Um clima caluniado

Na definição climática das circunscrições territoriais criadas pelo Tratado de Petrópolis tem-se incluído sempre um elemento curiosíssimo, ante o qual o psicólogo mais rombo suplanta a competência do Professor Hann, ou qualquer outro mestre em coisas meteorológicas: o desfalecimento moral dos que para lá seguem e levam desde o dia da partida a preocupação absorvente da volta no mais breve prazo possível. Cria-se uma nova sorte de exilados — o exilado que pede o exílio, lutando por vezes para o conseguir, repelindo outros concorrentes, ao mesmo passo que vai adensando na fantasia alarmada as mais lutuosas imagens no prefigurar o paraíso tenebroso que o atrai.

Parte, e leva no próprio estado emotivo a receptividade a todas as moléstias.

Atravessa quinze dias infindáveis a contornear a nossa costa. Entra no Amazonas. Reanima-se um momento ante a fisionomia singular da terra; mas para logo acabrunha-o a imensidade deprimida — onde o olhar lhe morre no próprio quadro que contempla, certo enorme, mas em branco e reduzido às molduras indecisas das margens afastadas. Sobe o grande rio; e vão-se-lhe os dias inúteis ante a imobilidade estranha das paisagens de uma só cor, de uma só altura e de um só modelo, com a sensação angustiosa de uma parada na vida: atônicas todas as impressões, extinta a idéia do tempo, que a sucessão das aparências exteriores, uniformes, não revela — e retraída a alma numa nostalgia que não é apenas a saudade da terra nativa, mas da Terra, das formas naturais tradicionalmente vinculadas às nossas contemplações, que ali se não vêem, ou se não destacam na uniformidade das planuras…

Entra por um dos grandes tributários, o Juruá ou o Purus. Atinge ao seu objetivo remoto; e todos os desalentos se lhe agravam. A terra é, naturalmente, desgraciosa e triste, porque é nova. Está em ser. Faltam-lhe à vestimenta de matas os recortes artísticos do trabalho.

Há paisagens curtas que vemos por vezes, subjetivamente, como um reflexo subconsciente de velhas contemplações ancestrais. Os cerros ondulantes, os vales, os litorais que se recortam de angras, e os próprios desertos recrestados, afeiçoam-se-nos às vistas por maneira a admitirmos um modo qualquer de reminiscência atávica. Vendo-os pela primeira vez, temos o encanto de equipararmos o que imaginamos com o que se nos antolha, numa exteriorização tangível de contornos anteriormente idealizados.

Ali, não. Desaparecem as formas topográficas mais associadas à existência humana. Há alguma coisa extraterrestre naquela natureza anfíbia, misto de águas e de terras, que se oculta, completamente nivelada, na sua própria grandeza. E sente-se bem que ela permaneceria para sempre impenetrável se não se desentranhasse em preciosos produtos adquiridos de pronto sem a constância e a continuidade das culturas. As gentes que a povoam talham-se-lhe pela braveza. Não a cultivam, aformoseando-a: domam-na. O cearense, o paraibano, os sertanejos nortistas, em geral, ali estacionam, cumprindo, sem o saberem, uma das maiores empresas destes tempos. Estão amansando o deserto. E as suas almas simples, a um tempo ingênuas e heroicas, disciplinadas pelos reveses, garantem-lhes, mais que os organismos robustos, o triunfo na campanha formidável.

O recém-vindo do Sul chega em pleno desdobrar-se daquela azáfama tumultuária, e, de ordinário, sucumbe. Assombram-no, do mesmo lance, a face desconhecida da paisagem e o quadro daquela sociedade de caboclos titânicos que ali estão construindo um território. Sente-se deslocado no espaço e no tempo; não já fora da pátria, senão arredio da cultura humana, extraviado num recanto da floresta e num desvão obscurecido da História.

