Dois grandes estilos — contrastes e confrontos

I

A leitura de um dos capítulos mais emocionantes do novo livro de Euclides da Cunha despertou-me a recordação de uma história, que ouvi da boca de um dos meus ascendentes. Acontecimento trágico, cujo teatro foi a escarpa de uma serra, nele figuram como personagem três crianças apenas, imprudentes e malignas. Não o esqueci; e vou referi-lo como mo contou meu avô materno.

Havia nas proximidades do Crato, no Ceará, em 1823, uma família de agricultores que, vivendo pobremente da cultura de cereais, não descurava da educação de dois filhos, que constituíam o seu encanto. Esses meninos frequentavam a escola régia que existia no povoado próximo e faziam diariamente um percurso de mais de meia légua, a pé, para darem as suas lições. Eram vivos, muito espertos; o mais moço, temerário, o que não deixava de trazer os pais em contínuo sobressalto; o outro, porém, tinha medo do escuro e era sempre conduzido pelo irmão.

Essa modesta gente morava na meia-encosta da serra; e não só os dois meninos como outros que residiam nessas mesmas paragens despendiam, quase sempre juntos, na viagem, muito mais tempo do que seria necessário para ida e volta. A razão era muito simples.

As ladeiras corriam entre despenhadeiros, e o caminho era, a cada passo, interrompido por veredas, abertas pelo gado, algumas das quais iam terminar em talhados e precipícios. Tanto bastara para que os rapazitos sentissem a curiosidade aguçada e buscassem todos os dias um passo mais difícil para prolongarem as suas diversões.

Um dia descobriram no termo de uma dessas correrias de cabritos um terrapleno formado por uma pedra, que, destacando-se da vegetação tufosa e luxuriante da encosta, caía a pique sobre o vale que se afundava numa grota sem saída, pelo menos aparente. Quase na vertical, porque a lapa da esplanada era saliente, quem se debruçava da aresta, olhando para baixo, sentia vertigens como se se tivesse alcandorado num balão. “Pedra Talhada” chamava o povo a este sítio; e pela escuridão verde-negra do abismo, onde se entrelaçavam cipoais emaranhados, emergindo aqui, ali, uma gameleira, um cedro, uma aroeira, era inevitável o assombro. Ao contemplá-lo o espectador sentia a pele eriçada sob a revulsão de sentimentos sinistros.

Atravessavam caracarás grasnando, o que dizia que no fundo da grota existia carcaça de bezerro morto pela fome; e o eco retumbava aos gritos do transeunte fazendo crescer a vastidão do vale.

Pois esses meninos achavam encanto indizível em tudo isto. O mais audacioso, entrando pelo mato adjacente, voltou de uma vez contando que topara magnífico divertimento; e levou os companheiros até ao encerro que descobrira e de onde uma enorme aroeira, cujas raízes, como pegões de ponte colossal, se engalfinhavam no coração da serra, abraçando pedregulhos, emergindo justamente da aresta do talhado, pendia sobre o vão da grota à maneira de um desses turcos gigantes que se vêem nos transatlânticos. Dos galhos mais rijos da árvore dependuravam-se grandes cipós, que o vento açoitava de rijo, e, volteando sobre o abismo, andavam ali a incitar o temerário balouço das crianças.

Ao descortinarem este traiçoeiro arranjo da natureza, foi unânime a exclamação. Não podia encontrar-se um melhor balanço, nem mais emocionante, nem mais apropriado a mostrar qual o medroso.

No dia seguinte, ao cair do sol, estavam todos a postos, munidos de corda e laço e de uma pedra para captarem os cipós. A manobra não lhes gastou a paciência; porque dois dos pendentes, cuja segurança verificaram, foram puxados e ligados por um pau, imitando um trampolim.

O mais moço foi o primeiro a tentar a aventura; e não saiu-se mal. Os restantes, aos poucos, se ensaiaram, a princípio com terror, depois mais confiados, de sorte que, no cabo de três dias de exercício, achavam-se todos perfeitamente familiarizados com o pavoroso divertimento sobre a morte.

A audácia foi aumentando. Já agora não era só atirarem-se ao abismo, certos de que voltariam ao ponto de partida, graças à resistência das flexíveis fibras do vegetal, firmados na lapa de onde saíam, montados no trampolim, com a respiração suspensa, olhos acesos, fisgados pela emoção que o perigo enchia de deslumbramentos; os meninos queriam chegar com o balanço a alturas impossíveis.

Em um desses exercícios o autor da brincadeira conseguiu dar ao balanço um arremessão tão violento, que a chicotada, no desengate do empuxo, levou-o até acima da horizontal. Um horror! Era chegar quase ao centro da grota.

Então os outros ouviram um brado, depois um zuut, como de um projétil que passasse, um risco no espaço, e o trampolim não voltou mais.

O primeiro movimento não se descreve. Os meninos recuaram álgidos, aterrados, sem articular palavra.

– Foi você! Disse, por fim, o irmão mais velho, verde de susto, diante do companheiro, que ajudara a dar o último movimento ao balanço rústico.

– Mas você também ajudou!

E houve uma gritaria desconexa, um alarido sem nome, em que a responsabilidade da catástrofe esmagava-os, ainda buscando empolgar o menos culpado.

Passado o primeiro soçobro, aproximaram-se da aresta da lapa para explorar o fundo da grota; mas recuaram logo como se o abismo ameaçasse por sua vez tragá-los.

Não tinham descoberto nada. A floresta embaixo fechara-se como as ondas de um mar encapelado sobre o corpo de um náufrago.

Choro convulso rompe dos sobreviventes. O irmão da vítima soluçava. De súbito um arranco de corrida. Dir-se-ia que aos infelizes meninos aparecera alguma alma do outro mundo. Esbaforidos, chegaram à vivenda dos pobres pais, que mal compreenderam a história que lhes contavam. Em casa o alarido foi infernal. Acudiram vizinhos; e cada qual que propusesse o expediente menos exequível. Por fim, um mateiro, prático e prudente, lembrou que estavam perdendo tempo, e que o mais acertado era fazerem uma batida no grotão. Arranjaram-se fachos, então, porque a noite já entrara, e desceram em busca do cadáver. As entradas do mato eram difíceis e muito lúgubre; todavia, graças aos instintos de caçador da maior parte dos expedicionários, não tardaram em encontrar o sítio onde devia ter caído a vítima. Com muito trabalho abriram o matagal à foice e penetraram no fundo da grota que ficava justamente por baixo da aroeira. Mas o cálculo estava errado, porquanto o mateiro, apesar do tino característico dessa gente, não contava com a parábola descrita pelo corpo do rapaz, que fora atirado com propulsão violentíssima. Desanimados percorreram a área inteira do vale; mas todo o esforço foi empregado inutilmente. E já se dispunham a esperar que rompesse a aurora para empreenderem uma batida mais minuciosa, quando ouviram uma voz que lhes vinha da encosta vizinha, – uma voz sumida, queixosa, quase lamurienta.

