Irrisoriamente pretensioso seria que eu me propusesse apresentar ao público brasileiro o dr. Euclides da Cunha; mas, publicado em Portugal por editores portugueses, não me parece de todo descabido que, antes de meus compatrícios entrarem na leitura do volume atual de Contrastes e confrontos, em breves palavras alguma prévia, se insuficiente, bem intencionada notícia lhes dê da personalidade eminente de que vão tomar conhecimento, poderosamente acentuada em um livro, por todos os títulos notável, que se encontra já em sua terceira edição, Os Sertões (Campanha de Canudos), pela casa Laemmert & Cia., do Rio de Janeiro e S. Paulo, estampado no ano pretérito de 1905.
Só por este motivo e com intuito tal de elucidação a meus conterrâneos, é que eu aquiesci à honrosíssima incumbência que benevolamente me foi cometida, pois não me reconheço autoridade para patrocinar perante os cultos quem, como o dr. Euclides da Cunha, de nenhuma amparo carece, nem pelo que toca ao pensamento, autônomo, pessoal e próprio, nem pelo que diz respeito à forma literária, que é insignemente perfeita. A este propósito e nesta zona, limitar-me-ei a consignar a admiração que suscita em todo o leitor capaz de emoções estéticas a primeira parte do livro dos Sertões (A Terra). São sessenta páginas fortes, que gravam as mais fundas impressões, quais as provocadas pelo quadro magistral dos singulares higrômetros deixados, para espanto, pelo horror da guerra; e, de par que o dr. Euclides da Cunha se nos mostra um naturalista ilustradíssimo, ele se nos patenteia um estilista exímio. Cuido que, sem favor, essas sessenta laudas se devem considerar entre o que de mais poderoso se tem escrito em prosa portuguesa, quer na literatura portuguesa de Portugal quer na literatura portuguesa do Brasil.
E, pois que falei da erudição do autor, que se revela múltipla e complexa, não devo esquecer o acerto do seu juízo crítico, nas sugestivas e persuasivas soluções que aponta para os problemas pendentes e nas interpretações racionais e plausíveis com que busca explicar dificuldades de vário e diversificado entendimento. Logo, a seção imediata (O Homem) o testifica amplamente, aí onde o dr. Euclides da Cunha aborda e discute, com segurança de critério e abundância de informação, o problema etnológico do Brasil; e o que ilustra o talento artístico inato deste percuciente inquiridor científico é que jamais o interesse é prejudicado pela aridez dos temas, antes, com habilidade egrégia, a curiosidade a mantém desperta e acesa, mercê da variedade sucessiva dos aspectos, que se fundem enfim, sem atrito e sobressalto, na unidade do conjunto.
Compreende-se que, português, um escrúpulo me tome na apreciação do juízo pelo dr. Euclides da Cunha formulado em um episódio grave da moderníssima história moral e política do seu país; um respeitoso melindre me impõe, naturalmente, a abstenção; mas do que, por outro lado, só com iniquidade me poderia abster, é da obrigação de comunicar ao meu leitor português o informe do efeito imenso que deriva do estudo, de começo até final, desde o início até ao desfecho, pelo dr. Euclides da Cunha escrupulosamente dedicado ao caso estranho dum “gnóstico bronco”, examinando miúda, finamente analisando e decifrando o mistério de Antonio Conselheiro, “documento vivo de atavismo.”
Reputaria prêmio consolador da sinceridade deste meu medíocre trabalho o conseguir, com estas linhas, que esse livro dos Sertões se tornasse conhecido em Portugal; e, para um prosador dos méritos excepcionais do dr. Euclides da Cunha, jubilaria que me fosse dado obter da curiosidade literária lusitana o que, para com poetas brasileiros, lograram alcançar os portugueses Alexandre Herculano, para Gonçalves Dias; Lopes de Mendonça, para Álvares de Azevedo; Ramalho Ortigão, para Casimiro de Abreu e Fialho de Almeida, para Luiz Guimarães Junior.
Mas, por desgraça, se os poetas brasileiros até aqui escassamente são conhecidos em Portugal, sem embargo das recentes aprimoradas apresentações dos falecidos Teixeira Bastos e Valentim de Magalhães, de todo ignorados são do público letrado lusitano os prosadores brasileiros, apesar dos encômios e louvores que Pinheiro Chagas teceu para o ilustre José de Alencar e estando sendo ao presente impresso em Portugal um tão requintado artista como é Coelho Neto.
Ignoram-se em Portugal os trabalhos de compreensiva amplitude, como o antigo mas tão metodicamente ordenado de Fernando Wolff, e no comércio da livraria desconhecem-se aqui as compendiosas seletas, como o curso de literatura brasileira, ou escolha de vários trechos, em prosa e verso, de autores seus nacionais, antigos e modernos, que criteriosa e laboriosamente foi organizada por Mello Moraes Filho, galardoado pelo grande acolhimento que ao seu afã o recompensou o público transatlântico, do português afim.