Não resiste. Concentra todos os alentos que lhe restam para o só efeito de permanecer algum tempo, inútil e inerte, no posto que lhe marcaram; mal desempenhando os mais simples deveres; indo-se-lhe os olhos em todos os vapores que descem — e o espírito ausente nos lares afastados, longo tempo, em um exaustivo agitar de apreensões e conjeturas — até que o sacuda, inesperadamente, em pleno dia canicular, um súbito estremeção de frio, delatando-lhe a vinda salvadora, e por vezes reconditamente anelada, da febre. E é uma surpresa gratíssima. A vida desperta-se-lhe de golpe, naquela cotovelada da morte que passou por perto. O impaludismo significa-lhe, antes de tudo, a carta de alforria de um atestado médico. É a volta. A volta sem temores, a fuga justificável, a deserção que se legaliza, e o medo sobredoirado de heroísmo, desafiando o espanto dos que lhe ouvem o romance alarmante das moléstias que devastam a paragem maldita.

Porque é preciso coonestar o recuo. Então cada igarapé sem nome é um Ganges pestilento e lúgubre; e os igapós, ou os lagos, espalmam-se nas várzeas empantanadas como lagunas Pontinas incontáveis. Traça-se um quadro nosológico arrepiador e trágico, num imaginoso fabular de agruras; e, dia a dia, a natureza caluniada pelo homem vai aparecendo naquelas bandas, ante as imaginações iludidas, como se lá se demarcasse a paragem clássica da miséria e da morte…

*

O exagero é palmar. O Acre, ou, em geral, as planuras amazônicas cindidas a meio pelo longo sulco do Purus, têm talvez a letalidade vulgaríssima em todos os lugares recém-abertos ao povoamento. Mas consideravelmente reduzida.

Demonstra-no-lo um ligeiro confronto.

As “Escolas de Medicina Colonial” da Inglaterra e da França, revelam-nos, pelos simples títulos, os resguardos com que se rodeia sempre o transplante dos povos para os novos habitats. Há esta linha de nobreza no moderno imperialismo expansionista capaz de absolver-lhe os máximos atentados: os seus brilhantes generais transmudam-se em batedores anônimos dos médicos e dos engenheiros; as maiores batalhas fazem-se-lhe simples reconhecimento da campanha ulterior, contra o clima; e o domínio das raças incompetentes é o começo da redenção dos territórios, num giro magnífico que do Tonquim à Índia, ao Egito, à Tunísia, ao Sudão, à Ilha de Cuba, e às Filipinas, vai generalizando em todos os meridianos a empresa maravilhosa do saneamento da terra.

Da terra e do homem. A tarefa é dúplice. Aos conquistadores tranquilos não lhes basta o perquirir as causas meteorológicas ou telúricas das moléstias imanentes aos trechos recém-conquistados, na escala indefinida que vai das anemias estivais às febres polimorfas. Resta-lhes o encargo maior de justapor os novos organismos aos novos meios, corrigindo-lhes os temperamentos, destruindo-lhes velhos hábitos incompatíveis, ou criando-lhes outros até se construir, por um processo a um tempo compensador e estimulante, o indivíduo inteiramente aclimado, tão outro por vezes nos seus caracteres físicos e psíquicos que é, verdadeiramente, um indígena artificial transfigurado pela higiene. Para isto o colono, ou o emigrante, torna-se em toda a parte um pupilo do Estado. Todos os seus atos, desde o dia da partida, prefixo nas estações mais convenientes, aos últimos pormenores de alimentação, ou de vestir, predeterminam-se em regulamentos rigorosos. Dentro dos lineamentos largos das características fundamentais do clima quente para onde ele se desloca, urde-se a trama de uma higiene individual, onde se preveem todas as necessidades, todos os acidentes e até os perigos da instabilidade orgânica inevitável à fase fisiológica da adaptação a um meio cósmico, cujo influxo deprimente sobre o europeu vai da musculatura, que se desfibra, à própria fortaleza de espírito, que se deprime. Assim as medidas profiláticas, que começam inspirando-se no estudo dos fatores físicos acabam, não raro, prolongando-se em belíssimo código de moral demonstrada. De permeio com os preceitos vulgares para o reagir contra a temperatura alta, e a umidade excessiva que lhe abatem a tensão arterial e a atividade, lhe trancam as válvulas de segurança dos poros e lhe fatigam o coração e os nervos, criando-lhe, ao cabo, a iminência mórbida para os males que se desdobram do impaludismo que lhe solapa a vida, às dermatoses que lhe devastam a pele — despontam, mais eficazes e decisivos, os que o aparelham para reagir aos desânimos, à melancolia da existência monótona e primitiva; às amarguras crescentes da saudade; à irritabilidade provinda dos ares intensamente eletrizados e refulgentes; ao isolamento — e, sobretudo, ao quebrantar-se da vontade numa decadência espiritual subitânea e profunda, que se afigura a moléstia única de tais paragens, de onde as demais se derivam como exclusivos sintomas.