– É a voz do Chico, disse o pai, num hausto de delírio.

Os circunstantes duvidaram. E a superstição criou-lhes na alma a sensação de algum espírito transviado.

O guia, porém, homem resoluto, teve impressão contrária.

– Esperem aí, disse; e sem hesitação trepou pela escarpa em direção ao gemido que repetia.

Os companheiros estacaram. O mateiro sumiu-se na ramagem; poucos minutos decorreram; por fim apareceu em cima.

– Tragam foices e os archotes!

No ponto em que se achava o audaz explorador existia uma capoeira de mato rasteiro, inteiramente coberta de melão de S. Caetano, que um engrazado de cipós sustinha alguns metros sobre o solo.

O sertanejo teve um palpite. Gritou, chamou, tornou a chamar. Afinal ouviu-se nitidamente a voz do menino pedindo que o socorressem.

O processo foi rápido. A foice rompeu os obstáculos e em minutos alcançaram o lugar de onde partiam os gemidos.

Encontraram a suposta vítima suspensa, malferida, mas perfeitamente desperta, amparada pelo engrazado flexível de cipós, arrastado àquela altura por um cedro que as erosões da chuva tinham derreado.

Exame posterior demonstrou que das duas vergas do trampolim apenas uma se tinha desligado devido às repetidas flexões que a ressecaram. Essa circunstância determinara a variação da parábola, que em vez de descrever na seção vertical, fez-se na seção oblíqua, propelindo o corpo de modo que este encontrou logo a curva da encosta no contorno da grota caprichosa.

Posteriormente o rapazinho narrou as sensações que experimentara. A sua queda e o seu ressurgir pareceram-lhe visão.

Despertando, suspenso no matagal, incólume, pensou que talvez sonhava. As vozes dos exploradores chamaram-no então à vida. Não se apavorou. Recordou-se, estremecendo, de como se desprendera lá do alcantil, mas um pasmo inexprimível abafou-lhe o medo, e, por instantes, teve a sensação de que os braços se lhe tinham convertido em asas.

O caráter desse pequeno, entretanto, fundiu-se.

A vivacidade retraiu-se, a petulância refreou-se. Fez-se, taciturno, meditativo; e o diabrete de outrora espantava os pais pelos conceitos que emitia e pela atenção que prestava a tudo com uma curiosidade nova e perfurante.

Não se passa impune, de olhos abertos, através da morte.

A vibração nesses momentos é tão intensa, que tudo quanto é frívolo se elimina; e a alma, combusta, volta à claridade com dupla força de viver.

Euclides da Cunha, seguramente, nunca transitou, como aquela criança, pelo corredor da morte; mas é certo que atravessou uma revolução, durante a qual teve de encarar esfinges e, com o auxílio da imaginação candente que a natureza lhe deu, decifrar enigmas psicológicos de terribilidade inexprimível. Nascido para a poesia e ao mesmo tempo dotado de uma segunda vista, que lhe tornava perigoso o exercício da faculdade de observação, teve de presenciar manifestações tremendas da perversidade humana e andou mais de uma vez resvés pelos alcandores da política de Gloster. Essa passagem acrisolou-lhes os estigmas literários; os acontecimentos expungiram o seu espírito dessa vagabundagem estética, que é a sarna da literatura dos sevandijas.

Todo o calórico, que na sua juventude fazia dele um imprudente senãi um exaltado impenitente, calou na vida do artista com raro êxito; e Os Sertões, obra notável, sobre a qual tive a fortuna de ser um dos primeiros a falar, denunciando-a aos meus patrícios como uma obra surpreendente e de exuberância, tão formosa quanto profunda, canalizaram para o estilo todos os excessos de temperamento que faziam recear do futuro desse moço.

E, pois, eis-me de novo a apreciar o seu talento sob novos e diversíssimos aspectos num livro de fragmentos, no qual não sei o que mais se admire, se o estilo, se a filosofia do ensaísta, se a intuição prática do engenheiro que se dedica ao desbravamento das questões mais difíceis, que conheço, a das entradas do Brasil, caminhos, rios, povoamento, e composição de território e seu razoável aproveitamento.

II

Tem sido praxe entre nós considerar o estilo do Conselheiro rui Barbosa um estilo grandioso e impecável. A magnitude dos assuntos, a autoridade pontifical por todos reconhecida, os seus recursos oratórios, a vasta erudição que enriquece-lhe a memória, a sua familiaridade com as literaturas anglo-saxônicas, tanto poéticas como jurídicas, finalmente o seu grande aparelhamento na língua portuguesa: todos estes elementos juntos não podiam deixar de proporcionar-lhe meios de aperfeiçoar os instrumentos de expressão, de modo a torná-los aptos a produzir os efeitos de um grande estilo. Efetivamente, a frase, nos escritos desse autor, é ampla, numerosa, perfeitamente equilibrada; o período ciceroniano nunca mente ao metro; e vê-se que independente da vernaculidade esse período sente-se escandido por mestre, que não ignora nenhum dos segredos da arte de medir versos latinos. Ele começa sempre pelos tons médios; sobe gradualmente até ao máximo dos agudos; depois desce, caindo de súbito, nos graves, que seguram o efeito da proposição. Essa música é infalível; e não precisa ser arguto para descobrir as vantagens que o pensamento recebe desse recurso oratório, quanto dele dependem a clareza, a intimativa, e uma solenidade muita vez esmagadora.

O velho Quintiliano, que foi mestre nestes assuntos, e se ocupou particularmente do estilo oratório, da eloquência, dos seus segredos, no cap. XI do liv. I das Instituições Oratórias demonstra a necessidade do orador cuidar da melodia da frase; e chega a referir que o grande C. Graco nunca falava em público sem ter ao pé de si um tocador de flauta, o qual mantinha-lhe o diapasão da voz, segundo a conveniência da matéria.

Isto, porém, era a voz emitida na tribuna, a voz viva do elocutor que pode soltar o som com mais ou menos melodia em face de um auditório.

A prosa escrita e lida, porém, dir-se-á que é outra coisa. Se assim fosse então não haveria verso. Mas é o que o cérebro continua a ouvir no silêncio do gabinete; e pela contiguidade dos aparelhos ótico e auditivo, o fenômeno da métrica se reproduz tal qual se o órgão vocal estivesse em plena atividade.

Ora, se é verdade que a melodia, a necessidade do ritmo, obriga o compositor da frase, em muitos casos, a modificar até mesmo a sua sintaxe, para não perturbá-la, como Pierson modernamente o demonstrou, havemos de reconhecer também que o escritor, quando dominado por pensamento profundo, agitado por imaginação poderosa, não se subordinará a essa escravidão, a esse automatismo lírico, e, nestas condições, será o inverso que se há de dar.