Nesta lamentosa penúria, julgo um bom procedimento o daquele literato português que chame a atenção da gente culta de Portugal para as obras literárias, filosóficas, históricas, políticas dos nossos irmãos brasileiros, não por uma mera deferência ou por uma banal curiosidade, mas sim porque entre essas obras as há da maior valia e insigne importância, em cuja lição assaz teremos a aprender ou cuja leitura nos dará o prazer suave da emotividade estética.
Assim, penso que serviço prestei procurando fazer destacar o relevo dessa obra dos Sertões, que assinala inconfundivelmente seu autor, o qual, porém, se nos revela agora, com este volume dos Contrastes e confrontos, após o pensador profundo e o sábio perspicaz, o jornalista pronto, claro, impressionante, fácil e acessível, mas refletido sempre e sempre raciocinador e demonstrativo.
O leitor português encontra, depois, neste tomo motivos peculiares de interesse, que lhe afervoram a deliberação com que o abriu.
Vários dos excelentes ensaios que constituem este volume visam figuras históricas nossas, do período da união das duas terras; é conceituosa a exposição como flagrante se aviva a fisionomia do jesuíta Anchieta, que a José de Alencar fornecera as proporções do drama. Bem assim nos moldes da comédia Oliveira Lima a figura de
Alexandre de Gusmão, que o dr. Euclides da Cunha nos diz ai oferecida “sob uma de suas mais interessantes modalidades”.
Mas a curiosidade crítica acrisola-se quando acompanhamos o dr. Euclides da Cunha nas sutis investigações a que se entrega concernentemente a épocas, fatos, crônicas e questões do seu Brasil, quais se exibem e nos provocam na inquietação do momento que passa ou na perdurável solicitação do problema que definem. Os dons de plasticidade estilística do autor confirmam-se e corroboram-se; ora nos aparece um ironista equilibrado sem discrepância na linha do gosto e da proporção, ora em sua prosa nos impressiona uma esquiva efusão sentimental, reprimida prestes pela frieza imposta de uma dialética disciplinadora. E o que se avantaja neste concerto de qualidades e aptidões é a disposição emérita para o desenho psíquico de individualidades marcantes; o capítulo intitulado O marechal de ferro é uma pequena obra-prima de precisão no debuxo da aparente indecisão; o efeito da maravilhada surpresa resulta acabado e completo; penetramos na alma do personagem, entendemo-lo; o dr. Euclides da Cunha foi felicíssimo e deste retrato subjetivo se orgulharia qualquer dos grandes consagrados retratistas históricos pela tinta de escrever.
Também nossa Europa ao dr. Euclides da Cunha seus cuidados mereceu, nas crises que a turbam, nas personalidades que ou a dominam ou nela, de passagem, avultam, como esse enigmático Kaiser, confiante e quimérico, visionário e versátil que o dr. Euclides da Cunha, em devaneio magnífico exatamente qualifica de um “minúsculo deus do Edda, desgarrado na terra e errando entre as gentes — incompreendido, idealista e temeroso — como se fosse um neto retardatário das Valquírias…” De toda a Alemanha mesma, a tendência vagamente fantasiosa, coexistindo desintegrantemente com a imensidade do saber positivo, ensejo proporciona do dr. Euclides da Cunha para lhe infligir o justo castigo de procedentes reparos e fundadas observações corretoras, quando atenta na ambição que sua pátria fita e a considera e reputa, avalia e apreça como ulterior Arcádia tudesca. Com indignação, sóbria mas cáustica, o patriota protesta. Não. “A Arcádia da Alemanha” — revoltado, ele proclama — “não é o Brasil. Lá está dentro dela mesmo, no seu melhor retrato, na Prússia liricamente guerreira e fantasista, onde, nesta hora, tumultuam não sabemos quantos marechais devaneadores e não sabemos quantos filósofos belicosos.”
Qual seja a missão da Rússia, eis aqui um enigma que tentou o dr. Euclides da Cunha, consoante a todos os espíritos meditativos tenta; mas o que torna particularmente interessante esse conciso e sumariado artigo é o admirável êxito com que vemos coroado o encargo que a si próprio se distribuiu para explanar o caracter específico dessa semicivilização e semibarbárie. O dr. Euclides da Cunha nutre afeição pelas fórmulas sintéticas e preza as elocuções pitorescas, aproximando os tipos divergentes e esclarecendo de chofre por uma irradiação subitânea as indecisões e as ambiguidades. O meu pensamento sensível desde que note que o autor define Wronski como “uma espécie de Átila da matemática” e desde que o leitor saiba que, para o dr. Euclides da Cunha, “o que domina o escritor russo não é a tese preconcebida, ou o caráter a explanar friamente, senão um largo e generoso sentimento da piedade, diante do qual se eclipsam ou se anulam, o platônico humanitarismo francês e a artística e seca filantropia britânica.” Este conceito é rigorosamente exato, em todos os seus detalhes componentes, e está esplendidamente expresso.
