Temores vãos

Numa quase mania coletiva da perseguição, andamos, por vezes, às arrancadas com alguns espectros: o perigo alemão e o perigo ianque. Nunca, em toda a nossa vida histórica, o terror do estrangeiro assumiu tão alarmante aspecto, ou abalou tão profundamente as almas. Estamos, neste ponto, como os romanos da decadência depois dos revezes de Varus: escutamos o rumor longínquo da invasão. Uma diferença apenas: Átila não ruge o stella cadi, tellus fremit! descarregando-nos à cabeça o frankisk pesado, e sobre o chão as patas esterilizadoras do cavalo, é Guilherme II, um sonhador medieval desgarrado no industrialismo da Alemanha; e Genserico, a despeito da sua envergadura rija de cowboy dominador das pastagens, é Roosevelt, o grande professor da energia, o maior filósofo prático do século, o ríspido evangelista da vida intensa e proveitosa.

Não é o bárbaro que nos ameaça, é a civilização que nos apavora. Esta última consideração é expressiva. Mostra que os receios são vãos.

De fato, atentando-se para a maior destas ameaças, a da absorção ianque, põe-se de manifesto que o imperialismo nos últimos tempos dominante na política norte-americana não significa o fato material de uma conquista de territórios, ou a expansão geográfica à custa do esmagamento das nacionalidades fracas — senão, numa esfera superior, o triunfo das atividades, o curso irresistível de um movimento industrial incomparável e a expansão naturalíssima de um país onde um individualismo esclarecido, suplantando a iniciativa oficial, sempre emperrada ou tardia, permitiu o desdobramento desafogado de todas as energias garantidas por um senso prático incomparável, por um largo sentimento da justiça e até por uma idealização maravilhosa dos mais elevados destinos da existência.

Esta vida prodigiosa alastra-se pela terra com a fatalidade irresistível de uma queda de potenciais. Mas não leva exclusivamente o vigor de uma indústria em busca de mercados, ou uma pletora de riquezas que impõe o desafogo de emigração forçada dos capitais senão também as mais belas conquistas morais do nosso tempo, em que a inviolabilidade dos direitos se ajusta cada vez mais ao respeito crescente da liberdade humana.

Sendo assim, é pelo menos singular que vejamos uma ameaça naquela civilização. Singular e injustificável. Tomemos um exemplo recentíssimo.

Quando o almirante Dewey rematou em Manilha a campanha acelerada que em tão pouco tempo se alongara, num teatro de operações de 160° de longitude, da ilha de Cuba às extremas do Pacifico, a conquista das Filipinas pareceu a toda a gente uma intervenção desassombrada do ianque na partilha do continente asiático. Os melhores propagandistas de uma política liberal e respeitadora da autonomia de outros povos, os mesmos antiexpansionistas do North America, justificavam uma posse arduamente conseguida através de uma luta penosa e ferocíssima. Além disto, o arquipélago não decairia da situação anterior, permanecendo no sistema subalterno de colônia. Melhoraria com a troca das metrópoles; e as suas 114.000 milhas quadradas de terras fertilíssimas, onde se entranham as mais opulentas minas e pompeiam os primores de uma flora surpreendente, eram um novo palco que se abria às grandes maravilhas do trabalho. Realizava-se a profecia de J. Keill: a civilização, depois de contornar a terra, volvia ao berço fulgurante do Oriente, levando-lhe os tesouros de uma faina secular…

Deste modo, quando ao termo da campanha seguiu a primeira “comissão filipina” a manter entre os tagalos o prestígio americano, consolidar a paz e instituir a justiça, viu-se neste aparato pacífico o primeiro sintoma da absorção inevitável. E era falso.

Aquela conquista, fato consumado pelo triunfo militar, pela aquiescência de todas as nações, e pela submissão completa dos indígenas, sem nenhum empeço material que se lhe oponha, é, neste momento, duvidosa, problemática e talvez inexeqüível.

Não no-lo diz um sentimental; demonstra-o, friamente, num seco argumentar incisivo, o homem mais competente para isto — Gould Shurmann, precisamente o chefe daquela primeira comissão, e o intérprete mais veraz, senão único, dos intuitos da política nos Estados Unidos naquele caso.

A sua linguagem é franca; não segreda ou coleia no abafamento e nas minúcias das informações oficiais; vibra às claras e alto numa revista — The Ethical Record, de março último, onde o assunto, a great national question, está sob as vistas de todo o mundo.