Se o escritor pode dominar o instrumento da expressão, longe de se guiar pela melodia, pela harmonia, ele é que subordinará esses fenômenos à sua vontade; e então a melodia e a harmonia tomarão a forma exigida pela natureza, pela intensidade e pela variedade do pensamento.

Não sei se o estilo do Conselheiro Rui Barbosa estará isento de increpação neste particular.

Desconfio, entretanto, que a sensação de monotonia, que experimento, ao ler seguidamente discursos, artigos de polêmica, trabalhos de crítica jurídica, apreciações sobre assuntos sociais, políticos, religiosos, literários, filosóficos, ainda mesmo impressões recebidas no estrangeiro, qualquer trabalho, enfim, oriundo de sua pena adamantina não tem outra explicação.

Tudo nesse escritor subordina-se à correção da frase, à escolha dos vocábulos, à harmonia sempre solene dos períodos. Cuida-se num hieratismo estilístico, que acaba por exaurir a atenção do leitor o mais valente. A impressão geral é a de ter-se transitado por um claustro cheio de ecos vetustos, ou pelas ruas de uma cidade abandonada, onde se encontram, todavia, monumentos sem deuses, palácios desabitados, sepulcros sem defuntos.

De onde procederá essa pobreza de vida no centro de riquezas tão profusas? Riquezas mortas! Vidas empalhadas!

Receio que a minha psicologia esteja errada; em todo o caso examinemos o livro, no qual o autor de tantos e tão variados escritos, livre de outros cuidados, que não fossem literários, ainda mais excitado pela situação de emigrado, que em todos os tempos foi estímulo para alvorecer estilos, comunicando fogo à expressão, preparou-se para lançar o dardo da frase ferindo de Londres a imaginação dos conterrâneos, ansiosos da sua palavra sempre escandida, sempre tersa, sempre percuciente.

Esse livro compõe-se de assuntos diversos, tanto no fundo, como na espécie. É um livro de ensaios, no qual se encontram apreciações sobre o processo do Capitão Dreyfus, sobre as bases da fé, um estudo sobre a guerra chino-japonesa, os perfis dos ditadores Francia e Rosa, um artigo sobre o regime federal, e a resposta ao Sr. A. Celso explicando o que se tem chamado a sua conversão religiosa.

Esses assuntos são todos antagônicos; portanto, pediriam notações musicais diversas e vibrações opostas.

Leiamos, porém, o trecho sobre a iniquidade praticada pela França contra um dos seu mais humildes filhos. A matéria do artigo é eminentemente dramática. Há nesse caso cenas para invocar a extrema piedade dos povos; lances próprios para o epigrama; brutalidades que pediam o látego de Juvenal. O autor do artigo, não obstante tudo isso, preferiu o gênero demonstrativo; e fez um requisitório contra a Justiça daquele país, belo, é verdade, cheio de conceitos e aparelhado das provas morais e até dos depoimentos da imprensa, que transcreve, e a todos deixa convencidos do horror daquele crime. O advogado, entretanto, o promotor da justiça humana, não deixou fonte de onde emergisse a piedade na sua forma lírica, ou propriamente na dramática, a emoção enfim que o período comportava.

Comparado esse libelo com o J’accuse de Zola, verifica-se quanto o sobreexcede em lavores; mas a vibração do estilo do francês cava no nosso espírito impressão mais violenta. É que Zola jogava com os recursos de uma poderosa imaginação.

Escolhamos, todavia, do artigo a que me refiro o seu trecho mais eloquente:

O povo soberano, os partidos e governos, entre as nações sem disciplina jurídica, estão sempre inclinados a reagir contra as instituições que se não dobram aos impulsos das maiorias e às exigências das ditaduras. A lei foi instituída exatamente para resistir a esses dois perigos, como um ponto de estabilidade superior aos caprichos e às flutuações da onda humana. Os magistrados foram postos especialmente para assegurar à lei um domínio tanto mais estrito, quanto mais extraordinárias forem as situações, mais formidáveis a soma de interesses e a força do poder alistados contra ela.
Mas há nações, que a não toleram senão como instrumento dos tempos ordinários; e se encontram nela obstáculo às suas preocupações, ou às suas fraquezas, vão buscar a salvação pública nos sofismas da conveniência mais flexível, a cuja sombra os impulsos instintivos da multidão, ou as aventuras irresponsáveis da autoridade se legitimam sempre em nome da necessidade, da moral, ou do patriotismo.

Escrevendo esta página clássica sobre os contrastes que tantos escritores têm notado entre a rigidez dos tribunais ingleses e a volubilidade dos franceses, o ensaísta não adverte que o leitor anseia por entrar no drama. O requisitório continua solene, soleníssimo, entremeado de excertos dos jornais ingleses do dia, cujas indignações nem sempre conseguem dissimular como inglês se sente internamente radiante quando surpreende momento azado que lhe ministre ensejo de vingar-se do que sofreu com as edições gaulesas do Minotauro ou Tributo das Virgens. Alguns desses trechos, apesar do can’t britânico, explodem como shrapnels sobre o caráter da nação francesa. Mas a parte original do artigo termina sem que o autor ouse tirar das próprias entranhas as razões de convicção que o encheram de cóleras contra a mazorca legal, que condenou Dreyfus ao vilipêndio dos séculos por ser judeu, e ainda mais para saciar a fome de desonra que esse monstro chamado nacionalismo iludia, tragando um inocente à guisa do ídolo de Melkarte, durante a crise dos mercenários em Cartago.

Essas razões num homem de letras da envergadura do Conselheiro Rui Barbosa não deviam revestir-se da secura de um puro requisitório proferido pelo promotor da revisão do processo. Mas o método demonstrativo está nos hábitos mentais do advogado. É escusado exigir dele projetar-se fora daquela equalitas de que fala Quintiliano, o que é o seu forte.

Poucos artigos, propriamente de crítica literária, tenho lido assinados pelo autor do Estado de Sítio. Lembro-me, entretanto, de que um foi aposto como prefácio a uma tradução reduzida das Viagens de Gulliver, editada pela casa Laemmert. Nesse trabalho o Conselheiro pouco se ocupou com a obra de Swift; nem cuidou em interpretá-la segundo o seu pensamento íntimo. Havia o magistral estudo de Taine na História da Literatura; que fez o ensaísta brasileiro? Tomou a defesa de Swift contra o grande mestre da crítica contemporânea. Ora, Taine era determinista; e consequente com a sua doutrina e com os seus métodos, procurou explicar a excentricidade das produções de Swift já em face das influências do meio, da raça e da educação que recebera, já pelo temperamento do sujeito que as particularidades da vida e os acidentes de carreira tinham conseguido exagerar. O conselheiro Rui Barbosa julgou, então, oportuno restaurar a verdade sobre o caráter de Swift, o qual lhe parecia também ter sido atrozmente caluniado no ponto das suas relações com uma mulher, que lhe atravessara a órbita da existência. E estabeleceu a prova indireta da isenção de ânimo do deão, no que respeita à memória da gentilíssima Stella. Os depoimentos contra Taine, os foi buscar nas obras de Lecky e de outras autoridades do século XIX, autoridades muito respeitáveis, mas que não sabem ler melhor do que o profundo psicólogo francês.