Abra-se qualquer regulamento de higiene colonial. Ressaltam à mais breve leitura os esforços incomparáveis das modernas missões e o seu apostolado complexo que, ao revés das antigas, não visam arrebatar para a civilização a barbaria transfigurada, senão transplantar, integralmente, a própria civilização para o seio adverso e rude dos territórios bárbaros.

Mas nessas páginas, o que por vezes nos maravilha, mais do que os prodígios da previdência e do saber, desenvolvidos para afeiçoar o forasteiro ao meio, é o curso sobremaneira lento, senão o malogro dos mais pertinazes esforços.

A França na Indochina, de clima quase temperado, despendeu quinze anos de trabalhos contínuos para que sobrestivesse a mortalidade; e, obedecendo aos pareceres dos seus melhores cientistas, renunciou, depois de longas tentativas, ao povoamento sistemático da África equatorial. O mesmo sucede no geral das colônias inglesas, alemãs ou belgas. Baste-nos notar que a estadia regulamentar dos seus agentes oficiais tem o período máximo de três anos. A volta aos lares nativos é uma medida de segurança indispensável a restaurar-lhes os organismos combalidos. Deste modo, a despeito de tão grandes sacrifícios e dispêndios, e dos prodígios de engenharia sanitária que transformam a rudeza topográfica dos lugares novos, formando-se uma verdadeira geografia artística, o que neles se forma, por fim, são umas sociedades precárias de perpétuos convalescentes jungidos a dietas inflexíveis e vivendo através das fórmulas inaturáveis dos receituários complexos.

Ora, comparando-se estas colonizações adstritas às cláusulas de rigorosos estatutos — e de efeitos tão escassos — com o povoamento tumultuário, com a colonização à gandaia do Acre — de resultados surpreendentes — certo não se faz mister registrar um só elemento para o asserto de que o regime da região malsinada não é apenas sobradamente superior ao da maioria dos trechos recém-abertos à expansão colonizadora, senão também ao da grande maioria dos países normalmente habitados.

De fato — à parte o favorável deslocamento paralelo ao equador, demandando as mesmas latitudes — não se conhece na História exemplo mais golpeante de emigração tão anárquica, tão precipitada e tão violadora dos mais vulgares preceitos de aclimamento, quanto o da que desde 1879 até hoje atirou, em sucessivas levas, as populações sertanejas do território entre a Paraíba e o Ceará, para aquele recanto da Amazônia. Acompanhando-a, mesmo de relance, põe-se de manifesto que lhe faltou desde o princípio, não só a marcha lenta e progressiva das migrações seguras, como os mais ordinários resguardos administrativos.

O povoamento do Acre é um caso histórico inteiramente fortuito, fora da diretriz do nosso progresso.

