Fazedores de desertos

É natural que todos os dias chegue do interior um telegrama alarmante denunciando o recrudescer do verão bravio que se aproxima. Sem mais o antigo ritmo, tão propício às culturas, o clima de S. Paulo vai mudando.

Não o conhecem mais os velhos sertanejos afeiçoados à passada harmonia de uma natureza exuberante, derivando na intercadência firme das estações, de modo a permitir-lhes fáceis previsões sobre o tempo.

As suas regras ingênuas enfeixadas em alguns ditados que tinham, às vezes, rigorismo de leis, falham-lhes, hoje, em toda a linha: passam-lhes, estéreis, as luas novas trovejadas; diluem-se-lhes como fumaradas secas as nuvens que ao entardecer abarreiram os horizontes; varrem-lhes as ventanias súbitas a poeira líquida das neblinas que se adensam de manhã, pelo topo dos outeiros; e em plena primavera, agora, sob o alastramento das soalheiras fortes, o aspecto de suas plantações, esfoliadas e esfloradas, principia a ser desanimador, revelando, antes do estio franco, esse período máximo à vida vegetativa que, nos países quentes, estão no desequilíbrio entre a evaporação intensa pelas folhas e a absorção escassa, e cada vez menor, pelas raízes.

Toda a vegetação estiva, e esgota-se, desfalecida, precisamente na quadra em que as primeiras chuvas e as primeiras descargas elétricas, já lhe deviam ter, do mesmo passo, dissolvido os princípios nutritivos do solo e desdobrado, na mais interessante das reações, os que se disseminam profusamente pelos ares.

Ao invés disto, exaurida dos sóis, cerra o ciclo vital: morrem-lhe improdutivas as primeiras flores; extingue-se-lhe a função assimiladora dos tecidos superficiais, exsicados; e a poeira, que lhe entope os estomas e reveste as folhas, asfixia-a e enfraquece-lhe a reação tonificante da luz.

Daí o quadro lastimável descortinado pelos que se aventuram, nestes dias, a uma viagem no interior — varando a monotonia dos campos mal debruados de estreitas faixas de matas, ou pelos carreadores longos dos cafezais requeimados, desatando-se indefinidos para todos os rumos — miríades de esgalhos estonados quase sem folhas ou em varas, dando em certos trechos, às paisagens, um tom pardacento e uniforme de estepe…

Mas é natural o fenômeno. Nem é admissível que ante ele se surpreendam os nossos lavradores, primeiras vítimas dessa anomalia climática.

Porque há longos anos, com persistência que nos faltou para outros empreendimentos, nós mesmos a criamos.

Temos sido um agente geológico nefasto, e um elemento de antagonismo terrivelmente bárbaro da própria natureza que nos rodeia.

É o que nos revela a história.

Foi a princípio um mau ensinamento do aborígene. Na agricultura do selvagem era instrumento preeminente o fogo. Entalhadas as árvores pelos cortantes dgis de diorito, e encoivarados os ramos, alastravam-lhes por cima as caitaras crepitantes e devastadoras. Inscreviam, depois, em cercas de troncos carbonizados a área em cinzas onde fora a mata vicejante; e cultivavam-na. Renovavam o mesmo processo na estação seguinte, até que, exaurida, aquela mancha de terra fosse abandonada em caapuera, jazendo dali por diante para todos sempre estéril, porque as famílias vegetais, renovadas no terreno calcinado, eram sempre de tipos arbustivos diversos das da selva primitiva.

O selvagem prosseguia abrindo novas roças, novas derribadas, novas queimas e novos círculos de estragos; novas capoeiras maninhas, vegetando tolhiças, inaptas para reagir contra os elementos, agravando cada vez mais os rigores do próprio clima que as flagelava — e entretecidas de carrascais, afogadas em macegas, espelhando, aqui, o facies adoentado da caatanduva sinistra, além da braveza convulsiva das caatingas.

Veio depois o colonizador e copiou o processo. Agravou-o ainda com se aliar ao sertanista ganancioso e bravo, em busca do silvícola e do ouro.

Afogada nos recessos de uma flora que lhe abreviava as vistas e sombreava as tocaias do tapuia, dilacerou-a, golpeando-a de chamas, para desvendar os horizontes e destacar, bem perceptíveis, tufando nos descampados limpos, as montanhas que o norteavam balizando a rota das bandeiras.

Atacaram a terra nas explorações mineiras a céu aberto; esterilizaram-na com o lastro das grupiaras; retalharam-na a pontaços de alvião; degradaram-na com as torrentes revoltas; e deixaram, ao cabo, aqui, ali, por toda a banda, para sempre áridas, avermelhando nos ermos com o vivo colorido da argila revolvida, as catas vazias e tristonhas com o seu aspecto sugestivo de grandes cidades em ruínas…

Ora, tais selvatiquezas atravessaram toda a nossa história.

Mais violentos no Norte, onde se firmou o regime pastoril nos sertões abusivamente sesmados, e desbravados a fogo — incêndios que duravam meses derramando-se pelas chapadas em fora — ali contribuíram para que se estabelecesse, em grandes tratos, o regime desértico e a fatalidade das secas.