Em todo o caso eu fiquei com a opinião de Taine, lamentando que o espírito peregrino do escritor brasileiro não pudesse, ao tomar da pena de literato, abstrair dos seus processos forenses. Entristeci-me com o espetáculo que oferecia um engenho laborioso e arguto. Por que não quis esse escritor dar-se à maleabilidade de um Roseberry, que, conquanto parlamentar ilustre e prático, homem de negócios, logo após a retirada da presidência do conselho de ministros, não trepida em lançar um livro encantador e sugestivo sobre Napoleão, em cujas linhas nem de longe se pressente l’homme d’affaires, positivo e materializado para a vida de todo dia?

Ora, pus-me a imaginar o que teria sido aquele artigo se o tivesse escrito José do Patrocínio.

Esse nosso malogrado escritor nascera com a oratória no sangue do mesmo modo que o orador baiano. Tinha, entretanto, incorreções de forma, deslizes filosóficos, insobriedades de imagens; mas, uma vez na tribuna ou no artigo de fundo de um periódico, era o tumulto feito homem. Conta-se que uma vez, esquecido das suas origens africanas, num rapto de entusiasmo, dissera estas palavras: – “Nós, os representantes da raça latina!…” Tal esquecimento, porém, era o homem todo. José do Patrocínio, ainda que mestiço, recebera a força inteira da educação mediterrânea, e no seu cérebro, ao mesmo tempo que irradiava o verbo latino, levantavam-se os sirocos das terras adustas da África, os quais varriam tudo nos dias de cóleras e acabaram por consumi-lo reduzindo o seu talento a cinzas. O negro – como ele mesmo se apodava – tinha deslumbramentos ignívomos; e o seu instrumento oratório possuía todas as cordas da emoção humana. Não falava, não escrevia: derramava-se em catadupas de sensações, de conceitos, de apóstrofes, de epigramas, de poesia. Era muitas vezes trágico!

Assisti de uma vez a uma das suas melhores conferências, que se prolongou por mais de duas horas. Versava sobre a imigração chinesa e, se não me falha a memória, o objetivo teria sido agredir o Barão de Cotegipe. Pois bem: a agressão começou medida e ponderada; pouco a pouco o orador foi-se animando em busca do verdadeiro assunto. Nisto esquece o propósito que o erguera até a tribuna. O improviso começara. Surgiu-lhe então o chim no centro do discurso: e o autor de tantas peças eloquentes precipitou-se sobre a civilização chinesa como um ciclone, cheio de raios e coriscos. Não se pode imaginar o que foi esse discurso e nem se pense que José do Patrocínio ficasse inteiriçado a debater-se contra o coolie, o miserável coolie, com o qual nos ameaçavam.

Nessa peça literária ele deu-nos todos os espécimes da literatura viva. Foi descritivo: pintou Pequim, – a cidade sórdida e imoral dos imperadores e eunucos; pintou-nos Cantão e o seu rio pejado de jardins flutuantes dedicados à mais infame concupiscência; pintou o mandarim, fazendo alarde da sua indolência pelas unhas quilométricas, que os manicuros iam duas vezes ao dia polir e enfeitar; enfim, não houve recanto dessa vida chinesa, verdeira ou inventada, que o orador não desflorasse, rápido, expressivo, colorido, a golpes de pincel, numa enorme cenografia falada, mas fantasmagórica!

De repente turvou-se. Esse fenômeno é digno de atenção, porque explica toda vibratilidade daquele talento extraordinário. De repente a eloquência descritiva sustou-se. Era a abolição e o Ceará que lhe passavam pela mente. Ei-lo, pois, abrindo o capítulo mais lírico, que já me foi dado ouvir dos lábios dum orador. Mas aí estava ele no seu elemento primordial. O poeta dos escravos, das reivindicações históricas, não fazia esforço, nem usava de arte para fazer chorar. O tom elegíaco inundava-o.

E logo a elegia dissipou-se; cai o pano, para recomeçar o drama, que que, a largos traços, esse mestiço de gênio fazia exibirem-se vivos os personagens que ele amava ou que odiava, pondo os caracteres em nudez terrível, senão em carne viva. Suas palavras escorriam sangue!

Essa notabilíssima peça oratória terminou por uma cena rabelaiseana, na qual José do Patrocínio mostrou ainda o seu talento cômico, pondo o auditório em contínua hilariedade. O pretexto dessa cena cômica era a apreciação de um poeta chinês, que ele considerava superior a Moliére, porque, tratando o dito poeta da mesma teses que se encontra desenvolvida no Harpagon, pode descrever um tipo de usura sórdida que só o infame gênio da raça chinesa teria alcançado descobrir. Basta dizer que esse sovina deliberou um dia ser liberal consigo mesmo, porque para com o próximo ser gentil parecia uma extravagância contra os textos de Confúcio, senão contra a própria natureza. E pois esse miserável saiu do tugúrio em que dormia no dia do seu aniversário para adquirir um pato assado com o qual desse a si mesmo um banquete inaugural. Em casa havia um punhado de arroz cozido de cinco semanas, o que juntado ao pato tornaria a festa suntuosa, farta, principesca. Neste propósito o avarento, então, entrou em várias casas de pasto, onde existiam patos assados: mas não lhe mostraram nenhum que lhe aguçasse o gosto, nem que lhe conviesse à bolsa. Como, porém, viesse a tarde e o tempo urgisse, decidiu-se por fim negociar um pato assado de proporções enormes, e que se lhe apresentou dentro de grande prato, mergulhado em um molho delicioso. Foi o escolhido; mas enquanto se regateava o preço, o usurário, iludindo a vigilância do pasteleiro, metia sorrateiramente a mão esquerda no prato e a ensopava ao molho, enquanto com a direita ameaçava os queixos do interlocutor, irritado pela exageração do preço. Por último e quando viu que a mão estava inteiramente coalhada do precioso caldo, rompeu as negociações culinárias e retirou-se de súbito, levando no olfato grande parte da cozinha do homem, e mais o extrato gorduroso da ave apetitosa. Chegando em casa, estendeu-se no seu estrado de bambu; lançou à boca alguns grãos de arroz, e começou a banquetear-se. Lambeu primeiro o caldo que envolvia o dedo mínimo, depois o segundo, o terceiro, até ao indicador; e aí parou a suspirar de gozo e a dar gritinhos de prazer pelo logro que ferrara no malcriado pasteleiro. Nisto pensou que estava empaturrado; arrotou, cuspiu, bebeu um pouco d’água, e descaiu para o lado em um sono sibarítico, sonhando já com a lambidela ao dedo polegar, apenas despertasse. E dormiu por quatro horas. Quando, porém, ergueu-se, o seu assombro foi tremendo. Alguém durando o sono roubara-lhe o resto do banquete. O polegar estava limpo. Ao lado um triste cão olhava para o dono, ora a admirá-lo, ora a morder as pulgas.