Tem um reverso tormentoso que ninguém ignora: as secas periódicas dos nossos sertões do Norte, ocasionando o êxodo em massa das multidões flageladas. Não o determinou uma crise de crescimento, ou excesso de vida desbordante, capaz de reanimar outras paragens, dilatando-se em itinerários que são o diagrama visível da marcha triunfante das raças; mas a escassez da vida e a derrota completa ante as calamidades naturais. As suas linhas baralham-se nos traçados revoltos de uma fuga. Agravou-o sempre uma seleção natural invertida: todos os fracos, todos os inúteis, todos os doentes e todos os sacrificados expedidos a esmo, como o rebotalho das gentes, para o deserto. Quando as grandes secas de 1879-1880, 1889-1890, 1900-1901 flamejavam sobre os sertões adustos, e as cidades do litoral se enchiam em poucas semanas de uma população adventícia de famintos assombrosos, devorados das febres e das bexigas — a preocupação exclusiva dos poderes públicos consistia no libertá-las quanto antes daquelas invasões de bárbaros moribundos que infestavam o Brasil. Abarrotavam-se, às carreiras, os vapores, com aqueles fardos agitantes consignados à morte. Mandavam-nos para a Amazônia — vastíssima, despovoada, quase ignota — o que equivalia a expatriá-los dentro da própria pátria. A multidão martirizada, perdidos todos os direitos, rotos os laços de família, que se fracionava no tumulto dos embarques acelerados, partia para aquelas bandas levando uma carta de prego para o desconhecido; e ia, com os seus famintos, os seus febrentos e os seus variolosos, em condições de malignar e corromper as localidades mais salubres do mundo. Mas feita a tarefa expurgatória, não se curava mais dela. Cessava a intervenção governamental. Nunca, até aos nossos dias, a acompanhou um só agente oficial, ou um médico. Os banidos levavam a missão dolorosíssima e única de desaparecerem…

E não desapareceram. Ao contrário, em menos de trinta anos, o Estado que era uma vaga expressão geográfica, um deserto empantanado, a estirar-se, sem lindes, para sudoeste, definiu-se de chofre, avantajando-se aos primeiros pontos do nosso desenvolvimento econômico.

A sua capital — uma cidade de dez anos sobre uma tapera de dois séculos — transformou-se na metrópole da maior navegação fluvial da América do Sul. E naquele extremo sudoeste amazônico, quase misterioso, onde um homem admirável, William Chandless, penetrara 3.200 quilômetros sem lhe encontrar o fim — cem mil sertanejos, ou cem mil ressuscitados, apareciam inesperadamente e repatriavam-se de um modo original e heroico: dilatando a pátria até aos terrenos novos que tinham desvendado.

Abram-se os últimos relatórios das prefeituras do Acre. Nas suas páginas maravilha-nos mais do que as transformações sem par que ali se verificam, o absoluto abandono e o completo relaxo com que ainda se efetua o seu povoamento. Hoje, como há trinta anos, mesmo fora das aperturas e dos tumultos das secas, os imigrantes avançam sem o mínimo resguardo, ou assistência oficial.

No entanto, as populações transplantadas se fixam, vinculadas ao solo; o progresso demográfico é surpreendente — e das cabeceiras do Juruá à confluência do Abunã alonga-se, cada vez mais procurada, a terra da promissão do Norte do Brasil.

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O paralelo é expressivo. Não se compreende a reputação de insalubridade de um tal clima. Evidentemente o que se realizou e se realiza ainda, embora em menor escala no Acre, foi a “seleção telúrica”, de que nos fala Kirchhoff: uma sorte de magistratura natural, ou revista severa exercida pela natureza nos indivíduos que a procuram, para só conceder o direito da existência aos que se lhe afeiçoam. Mas o processo é geral.

Em todas as latitudes foi sempre gravíssima nos seus primórdios a afinidade eletiva entre a terra e o homem. salvam-se os que melhor balanceiam os fatores do clima e os atributos pessoais. O aclimado surge de um binário de forças físicas e morais que vão, de um lado, dos elementos mais sensíveis, térmicos ou higrométricos, ou barométricos, às mais subjetivas impressões oriundas dos aspectos da paisagem; e de outro, da resistência vital da célula ou do tonus muscular, às energias mais complexas e refinadas do caráter. Durante os primeiros tempos, antes que a transmissão hereditária das qualidades de resistência, adquiridas, garanta a integridade individual com a própria adaptação da raça, a letalidade inevitável, e até necessária, apenas denuncia os efeitos de um processo seletivo. Toda a aclimação é desse modo um plebiscito permanente em que o estrangeiro se elege para a vida. Nos trópicos, é natural que o escrutínio biológico tenha um caráter gravíssimo.

