolástica os elementos do espírito moderno. Em todos a arte de escrever era apenas um aspecto, o mais sedutor talvez, e nada mais, das inteligências que, em breve, encontrariam no maior operário da Enciclopédia — a um tempo romancista, dramaturgo, crítico, cientista e filósofo — em Diderot, o exemplo vivo do quanto importam ao mais ousado idealizar estético os mais aparentemente frios recursos positivos.

Em Portugal, não. A língua forte dos quinhentistas gaguejava nas silvas e acrósticos alambicados, nas maravilhas do falar e no requinte estéril de um culteranismo, onde a fragilidade das idéias facultava aos períodos vazios o caprichoso das formas mais bizarras. A terra de Bieira dava quase o espetáculo da desordem da palavra numa espécie de afasia literária.

O século XVIII teve o seu aspecto filosófico e o seu aspecto mundano. Teve Voltaire e teve Crebillon. Portugal copiava o último, ao mesmo tempo que d. João V imitava a frivolidade resplandecente do rei Sol dos minuetes e das etiquetas, olvidando o Luiz XIV dos tratados.

Daí o burlesco daquela tentativa de transferir para Lisboa um lampejo de Versalhes, numa grandeza achamboada e informe que era, como todas as paródias, um contraste. E o contraposto entre o medido das frases e das idéias, que na corte parisiense transmudavam o classicismo numa sistematização da vulgaridade, e o retumbante e amaneirado das glosas e madrigais dos versejadores portugueses. Comparem-se o Camões do Rocio e Boileau; ou então a pragmática dos saraus de Rambouillet aos festejos ruidosos de Lisboa onde se viam, sem escândalo à fradaria inumerável, rompentes nas procissões ou saracoteando nos salões, ao toar dos alaúdes e guitarras, a poesia, a gramática (a gramática!) e a Retórica com a sua ninhada de Tropos espalhafatosos, de Metáforas nervosas, de Gerúndios rotundos e de supinos desfibrados, materializados todos num grande excesso de objetivismo.

Esta literatura refletia uma época.

A terra forte que se sacrificara ao progresso geral, repontando à tona da Renascença para mergulhar numa outra Idade Média e reconstituir no novo mundo o mundo antigo que acabara — chegava, surpreendida e deslumbrada, à quadra maravilhosa. Quis encalçá-la e só lhe absorveu os estigmas remanescentes.

A própria galanteria, que encontrara no abade Prevost — e na maioria dos padres voltairianos, que embarcavam galantemente para Cítera — intérpretes inimitáveis, ali se derrancara nas requestas perigosas. O amor era brutal, liricamente brutal se o quiserem, armado de capa e espada, de botas e esporas, marchando para as entrevistas como para os fossados arriscados. Ao cair da noite, espessa e impenetrável, sem a fresta única de um lampião mortiço, as ruas de Lisboa tinham os pavores das azinhagas solitárias.

Eram o paraíso tenebroso dos chichisbéus errantes, e mascarados num requinte de resguardos, porque as formas se lhes diluíam no escuro, apagadas e imperceptíveis, num deslizamento silencioso de lêmures cautelosos. E o estrangeiro curioso que os acompanhasse, ou que os apartasse nos duelos subitamente travados ao acaso, no volver das esquinas, podia encontrar o faquista desclassificado, o pródigo doudivanas, o frade corrompido, o fidalgo marialva, ou o rei…

A aventura noturna de d. João IV e d. Francisco Manoel não fora deslembrada. E embora d. João V, mais precavido e prático, preferisse, ao arriscado destes encontros, os recatados cômodos do harém seráfico de Mafra, tinha no irmão, o infante D. Francisco, e no Duque de Cadaval, uns dignos continuadores das mesmas tropelias romanescas.

Felizmente entre estes nobres gandaieiros, um espadachim atrevido, um mestiço à volta dos vinte anos, um tal Sebastião José de Carvalho, aparecia às vezes, compartindo as desordens que ele mais tarde extinguiria, porque lhes aquilatara, experimentalmente, os inconvenientes e as torpezas.