E era com uma gente desta que se queria colonizar a nossa terra! O Harpagão chinês avançava tremebundo contra o animal; de repente para a tomba, rolando inerte pelo chão. A apoplexia o exterminara.

José do Patrocínio não narrava, como fiz, essa anedota; representava-a. O sucesso foi completo; o que não impediu que daí a minutos produzisse uma peroração de feitio trágico, de que só ele tinha o segredo e o critério quanto à oportunidade.

Se o artigo sobre Dreyfus fosse de sua pena, duas coisas pelo menos ressaltariam da contextura dos períodos respectivos. Ele profligaria a França; ele atacaria o sanhedrim dos militares; mas também faria ver em contraste Joana d’Arc e Luís XI, a Revolução e a guilhotina, Danton e Robespierre, as grandes virtudes em luta contra os maiores crimes, – enfim o temperamento da nação, que maiores serviços tem prestado ao mundo.

O que com certeza Patrocínio não faria era aproveitar-se da eloquência inglesa para abafar os crimes de Ricardo III, de Elizabeth, e ainda recentemente as patifarias de Chamberlain.

A chacun ses pauvres et ses misères! [ 3 ]

Logo adiante se nos depara nas Cartas de Inglaterra outro ensaio cuja contextura também me surpreende.

É o compte rendu do livro de Balfour, intitulado As bases da fé.

Para os fins que tenho em vista, transcrevo desse escrito o trecho mais característico:

“O progresso britânico é profundamente moral, essencialmente religioso em toda a extensão do seu curso. Observadores superficiais arguem de hipocrisia esse aspecto dominante da grande raça. Mas a hipocrisia é a capa de um indivíduo, a mônita de um partido, ou a expressão passageira de uma época: não pode ser a máscara da história de uma nação. Não quero negar a escória que se amalgama com o metal precioso. Em todos os compostos do homem se misturam sempre, de envolta com a base espiritual, as fezes terrenas. Dessas incongruências se forma a liga individual de bronze das obras humanas. Nos excessos do temperamento saxônico, que o cronista Ghuilherme de Malmesbury retratava, nos seus Gesta Regum Anglorum, depois da conquista normanda, já se destacavam, com a embriaguez, a devassidão e a crueza, em certas camadas, em outras a piedade e a devoção até ao martírio pela lei de Deus. ‘A ilha inteira acha-se ilustrada de relíquias de santos’. A força interior, que no século VII e no século VIII impelia os filhos destas ilhas recém-convertidas ao cristianismo, os Wilfriths, os Willibrods, os Bonifácios, ‘a virem espargir semente evangélica pela Germánia inculta e bravia’, é, qualse mil anos depois, no século XVII, o que salva a Constituição inglesa; é, no século XVIII, a alma da resistência, que opera a liberdade americana; é ainda no século XIX, a influência mais poderosa nas grandes crises morais e políticas desta nação. O seu vigor prático, , o seu gênio industrial, a sua mestria nas ciências da matéria, o cetro da opulência mercantil, que esses predicados asseguraram aos herdeiros do espírito do autor do Novum Organum, estão, não obstante a importância extraordinária de seu papel na história do povo inglês, subordinados à atração soberana, que sobre ele sempre exerceram os problemas supremos do nosso destino.” [ 4 ]

As palavras que aí ficam são o transunto da síntese que Balfour empreendeu firmar no intuito de dirimir a interdependência das verdades que a ciência, a moral e a religião “entre só dividem”. À fragilidade das nossas explicações, que são transitórias, substitui-se a sobrevivência das coisas explicadas que transluzem na eternidade do que é divino. É o seu voto.

Não se pode negar, pois, que a unção, quase mística, do escritor brasileiro, sobredoura a sua frase com o estilo que lhe convém. Essa carta tem todas as correções de que é capaz o talento do autor; ainda que mística, não lhe encontro nos processos, nem sequer na gestação do pensamento, nada que a diferencie do requisitório dreyfusiano. É o mesmo passo tardio e vagaroso; é a mesma fé atenuada, o mesmo ardor monótono, escandido; o mesmo entusiasmo do político, medido e compassado.

Ouvindo as opiniões dos ingleses de gênio sobre as virtudes universais, que não obstante eles julgam serem só suas, o Conselheiro Rui Barbosa não encontrou uma só frase para a mais justa das reconvenções. Deixou passar a obra inteira de Balfour; e ele, o maior defensor das nossas liberdades, não viu que nenhuma escravidão existe comparável a essa em que o espírito combalido arroja-se, em dia de desânimo, aos pés do confessor inconfessável.

Ora, eu penso que se Euclides da Cunha, sem embargo da educação positivista dos seus primeiros anos, tivesse de encarar a questão da Inglaterra mística, provavelmente impressionado, profundamente agitado pelo mistério e pelas contradições que só a palavra misticismo gera no seio da História, teria escrito a carta que o assunto pedia. Não seria uma carta de submissão, nem mesmo um trecho de evangelista apagado, mas uma página candente, indo buscar, incitado pelo espírito religioso, as similitudes postas pela propagação da fé e pela unidade da força humana de sentir ou melhor de projetar-se para o desconhecido, condicionando a percepção divina entre os santos ingleses e os santos do continente. Então ver-se-ia que S. Dunstad ou Thomaz Becquet nenhuma diferença fariam desse admirável São Francisco de Assis, de Gebhart, na sua Itália mística, deu-nos o mais flamejante dos retratos. Ver-se-ia ainda em como o evangelho eterno da elevação moral do homem coincidia com as renascenças da capacidade do homem para os fortes pensamentos; e que não passando as religiões, como as ciências, de meros dialetos de uma única tendência da espécie humana, – isto é, do desenvolvimento da faculdade de dirigir-se o homem pela reflexão e pela experiência, construindo a própria felicidade, escusado seria atribuir à religião de Penn a razão fundamental do progresso dos Estados Unidos. Fossem os puritanos dirigidos por um chefe de seita bem intencionado, ou por um filósofo, aparentemente cético como Bacon, o resultado seria o mesmo, dadas as condições de progredir.