Não há fraudes que lhe minorem as exigências. Caem-lhe sob o exame incorruptível, por igual, — o tuberculoso inapto à maior atividade respiratória nos ares adurentes, pobres de oxigênio, e o lascivo desmandado; o cardíaco sucumbido pela queda da tensão arterial, e o alcoólico candidato contumaz a todas as endemias; o infático colhido de pronto pela anemia e o glutão; o noctívago desfibrado nas vigílias, ou o indolente estagnado nas sestas enervantes; e o colérico, o neurastênico de nervos a vibrarem nos ares eletrizados, descompassadamente, sob o influxo misterioso dos firmamentos deslumbrantes, até aos paroxismos da demência tropical que o fulmina, de pancada, como uma espécie de insolação do espírito.

A cada deslize fisiológico ou moral antepõe-se o corretivo da reação física. E chama-se insalubridade o que é um apuramento, a eliminação generalizada dos incompetentes. Ao cabo verifica-se algumas vezes que não é o clima que é mau; é o homem.

Foi o que sucedeu em grande parte no Acre. As turmas povoadoras que para lá seguiram, sem o exame prévio dos que as formavam e nas mais deploráveis condições de transporte, deparavam, além de tudo isto, com um estado social que ainda mais lhes engravescia a instabilidade e a fraqueza.

Aguardava-as e ainda as aguarda, bem que numa escala menor, a mais imperfeita organização do trabalho que ainda engenhou o egoísmo humano.

Repitamos. O sertanejo emigrante realiza, ali, uma anomalia sobre a qual nunca é demasiado insistir: é o homem que trabalha para escravizar-se.

Enquanto o colono italiano se desloca de Gênova à mais remota fazenda de S. Paulo, paternalmente assistido pelos nossos poderes públicos, o cearense efetua, à sua custa e de todo em todo desamparado, uma viagem mais difícil, em que os adiantamentos feitos pelos contratadores insaciáveis, inçados de parcelas fantásticas e de preços inauditos, o transformam as mais das vezes em devedor para sempre insolvente.

A sua atividade, desde o primeiro golpe de machadinha, constringe-se para logo num círculo vicioso inaturável: o debater-se exaustivo para saldar uma dívida que se avoluma, ameaçadoramente, acompanhando-lhe os esforços e as fadigas para saldá-la.

E vê-se completamente só na faina dolorosa. A exploração da seringa, neste ponto pior que a do caucho, impõe o isolamento. Há um laivo siberiano naquele trabalho. Dostoiévski sombrearia as suas páginas mais lúgubres com esta tortura: a do homem constrangido a calcar durante a vida inteira a mesma “estrada”, de que ele é o único transeunte, trilha obscurecida, estreitíssima e circulante, que o leva, intermitentemente e desesperadamente, ao mesmo ponto de partida. Nesta empresa de Sísifo, a rolar em vez de um bloco o seu próprio corpo — partindo, chegando e partindo — nas voltas constritoras de um círculo demoníaco, no seu eterno giro de encarcerado numa prisão sem muros, agravada por um ofício rudimentar que ele aprende em uma hora para exercê-lo toda a vida, automaticamente, por simples movimentos reflexos — se não o enrija uma sólida estrutura moral, vão-se-lhe, com a inteligência atrofiada, todas as esperanças, e as ilusões ingênuas, e a tonificante alacridade que o arrebataram àquele lance, à aventura, em busca da fortuna.

Paralelamente, a decadência orgânica.

A alimentação, que é a base mais firme da higiene tropical, não lha fornece, durante largos anos, a mais rudimentar cultura. Constitui-se, ao revés de todos os preceitos, adstrita aos fornecimentos escassos de todas as conservas suspeitas e nocivas, com o derivativo aleatório das caçadas.

Sobretudo isto, o abandono. O seringueiro é, obrigatoriamente, profissionalmente, um solitário.