O Sul subtraiu-se em parte à faina destruidora, que o próprio governo da metrópole, em sucessivas cartas-régias, procurou refrear, criando mesmo juizes conservadores das matas que impedissem a devastação.

O mesmo sistema de culturas largamente extensivas, porém, e as lavouras parasitárias arrancando todos os princípios vitais da terra sem lhe restituir um único, foram, a pouco e pouco, remodelando-lhe as paragens mais férteis, transmudando-as e amaninhando-as.

Não precisamos acompanhar em todas as fases esse aspecto infeliz da nossa atividade.

Notemos apenas que pouco a alteraram as belas criações da indústria moderna, os progressos rápidos da biologia e da química, fornecendo-nos todos os recursos para que se multipliquem as energias do solo. Deixamo-los, de um modo geral, de parte. Persistimos na tendência primitiva e bárbara, plantando e talando. E prolongamos ao nosso tempo esse longo traço demolidor, que vimos no passado.

Demos-lhe mesmo novas feições, consoante novas exigências.

E o que observa quem segue, hoje, pelas estradas do oeste paulista? Depara, de momento em momento, perlongando as linhas férreas, com desmedidas rumas de madeira em achas ou em toros, aglomeradas em volumes consideráveis de centenares de ésteres, progredindo, intervaladas, desde Jundiaí ao extremo de todos os ramais.

São o combustível único das locomotivas. Iludimos a crise financeira e o preço alto do carvão de pedra atacando em cheio a economia da terra, e diluindo cada dia no fumo das caldeiras alguns hectares da nossa flora.

Deste modo — reincidentes no erro — a inconveniência provada das lavouras ultraextensivas e ao cautério vivo das queimas, aditamos o desnudamento rápido das derribadas em grande escala.

*

As consequências repontam, naturais.

A temperatura altera-se, agravada nesse expandir-se de áreas de insolação cada vez maiores pelo poder absorvente dos nossos terrenos desnudados, cuja ardência se transmite por contato aos ares, e determina dois resultados inevitáveis: a pressão que diminui tendendo para um mínimo capaz de perturbar o curso regular dos ventos, desorientando-os pelos quatro rumos do quadrante, e a umidade relativa que decresce, tornando cada vez mais problemáticas as precipitações aquosas.

De sorte que o sueste — regulador essencial do nosso clima — depois de transmontar a Serra do Mar, onde precipita grande cópia de vapores, ao estirar-se pelo planalto, vai encontrando atmosfera mais quente do que dantes, cujo efeito é aumentar-lhe a capacidade higrométrica, diminuindo na mesma relação as probabilidades de chuvas.

São fatos positivos, irrefragáveis, e bastam para que se explique a alteração de um clima.

Mas apontemos um outro.

Neste entrelaçamento de fatores climáticos, introduzimos um — artificial e de todo fora das indagações meteorológicas normais — a queimada.

É transitória, mas engravesce os perigos.

De feito, a irradiação noturna contrabate a insolação: a terra devolve aos céus o excesso de calor acumulado; resfria; e o orvalho decorrente ilude de algum modo a carência das chuvas.

Ora, as queimadas impedem esse derivativo único.

As colunas de fumo, rompentes de vários lugares, a um tempo, adensam-se no espaço e interceptam a descarga do solo. Desaparece o sol e o termômetro permanece imóvel ou, de preferência, sobe. A noite sobrevém em fogo: a terra irradia como um sol obscuro, porque se sente uma impressão estranha de faúlhas invisíveis, mas toda a ardência reflui sobre ela recambiada pelo anteparo espesso da fumaça; e mal se respira no bochorno inaturável em que toda a adustão golfada pelas soalheiras e pelos incêndios, se concentra numa hora única da noite…

*

Traçamos estas linhas numa dessas noites, certo, desconhecidas pelos nossos patrícios de há cem anos.

Então a energia solar, descendo, armazenava-se nos ares, criando o influxo moderador de uma atmosfera benigna, e transformava-se em trabalho no seio das grandes matas, impulsionando a dinâmica maravilhosa das células.

Esse tempo passou.

Hoje, Thomas Buckle não entenderia as páginas que escreveu sobre uma natureza que acreditou incomparável no estadear uma dissipação de forças, wantonness of power, com esplendor sem par.

Porque o homem, a quem o romântico historiador negou um lugar no meio de tantas grandezas, não as corrige, nem as domina nobremente, nem as encadeia num esforço consciente e sério.

Extingue-as.

CUNHA, Euclides da. Fazedores de desertos. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Contrastes e confrontos. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/contrastes-e-confrontos/fazedores-de-desertos. Acesso em: [data]. Publicado originalmente em O Estado de S. Paulo, 21 out. 1901. Transcrito de: CUNHA, Euclides da. Fazedores de desertos. Contrastes e confrontos. In: Obra completa. org. Paulo Roberto Pereira. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1. pp. 86-90.