E o espírito de Euclides da Cunha, cuja índole julgo conhecer um pouco, fora dos círculo das causas fúteis, agitando-se sobre ameias e por cima das colunatas do palácio estético de Balfour, tentaria, inflamado pelos relâmpagos que a História de vez em vez projeta sobre nós, um estilo adequado ao painel religioso. O que viu em Canudos, pelos contrastes da superstição boçal, indicar-lhe-ia de onde tirar as tintas para essa grande tela.

Mas Euclides da Cunha é um temperamento artístico, violento, ardente, abundante, talvez incapaz de disciplina; ao passo que o autor das Cartas de Inglaterra é apático e mal aparelhado de imaginação, o que não quer dizer que a este faltem outras qualidades de primor. Acredito mesmo que, especializado na poesia, o Conselheiro Rui Barbosa seria um Pope, na literatura um Addison. Inutilmente, porém, se lhe pedirá um capítulo de Salambô, um verso de Musset, uma página do Gênio do Cristianismo. Da sua pena nunca poderá sair uma pintura de César igual à que se encontra na História Romana de Mommsen; não está no seu temperamento produzir um retrato de Napoleão nos moldes filosóficos e ao mesmo tempo surpreendentes desse admirável G. Ferrero, que hoje ilustra a Itália. O gênio do autor do Papa e o concílio possui o segredo das grandes solenidades; mas, ainda nestes momentos supremos, não o socorre a vibração da águia no grande remígio da eloquência do tribuno. As suas orações tomam apenas a feição hierática; e o que lhe escasseia em fantasia é suprido pela sua enorme erudição.

Nem se diga que estou aqui a exigir de um orador político, de um jornalista doutrinário, de um jurisconsulto, de um advogado de qualidades que de ordinário só se exigem dos poetas e para obras de ficção.

Basta, entretanto, lembrar o exemplo de Bossuet para que essa increpação não valha nada. Sem aquela qualidade o grande orador sacro não teria produzido as orações que produziu nem composto, muito menos, o seu Discurso sobre a História Universal. E os exemplos pululam. Schopenhauer, com ser filósofo, nada teria obtido sem imaginação. As suas audácias teóricas lhe foram sugeridas por uma espécie de refluxo da própria eloquência imaginosa. A que deveu Thierry o sucesso de suas investigações? A essa imaginação que deu vida a fatos miúdos de que ninguém fazia caso, refletindo-se depois no mais pitoresco dos estilos.

E o historiador Herder? E o político Disraeli? E Gladstone? E Mitre? E José de Alencar? E agora mesmo, o Presidente Roosevelt? De que valeriam as qualidades práticas de Roosevelt se ele não dispusesse, em grande escala, dessa faculdade primacial e indispensável a quem pretende romper com a rotina, abrindo novos caminhos, seja em que gênero for da atividade humana?

III

Quando se publicou o livro Os Sertões de Euclides da Cunha, não resisti à tentação de exprimir a surpresa que me causou a exuberância do seu talento de escritor; e disse tudo quanto me acudiu relativamente à intensidade emocional da obra, que, apesar das suas 600 páginas, empolgou-me, seduziu-me.

Cuido que com isto não cometi nenhum pecado contra a crítica. Digo crítica, para não usar outro termo menos capitoso, porque, falando com sinceridade, eu não creio que a crítica seja uma ciência fundada. Não lhe conheço os princípios abstratos. A crítica, portanto, arvorada em magistratura, é um escândalo tão digno de ser profligado, como as antigas justiças consulares. Houve tempo em que a literatura também sentia o peso das capitulações. Hoje cada um escreve como pode e como quer; o como deve é uma questão de moral, não de produção artística, se bem que entenda diretamente com o produtor.

Há críticos; isto sim. Os críticos são bons ou maus, na conformidade também das suas intenções, do seu temperamento. Na apreciação de um trabalho, que não seja matemático, se fará sentir inevitavelmente a equação pessoal de cada um. Existem críticos judeus, fariseus e até sandeus! A este poder-se-á lançar a apóstrofe de Dante: – non ragioniam di lor, ma guarda e passa! Existem, porém, outros suportáveis: aqueles que, instruídos nas ciências fundamentais, põem-nas em contribuições para o aperfeiçoamento do próprio gosto. Ora, é bem de ver que o juízo de Bernardelli ou ainda de Sílvio Romero sobre a beleza do pavilhão Monroe não terá o mesmo valor que o conceito do boi que andou olhando para o palácio.

De gustibis et coloribus non disputandum, diz a sabedoria greco-latina. O murro e a espada não são admitidos em crítica literária, que é a arte da paz e não da guerra; e o gosto – o bom gosto – não se forma ao estourar de um canhão, que retrai o riso, e, produzindo o medo, inibe toda a manifestação artística.

Dizem que o tirano Rosas, quando não tinha o que fazer, na sua chácara de Palermo, atualmente transformada no mais pitoresco dos passeios de Buenos Aires, lia os versos laudatórios, que a imprensa lhe fazia, antes de receberem o visto da mashorca. Pois esse déspota, que aliás teve qualidades admiráveis, entendia que estava na sua alçada ordenar por decreto que o verso tal rimasse com o verso qual, v. g. – bandera com rincón, e tudo isso para que o federalismo não sofresse. Razões de Estado aplicadas à rima; estado de sítio posto ao ouvido dos poetas; mas é bem provável, a ser exata a anedota, que Rosas o fizesse para experimentar se eram verdadeiras as leis da poética de Aristóteles ou ainda as do poeta, seu patrício, Echeverria, que andava rimando cuidad com libertad.

Penso, pois, que a disciplina do estro é como um andaime. Levantado o edifício, é escusado conservá-lo. É mais provável que para um outro monumento as conveniências indiquem melhores aparelhos.

Enfrear o talento é que é barbarismo. Sufocá-lo sob preceitos que foram ótimos para outros, – uma malvadeza.

Paul de Saint-Victor, que escreveu três livros monumentais sobre o teatro antigo, deu-nos a sensação mais brilhante que já poeta conseguiu produzir, não sobre a natureza externa do homem, mas sobre os produtos do engenho humano, que são a expressão mais forte dessa mesma natureza. Nada explicou, à maneira de Taine; nem deduziu regras como de uma ciência independente e se tem tentado infrutiferamente de Baumgarten até o malogrado Hennequim. O crítico francês cingiu-se a compreender o espírito daquelas obras e traduziu-as descritivamente num dos estilos mais brilhantes que a França moderna tem conhecido. Imaginou este poeta da crítica que a um prato de pêssegos da Pérsia, formosos, coloridos e perfumados, dignos dos lábios de uma huri, não havia outra coisa a fazer senão cobri-lo com um lenço de crivo ou de rendas de Alençon, desse lavor imarcessível, que exige anos de acurada atenção e bilros. Esse crítico nunca ousou tirar às produções poéticas o seu aroma, as suas cores, a sua formosura.