Mesmo no Acre propriamente dito, onde a densidade maior das árvores de borracha permite a abertura de 16 “estradas” numa légua quadrada, toda esta área capaz de sustentar, de acordo com a unidade agrícola corrente, cinquenta famílias de pequenos lavradores, requer a atividade de oito homens apenas, que lá se espalham e raramente se vêem. Calcule-se um seringal médio, de duzentas “estradas”: tem cerca de 15 léguas quadradas; e este latifúndio, que se povoaria à larga com 3.000 habitantes ativos, comporta apenas a população invisível de 100 trabalhadores, exageradamente dispersos.

É a conservação sistemática do deserto, e a prisão celular do homem na amplitude desafogada da terra.

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Ante estes lineamentos de um quadro social tão anômalo, não é apenas opinável a letalidade do Acre. O que ressalta, irreprimível, é o conceito de uma salubridade capaz de garantir tantas existências submetidas a tão imperfeito regime. Acredita-se até que as características tropicais meramente teóricas, se reduzem aos paralelos de baixas latitudes, de 8º a 11º, que interferem a região; e aquilatando-se a influência moderadora sem dúvida exercida pela estupenda massa de florestas, que a circulam e a invadem, chega-se a concluir que ulteriores observações meteorológicas, mal iniciadas agora, talvez lhe apaguem nos mapas a isoterma de 25 graus que a esmo lhe traçaram.

Porque a despeito do incorreto e do vicioso do povoamento e da vida, a sociedade recém-chegada aclima-se e progride.

Ao mais incurioso viajante que perlustre o Purus não escapa a transformação lenta e contínua.

O primitivo explorador vai, afinal, ajustando-se ao solo, sobre o qual pisou durante tanto tempo indiferente. As suas barracas desafogam-se nas derrubadas; e já nas praias, que as vazantes desvendam, já nos firmes, a cavaleiro das cheias, se delineiam as primeiras áreas de cultura. Os tristonhos barracões cobertos de folhas de ubuçu, transmudam-se em vivendas regulares, ou amplos sobrados de pedra e cal. Sebastopol, Canacori, S. Luís de Cassianã, Itatuba, Realeza, e dezenas de outros sítios do baixo-Purus; Liberdade e Concórdia, nos mais longínquos trechos, com as suas casas numerosas, que se arruam às vezes ao lado de pequenas igrejas, ampliam-se em verdadeiras vilas. São a imagem material do domínio e da posse definitiva.

A evolução é, deste modo, tangível.

Delatam-na até os nomes originais, extravagantes alguns, mas eloquentes todos, das primitivas e das recentes fundações. Na terra sem história os primeiros fatos escrevem-se, esparsos e desunidos, nas denominações dos sítios. De um lado está a fase inicial e tormentosa da adaptação, evocando tristezas, martírios, até gritos de desalento ou de socorro; e o viajante lê nas grandes tabuletas suspensas às paredes das casas, de chapa para o rio: Valha-nos Deus, Saudades, S. João da Miséria, Escondido, Inferno… De outro um forte renascimento de esperanças e a jovialidade desbordante das gentes redimidas: Bom Princípio, Novo Encanto, Triunfo, Quero ver!, Liberdade, Concórdia, Paraíso

À medida que se sobe o rio a renascença se acentua. Passada a confluência do Acre vai-se, em vários trechos, entre as estâncias que se defrontam ou se ligam às margens, como se se percorresse cultíssima paragem há muito descoberta. Nada mais do tosco e do brutesco dos primitivos abarracamentos.

Em Catiana, em Macapá, como nas demais a montante, até à última, Sobral, com a minúscula plantação de cafeeiros que lhe bastam ao consumo, nota-se em tudo, da pequena cultura que se generaliza, aos pomares bem cuidados, o esforço carinhoso do povoador que aformoseia a terra para não mais a abandonar.

E os homens são admiráveis.

Vimo-los de perto; conversamo-los.

Guardamos-lhes os nomes e os apelidos bizarros — do opulento Caboclo-Real, da Cachoeira, ao gárrulo Cai N’água das cercanias do Chandless; do velho João Amarelo, que fundou Catai, e leva ainda, sem titubear, pelos torcicolos das “estradas”, os seus setenta anos trabalhosos, ao destemeroso Antônio Dourado, da Terra Alta, impecável atirador de rifle, cujos lances de ousadia nas arrancadas de 1903, com os caucheros, são uma página vibrante de bravura.