Ali se discutem os três destinos essenciais das Filipinas: a dependência colonial, a independência incompleta, a exemplo do que sucede em Cuba, ou a constituição de um território, prefigurando vindouro Estado confederado. E a conclusão é surpreendente, sobretudo para os que tanto armam olhos e ouvidos aos esgares truanescos e às versas extravagantes do Jingoismo ianque, tão desmoralizado na própria terra onde se agita: Gould Shurmann, embora ressalvando os interesses da sua terra, declara-se, com um desassombro raro, advogado da independência Filipina. A seu parecer ela se impõe feito um corolário inflexível e insofismável de princípios e tradições políticas que a grande República não poderá negar ou iludir sem a renúncia indesculpável “da sua própria história e dos seus próprios ideais.”

Convenhamos em que estes dizeres, dada a autoridade oficial de quem os emite, tornam bastante opinável o perigo ianque — a funambulesca Tarasca que tanto desafia por aí o ferretoar dos pontos de admiração das frases patrióticas.

Afinal, ele não existe; como, afinal, não existe o perigo germânico, inexplicável mesmo diante das nossas tentativas para que se ab-rogue completamente o rescrito de Von der Heydt, que proibiu a emigração germânica para o Brasil.

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Concluímos que este pavor e este bracejar entre fantasmas são um simples reflexo subjetivo de fraqueza transitória; e que estes perigos — alemão, ianque ou italiano — ou ainda outros rompentes ao calor das fantasias, e que se nos figuram estranhos são claros sintomas de um perigo maior, do perigo real e único que está todo dentro das nossas fronteiras e irrompe’ numa alucinação da nossa própria vida nacional: o perigo brasileiro.

Este, sim; aí está e se desvenda ao mais incurioso olhar sob infinitos aspectos.

Mas não os consideraremos.

Seria uma tarefa crudelíssima.

Teríamos de contemplar, na ordem superior dos nossos destinos, o domínio impertinente da velha tolice metafísica, consistindo em esperarmos tudo das artificiosas e estéreis combinações políticas, olvidando que ao revés de causas elas são meros efeitos dos estados sociais; e aos desastrosos resultados de um código orgânico, que não é a sistematização das condições naturais do nosso progresso, mas uma cópia apressadíssima, onde prepondera um federalismo incompreendido, que é o rompimento da solidariedade nacional

Nos recessos mais íntimos da nossa vida, veríamos desdobrar-se um pecaminoso amor da novidade, que se demasia ao olvido das nossas tradições; o afrouxamento em toda a linha da fiscalização moral de uma opinião publica que se desorganiza de dia a dia, e cada dia se torna mais inapta a conter e corrigir aos que a afrontam, que a escandalizam, e que triunfam; uma situação econômica inexplicavelmente abatida e tombada sobre as maiores e mais fecundas riquezas naturais; e por toda a parte os desfalecimentos das antigas virtudes do trabalho e perseverança que já foram, e ainda o serão, as melhores garantias do nosso destino.

Concluiríamos que os temores são vãos.

Mesmo no balancear com segurança os únicos perigos reais que nos assoberbam, não se distinguiriam males insanáveis — mas a crise transitória da adaptação repentina a um sistema de governo que, mais do que qualquer outro, requer, imperativamente, o influxo ininterrupto e tonificante da moral sobre a política. Por isso mesmo ele nos salvará.

Firmar-se-á, inevitavelmente, uma harmonia salvadora entre os belos atributos da nossa raça e as fórmulas superiores da República, empanados num eclipse momentâneo; e desta mútua reação, deste equilíbrio dinâmico de sentimentos e de princípios, repontarão do mesmo passo as regenerações de um povo e de um regime.

Veremos então, melhor, todo o infundado de receios ou de imaginosas conquistas, que são até uma calúnia e uma condenável afronta a nacionalidades que hoje nos assombram, porque progridem, e que nos ameaçam pelo motivo único de avançarem triunfante e civilizadoramente para o futuro.

CUNHA, Euclides da. Temores vãos. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Contrastes e confrontos. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/contrastes-e-confrontos/temores-vaos. Acesso em: [data]. Publicado originalmente em O País, Rio de Janeiro, 24 jun. 1904. Transcrito de: CUNHA, Euclides da. Contrastes e confrontos. In: Obra completa. org. Paulo Roberto Pereira. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1. pp. 78-81.