Sainte-Beauve é outro crítico de eleição. Um grande conhecimento das paixões e na natureza individual levou-o a exercer a crítica, obrigando-nos a amar os criticados, já ensinando a ler as suas obras, já estabelecendo pela biografia as mais íntimas relações entre o leitor e o autor analisado.

Taine, filósofo, naturalista, sábio, historiador, grande cultor da música, profundo conhecedor de todas as artes plásticas, observador e arqueólogo, pôs todos estes atributos em jogo, para dar à sua crítica uma aparência de sistema; indicou algumas leis de sociologia contíguas à atividade literária; mas, em resultado de contas os seus trabalhos, no que entende com os agrupamentos, foram sempre eficazes e deram aos estudos psicológicos da alma das nações uma magnífica contribuição; ainda assim a sua ciência furtou-se a explicar muitas individualidades literárias, que continuarão como a esfinge do deserto a interrogar e a devorar a paciência dos intérpretes e dos gramáticos.

Rúskin, um gênio diverso dos outros e paradoxal, tentou instituir a religião da beleza. Se não o alcançou, pelo menos conseguiu mostrar que, sendo a arte uma paixão das coisas naturais, não havia outra lei estética senão a que conduz o artista nato até a observação ingênua, mas persistente, da estrutura íntima das coisas a fim de metamorfoseá-las, segundo as suas próprias aptidões, num objeto de arte. É o esplendor não da verdade, mas da vida!

Ora, de tudo isto o que se depreende é que a cultura, no ponto de vista da crítica, não pode ter outro objetivo senão instituir métodos, coligir experiências, que facilitem a uns o apreço da obra de arte e a outros o aumento da própria força produtiva.

Mas em boa hora o diga: eu nem essas mesmas experiências literárias apliquei ao último livro de Euclides da Cunha, principalmente por tratar-se de folhas dispersas, que não resultaram de concentração de espírito igual à que o autor desenvolveu na composição de Os Sertões.

Por isso mesmo, porém, esse livro parece-me o mais adequado para daí deduzir o valor real do seu estilo, porque sendo esse estilo onímodo, e, versando os capítulos da obra sobre os assuntos mais opostos, psicologia, socialismo, religião, política, de envolta com problemas de história pátria, imigração, povoamento do solo, indústria, engenharia, matéria positiva e chã, pela sua leitura se pode melhor avaliar, no improviso da escrita, o afinamento das claves do instrumento.

Bem ao contrário do que se observa no estilo do Conselheiro Rui Barbosa, o estilo de Euclides da Cunha nada tem de inteiriço. A emoção anda-lhe muito por perto da crosta da terra onde pisa. A sua frase, portanto, dá a sensação, como se poderia dizer, de vales, montanhas, grutas, depressões e até planícies. É o reflexo perfeito dos estados da sua alma, ora tensa, pelo entusiasmo que determinam os belos aspectos da natureza morta ou viva da floresta, do homem, do oceano, ora desalentada pela fadiga ou pela ansiedade, senão angústia, oriunda da impossibilidade de alcançar de um salto a resolução do problema, e porque semelhante mobilidade não condiz com o hieratismo permanente daquele outro nobre estilo, daquele estilo monocrônico, é que Os Sertões se ressentiram do tumulto estético que a muita gente arrepiou.

Ora, foi essa tormenta que me fez embrenhar pelo livro a dentro. A frase encachoeirada, muita vez convulsa, deu-me a sensação de que estava às voltas com um escritor de raça.

Não repetirei o que sobre esse livro eu escrevi logo que apareceu em nossas livrarias. [ 5 ]

Naquele meu trabalho transcrevi as peças justificativas do meu asserto, e de tais transcrições, pelo menos para mim, se tornou evidente o contraste resultante do proteísmo e das deformidades desse talento, refletidos no seu estilo desenfreado, estilo cataclismal e talvez o mais apropriado para descrever os acontecimentos anormais, as revoluções sociais e os desastres dos caracteres.

Sou forçado a voltar ao Conselheiro Rui Barbosa; nas suas Cartas de Inglaterra há um ensaio sobre os dois tiranos, Rosas e Francia. Esses dois trabalhos, inspirados pelos livros de Pelliza e Carlyle, são, como protestos, magníficos palácios, onde o autor, de envolta com o que é seu, nos apresenta uma galeria de escorços pertencentes aos grandes artistas que lhe meteram a ideia de se ocupar com aqueles dois tipos opostos de déspotas – o militar e o fradesco. Mas o intuito real do emigrado de Londres não era fazer a psicologia desses dois homens, mas lembrar aos seus patrícios umas tantas tendências que existem difusas no Brasil, e que por mais de uma vez o tem levado à tribuna judiciária em requerimentos de habeas corpus. Os conceitos compilados pela afinidade de ideias e de talento nesses ensaios revelam pela colocação a astúcia do escritor, e não lhe quero mal por isso; antes o admiro. Mas a psicologia de Rosas e Francia, sem tal preocupação, podia ser completamente outra.

Troquem-se as penas e imagine-se o que seriam aqueles dois vultos estudados e descritos por quem escreveu a Esfinge e o Marechal de Ferro.

Não é o caso de transcrever; é de ler. Euclides da Cunha não fez psicologia livresca. Viu, observou, analisou, sintetizou,e viu cair no papel, envolto na fotosfera do seu talento, o retrato do homem que o impressionou, não como um esquema jurídico, ou mesmo politicante, mas como um ser vivo, que agia sobre o ambiente social de modo intensíssimo e quiçá carregado de mistérios.

Apesar de não ser exatamente o Floriano, que eu julgo ter visto, aquele que é retratado por Euclides da Cunha, ou forçado a convir em que a versão euclidiana salta da página, com a roupagem clássica que o povo lhe emprestou, e move-se no espaço, deslizando no fundo da nossa imaginação qual uma sombra, que acaso se nos deparasse na penumbra dos corredores do Itamarati.

É uma página dos Campos Elíseos de Vergílio. Os mortos confabulam com os vivos.

Os vivos, por sua vez, recebem o ferrete do seu estilo.