Considerando-os, ou revendo-lhes a integridade orgânica a ressaltar-lhes das musculaturas inteiriças, ou a beleza moral das almas varonis que derrotaram o deserto — e recordando as circunstâncias lastimáveis, que os rodearam nos primeiros dias do povoamento ou que ainda os rodeiam, porventura minoradas — não se lhes explicam as existências vigorosas sob regime climatológico tão maligno e bruto como o que se fantasiou no Acre.

Não vinga, ademais, o argumento de que o sertanejo nortista, ou mais incisivamente, o jagunço, dotado da abstinência pastoral e guerreira do árabe, se tenha apercebido para o novo habitat, sob a disciplina inexorável das secas, além de haver-se deslocado seguindo mais ou menos os paralelos do torrão nativo.

O Purus e o Juruá abriram-se há muito à entrada dos mais díspares forasteiros — do sírio, que chega de Beirute, e vai pouco a pouco suplantando o português no comércio do “regatão”; ao italiano aventuroso e artista que lhes bate as margens, longos meses, com a sua máquina fotográfica a colecionar os mais típicos rostos de silvícolas e aspectos bravios de paisagens; ao saxônio fleumático, trocando as suas brumas pelos esplendores dos ares equatoriais. E, na grande maioria, lá vivem todos; agitam-se, prosperam e acabam longevos.

Registre-se este caso. Em 1872, Barrington Brown e William Lidstone percorreram o Baixo-Purus, até Huitanaã, embarcados na lancha Guajará, sob o comando do Capitão Höepfner, a german speaking both English and Portuguese in addition, consoante explicam os dois viajantes no interessante livro [ 1 ] que escreveram.

Há trinta e cinco anos…

E o Capitão Höepfner lá está, eterno comandante de lancha, a mourejar sem descanso sobre aquelas águas malditas, onde fervilham os piuns sugadores, os carapanãs emissários das febres, e se espalmam, derivando à feição da correnteza insensível, os mururés boiantes, de flores violáceas recordando as grinaldas tristonhas dos enterros. Mas não agourentaram o germano.

Vimo-lo, em fins de 1905, na confluência do Acre. É um velho vivaz e prestadio, diligente e ativo, de rosto aberto e rosado, emoldurado de cabelos inteiramente brancos. Se aparecesse em Berlim, mal lhe descobririam na pele, de leve amorenada, o sombrio estigma dos trópicos.

Multiplicam-se os casos deste teor, acordes todos na extinção de uma lenda.

Resta, talvez, à teimosia no propagá-la, um derradeiro argumento: aqueles caboclos rijos e esse saxônico excepcional não são efeitos do meio; surgem a despeito do meio; triunfam num final de luta, em que sucumbiram, em maior número, os que se não aparelhavam dos mesmos requisitos de robustez, energia e abstinência.

Neste caso atiremos de lado, de uma vez, um estéril sentimentalismo e reconheçamos naquele clima um função superior. Ante as circunstâncias nocivas que originaram e impulsionaram o povoamento do Acre, largos anos aberto à intrusão de todas as moléstias e de todos os vícios favorecidos pela indiferença dos poderes públicos, ele exercitou uma fiscalização incorruptível, libertando aquele território de calamidades e desmandos, que seriam além de toda a proporção, muito maiores do que os que ainda hoje lá se observam.

Policiou, saneou, moralizou. Elegeu e elege para a vida os mais dignos. Eliminou e elimina os incapazes, pela fuga ou pela morte.

E é por certo um clima admirável o que prepara as paragens novas para os fortes, para os perseverantes e para os bons.

[ 1 ] Fifteen Thousand Miles in the Amazon and its Tributaries.
CUNHA, Euclides da. Um clima caluniado. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. À margem da história. Parte I, Terra sem história (Amazônia). São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/a-margem-da-historia/um-clima-caluniado. Acesso em: [data]. Publicado originalmente no Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 20 fev. 1907.