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Mas havia também um homem, o mesmo homem que Oliveira Lima, no Secretário d’El-Rei nos apresenta sob uma de suas mais interessantes modalidades  — Alexandre de Gusmão.

Era brasileiro; mas nesta circunstância fortuita não está o interesse que ele nos desperta. O que dele nos impressiona é o contraste de uma individualidade original e forte e a decrepitude do meio em que ela agiu. Aquele escrivão da puridade preso pelo contato diário à corte e pelo cargo obrigado a submeter-se a todas as exigências da época e a tacanhear o talento nos escaninhos e nas estreitezas dos relatórios enfadonhos — reponta-nos nas suas admiráveis cartas a D. Luiz da Cunha, com a atitude inesperada de um fiscal incorruptível, irônico e formidável. Nele, sim, enfaixavam-se todos os estímulos céticos, agressivos e assombrosamente demolidores que se esboçavam na França.

A sociedade pecaminosa de d. João V, onde o monstruoso substituía a grandeza, com as suas antíteses clamorosas, com os seus lausperenes e as suas devassidões, com o trágico da inquisição e a glorificação de todos os ridículos, com o idiota cardeal Mota que acabou com as trovoadas riscando-as da folhinha do ano, com o seu místico tenente Santo Antonio, jogralescamente promovido por atos de bravura, e com o cínico Encerrabodes tolerado em todas as salas — o Portugal paraguaio dos Jesuítas com os seus monges, os seus padres, os seus rufiões, a sua patriarcal, a sua escolástica garbosamente fútil e a sua literatura desfalecida, teve no seu primeiro ministro o seu mais implacável juiz.

Sob este aspecto, a figura ainda não bem estudada de Alexandre de Gusmão é impressionadora.

Foi um voltairiano antes de Voltaire: a mesma espiritualidade expansiva, em que pese uma cultura menor, a mesma mobilidade, os mesmos arrebatamentos, o mesmo sarcasmo diabólico e a mesma emancipação intelectual, revolucionária e brilhante.

Não o considerou sob essa feição complexa Oliveira Lima, que dificílimo fora constrigi-los nos três atos de uma comédia.

Fixou-o, porém, por uma de suas faces encantadoras: a adorável complacência de uma alma sobranceira às ruínas de um amor não correspondido e verdadeiramente heroica no amparar o rival feliz que o compartia.

O assunto, como se vê, é profundamente dramático. A índole do protagonista, entretanto, transmudou-o numa comédia.

O grande homem pareceu-nos talvez apequenado no tortuoso de uma intriga vulgar, mas traça, cortando uma situação trivialíssima, a linha impressionadora de uma individualidade nova no meio de uma sociedade envelhecida. Realmente, o que hoje para nós é uma vulgaridade — este triste humorismo com que na pressão atual da vida moderna disfarçamos cautelosamente as maiores desventuras e este “levar as coisas a rir mesmo quando elas são de fazer-nos chorar” — eram uma novidade na época brutal em que a fraqueza irritável das gentes supersticiosas e incultas predispunha ao impulsivo e ao desafogo máximo das paixões.

Assim considerado, o Secretário d’El-Rei é um livro belíssimo.

Que outros, mais vezados à técnica teatral, lhe apontem todos os defeitos. Nós, não. Satisfez-nos o aprumo impecável, a fidalguia espirituosa com que Alexandre de Gusmão, sem destoar da nota superior de seu caráter, destramou o intrincado de um incidente passional que o colhera de improviso no meio dos seus relatórios e dos seus livros — sem criar uma situação de fraqueza às suas magníficas rebeldias do pensar e do sentir.

CUNHA, Euclides da. Uma comédia histórica. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Contrastes e confrontos. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/contrastes-e-confrontos/uma-comedia-historica. Acesso em: [data]. Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, 25 jun. 1904. Transcrito de: CUNHA, Euclides da. Contrastes e confrontos. In: Obra completa. org. Paulo Roberto Pereira. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1. pp. 30-3.