A ilustração do autor demonstra-se vastíssima; a mobilidade de seu espírito habilita-o a ocupar-se das questões mais variadas e nenhuma prova melhormente cabal da firmeza de seus passos do que a mesma facilidade de sua ação analisante. Vê-se que anda à vontade, com desempeno e sem esforço; os movimentos do seu espírito são sem impedimento e naturais; a sua prosa, neste livro de agora, tem o ar duma conversação erudita mas familiar, ponderada e concomitantemente espontânea; daí, o agrado da leitura, que, a espaços, chega ao encanto.
E, todavia, poucas mentes haverá, em nossas letras, luso-brasileiras, mais sisudas do que a do dr. Euclides da Cunha, espírito decididamente sério, a quem as grandes, minazes incógnitas solicitam, das que compreendem o tempo e o espaço, ultrapassam as fronteiras e sobrepujam a continuidade histórica, impondo-se às civilizações. Fisionômico é, destarte e por tal teor, o capítulo intitulado Um velho problema. Este velho problema é o problema novo, é o problema eterno, o problema social.
Recapitula o dr. Euclides da Cunha as aspirações utopistas, de que emergiram os livros sonhadores e hiperbólicos, cujos títulos “são como títulos de poemas”, e traça uma síntese nervosa da tremenda crise revolucionária francesa, desde o recôndito das consciências até às explosões da praça pública; ele rememora as amplitudes concedidas ou recusadas ao direito de propriedade e recorda-nos os pareceres a propósito, seja do “rígido” Camus, seja do “romântico” Saint-Just, seja do “incomparável” Mirabeau. Seguidamente suas preocupações convergem para a teórica do socialismo, afirmada e exposta nas grandes construções doutrinárias características do século XIX, quer “as estupendas utopias de Saint-Simon e dos seus extraordinários discípulos” quer “as alienações de Proudhon” quer “as tentativas bizarras de Fourier” quer, enfim, “o soçobro completo da política de Louis Blanc.” Em resumo, assistimos ao desenrolar duma evolução teorética cujo termo final é Karl Marx, “pois foi, realmente, com este inflexível adversário de Proudhon que o socialismo científico” — remata o dr. Euclides da Cunha — “começou a usar uma linguagem firme, compreensível e positiva”.
Neste lanço, o leitor apuraria, se ainda o carecesse aliás, que é o dr. Euclides da Cunha um homem de progresso; ele encerra o seu livro atual com sarcástica impugnação, mercê da aparente contradição que se aventa em Herbert Spencer. “Convenha-se” (assim abre seu capítulo final, Civilização…, o dr. Euclides da Cunha) “o Spencer da última hora, o Spencer valetudinário e misantropo que chegou aos primeiros dias deste século para o amaldiçoar e morrer — desgarrou da verdade ao afirmar que há, nestes tempos, um recuo para a barbaria.” Não concordaria com o dr. Euclides da Cunha neste instante, como de sua doutrina me aparto efetivamente em vário ensejo de seu notável volume dos Contrastes e confrontos. Seria, de resto, ingenuamente absurdo o pretender identidade de juízos e não desmentida conformidade e pontos de vista, constante e duradoura, entre dois espíritos diferenciados. Porém da fidelidade de que me não rebelo é da que homenagem presta aos méritos e talentos do autor. Aí se mantém inquebrantável meu desautorizado mas sincero aplauso.
À parte do público português que me atende recomendo, pois, com empenho, este volume dos Contrastes e confrontos, como um dos mais interessantes livros que nestes tempos tem saído de nossos prelos lusitanos. Por feliz me daria se algum de meus leitores completasse subsequentemente o seu juízo acerca da distintíssima personalidade literária do dr. Euclides da Cunha, tomando conhecimento direto com aquela sua bela obra capital de Os Sertões, refletida e veemente, sisuda e irônica.
A ironia transcendente é, com efeito, um dos traços salientes desta complexa figura literária, aquela ironia temperada de melancolia de que nos Contrastes e confrontos exemplo frisante se contém, com o caso Cronje, na apoteose sardônica do heroísmo modernizado que negocia o triunfo, “aluga a glória e, antes de pedir um historiador, reclama um empresário”. Humorista, o dr. Euclides da Cunha é erudito e argumentador; tem a galhofa do cronista e a eloquência do tribuno; é um sábio e um mestre prosador.
Que ao mais insignificante dos letrados portugueses permitido seja saudar, com admiração e respeito, este insigne literato brasileiro.
José Pereira de Sampaio (Bruno)