Eis o Kaiser:

Bismarck, sempre tão penetrante nos conceitos que disparava — disparava é o termo próprio àquela sua ironia férrea, que matava como as balas — definiu, certa vez, a política do segundo império, fantasista e frívola, e tão estonteada na Europa, ou na América, na Itália, ou no México, entre deslumbrantes frivolidades, em que se dissipava o heroísmo tradicional da França:
— “Era uma política de gorjetas.”
Depois, esculpiu com quatro pranchadas de pena o homem que a inspirava:
Napoleão III, com o seu egoísmo de corretor…
[…]
…Ora, Bismarck fazia então, sem o imaginar, o retrato da Alemanha de agora e do Kaiser.
………………………
Tem Guilherme II, um grande homem inédito.
Realmente, o Kaiser é uma promessa cada vez maior e mais irrealizável. Bismarck esboçou-se sem o saber, de ricochete, pela fisionomia de Napoleão III, mas fez-lhe a caricatura apenas a largos traços, vivos; e os melhores psicólogos, ao escandirem os seus atributos característicos, não descobrem de onde lhe advém tão antigermânicas qualidades. Perquirem-lhe a linhagem toda, e não lobrigam, nos confins indecisos do século XIII, o príncipe obscuro, misto de minnesänger e de soldado, errante, de castelo em castelo, pela Baviera em fora, todo vestido de ferro, feito um caçador de glórias e de perigos, a cantar o amor e a coragem, que veio, por um milagre de atavismo, surgir tão de pancada e estonteadamente em nossos dias…
É um revenant; e este evadido do passado ao mesmo passo que se isola na Alemanha, vai isolando a Alemanha do convívio das nações.
Autocrata sem rebuços num império constitucional, em que os seus secretários particulares substituem os ministros responsáveis, aperta-se no estreitíssimo círculo de uma Corte louvaminheira, que não só o afasta do influxo austero da opinião pública germânica, como o impropria a avaliar os desastrosos efeitos de sua garrulice inconveniente sobre todas as nações. Embalde von Treitschk, o notável sucessor de Mommsen, denuncia “o exagerado culto teocrático à majestade que macula a monarquia prussiana “e as formalidades e .cerimônias de uma Corte, onde “há a abjeção estagnada do servilismo oriental”; ou o Dr. Hann, secretário da Liga Agrária, denuncia nuamente, em público, o acabamento das qualidades superiores de consistência, de continuidade e de firmeza de inabalável política bismarckiana. O imperador não os ouve: repele-os.
Eles não lhe embalam a vaidade, não lhe aplaudem os discursos, não lhe admiram as concepções, não se enfileiram na numerosa claque que lhe proclama o enciclopedismo distenso. Wirchow atravessou o seu reinado, inteiramente desfavorecido, porque era liberal. Hauptmann, o maior dramaturgo da Alemanha, figura-se-lhe um rabiscador inaturável; a sua grande voz não vinga o abafamento dos reposteiros de Potsdam. Hoje o gênio loureado na terra sonhadora de Goethe é o capitão Lanff, um lírico de caserna. Para este todos os requintes dos favores imperiais, porque os seus dramas, impostos por decreto a todos os teatros subsidiados do Império — os seus dramas tremendos, refertos de cutiladas, de tiros, de urros pavorosos de terribilíssimos heróis, em que os entrechos se embaralham pisoados de cargas de cavalaria — são a apologia sanguinolenta dos Hohenzollerns. Reconhece-se que são maus, que são positivamente idiotas, no tacanhear dos conceitos, na frase cambeante e perra, nos enredos desconexos e nos desenlaces abstrusos — mas lisonjeiam a vaidade imperial.

É o estilo vivo, ou não há estilo. Não posso dar maior extensão a este artigo e aqui interrompo por agora o que tinha que dizer sobre a personalidade do autor, que tem recantos e aspectos não explorados.

Quem, porém, quiser dar-se ao trabalho de ler o novo livro desse escritor, que honraria qualquer literatura, não custará a verificar a exatidão do que avanço.

Se quiser navegar no azul de uma esperança brasileira, percorra o Plano de uma Cruzada. É o apoio lírico dado a uma causa positiva e prática, que o autor estudou como engenheiro, transferida das linhas geométricas para conceitos literários que fazem o espírito esfuziar em direção aos horizontes da pátria futura.

Volva a página e logo adiante encontrará um guia que o fará entrar pelos sertões, por estradas ignotas, que o índio viu, o bandeirante adivinhou e o Império abandonou. Terá então o traço intelectual de uma viagem extraordinária, no fim da qual se sentirá esmagado pelo pessimismo dos que acordam hoje sobre os escombros e ruínas de tantas coisas grandes perdidas, desprezadas.

Enfim, revolva o livro, leia-o, releia-o, e saberá que Euclides da Cunha, com ser um matemático, e exercitar a função enfadonha de arrotear terras, construir estradas, cavar poços, lançar pontes, calcular resistências e estabelecer coordenadas, não desdenha subir ao mangrulho da arte para descobrir e juntar à aspereza do trabalho diurno alguma coisa que possa tirar à vida aquele labéu lançado por Salústio às sociedades de animais que vivem inclinados sobre o ventre – pronus ventrem.

Rio, janeiro, 1907.

Araripe Júnior

[ 1 ] Prefácio acrescentado à 2ª edição (1907). N. do E.
[ 2 ] Rui Barbosa, Cartas de Inglaterra, pág. 16.
[ 3 ] Devo prevenir o leitor de que não estou aqui fazendo um estudo sobre a personalidade do Conselheiro Rui Barbosa, o qual, graças à eminência dos seus trabalhos e às suas poderosas faculdades de escritor, devia ocupar um lugar conspícuo entre as minhas despretensiosas investigações literárias. Sobre a sua obra tenho tomado grande cópia de notas que oportunamente serão completadas em um perfil literário, e dadas a estampa logo que se ultime em Portugal a publicação completa dos seus trabalhos, conforme vejo anunciado. Neste momento cuido unicamente de contrastar a sua forma literária, o seu estilo com o de um escritor ainda muito moço, o qual apesar do que se possa dele dizer mal, possui em dose elevadíssima qualidades artísticas, uma imaginação poderosa e o dom inato de emocionar os outros.
[ 4 ] Cartas, op. cit., pág. 49.
[ 5 ] É curioso o fato que me referiu distinto médico acerca de um fenômeno de hipnotismo exercido por um livro na alma tenra de uma criança. Trata-se de um filho do Dr. Tosta, que, segundo me afirmou aquele amigo, é o mesmo menino que, por sua alta recreação, escreveu a Nogi um cartão postal, felicitando-o pela tomada de Porto Artur. Pois essa criança, lendo Os Sertões, aliás composto para adultos, apaixonou-se por tal maneira do livro que não o larga e vive a relê-lo. Prova de que nisto é que está o segredo dos grandes escritores. Como as obras da natureza, os bons livros tem duas faces, uma para os sábios e outra para os desprovidos de ciência – para o povo.
ARARIPE JÚNIOR, Tristão de Alencar. Dois grandes estilos — contrastes e confrontos [prefácio]. EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Contrastes e confrontos. São Paulo, 2021. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/contrastes-e-confrontos/dois-grandes-estilos. Acesso em: [data]. Reprod. ARARIPE JUNIOR, Tristão de Alencar. Dois grandes estilos — contrastes e confrontos [prefácio]. In: CUNHA, Euclides da. Contrastes e confrontos. Prefácio de Araripe Júnior, Estabel. de texto e notas de Dermal Camargo Monfrê, nota explicativa de Oswaldo Galotti. Rio de Janeiro: Lello Brasileira, 1967. pp. 7-34.