Martín García

I

O Prata é uma ilusão geográfica que a pouco e pouco se apaga. Mais claramente: um estuário a extinguir-se nas derradeiras fases da evolução de um rio.

Desde 1832, numa das escalas da viagem clássica da Beagle, Charles Darwin, embora atraído por outros estudos, definiu-lhe aquele caráter transitório. Calculando a verdadeira idade dos restos fósseis de uma fauna extinta, conservados nas argilas calcárias dos terrenos pampianos, descerrara para logo a imagem retrospectiva de um grande braço de mar que em épocas remotíssimas cobria inteiramente a atual província de Entre-Ríos. Dez anos depois, d’Orbigny confirmou-lhe o asserto. Ampliou-lho. Distendeu o velho mare clausum até ao médio Paraná. E quase em nossos dias, Herbert Smith, enfeixando um sem-número de investigações esparsas, delimitou a moldura do antiquíssimo quadro de uma hidrografia morta: a expansão oceânica estirando-se pelas áreas, onde hoje se desatam as terras ondulantes dos pampas, dilatava-se até além das extremaduras setentrionais de Corrientes; e nela afluíam, totalmente distintos, com as suas embocaduras separadas de centenares de km, o Paraguai, o Paraná e o Uruguai.

Sobreveio então um longo período de reconstrução prodigiosa. À maneira do Nilo, que carregou montanhas para edificar as planuras estendidas a jusante de Tebas, os três rios, em cujas águas barrentas, de lamas e detritos, passavam os planaltos diluídos do Brasil central e do Oriente boliviano — começaram pelos séculos em fora a aterrar a desmedida bacia: precintando-a das primeiras faixas arenosas, a prefigurarem aparelhos-litorais; dos primeiros baixios, aflorando ilhados, nos baixa-mares, à mercê dos fluxos e dos refluxos; das primeiras dunas inconsistentes e friáveis — marejadas de saibro, a amontoarem-se, a espraiarem-se e a delirem-se à feição dos ventos; até se formarem as primeiras ilhas, multiplicando-se em arquipélagos, travando-se em istmos, ou articulando-se em penínsulas presas aos pontais arremessados das costas — no vagaroso processo da constituição dos territórios, a princípio largamente reticulados no cruzamento dos paranás numerosíssimos, ou salteadamente afundando em depressões de que são hoje testemunhas as lagoas salgadas de Córdoba e La Rioja — e, subsecutivamente, mais íntegros e unidos, de modo que, em remate, todo aquele espaço fosse ocupado por uma planície fluvial, de nível, encobrindo a superfície perturbada dos terrenos mais antigos onde assentava o mar.

Ora, este ciclo não se ultimou ainda. O mesmo naturalista adverte-nos que o Paraná e o Uruguai porfiam em aterrar o último trecho da bacia evanescente, “de sorte que os restos da fauna moderna serão, por sua vez, encarneirados nas novas planuras que se formarão, exatamente como as mylodons e megatherios se amortalharam outrora nos lençóis de lama de que se formaram as pampas argentinas.” [ 1 ]

A dedução é segura. O crescimento da terra continuará, ali, pelos tempos adiante, adscrito ao mesmo processo natural que presidiu às formações pampianas, até se entupir completamente a célebre “garganta” do organismo argentino, consoante a curiosa hipérbole ultimamente aventurada entre as fórmulas da política internacional para exprimir, simbolicamente, a entalhadura que se escancela na costa, entre Montevidéu e Punta de las Piedras.

Não há em verdade impedir-se-lhe, em futuro remotíssimo, aquele engasgamento.

Mas os profissionais argentinos exageram-no. A sua marcha, de fato imperceptível, assume-lhes aspectos estranhos de um movimento assaltante da terra, recordando uma volta de toda a geologia aos imaginosos cataclismos de Cuvier. Cotejam as velhas cartas do estuário no século XVI; confrontam-nas com as de agora; e registram-lhes, apreensivos, as mudanças. Revendo-as em 1902, Elmer Corthell, consultor técnico do Ministério de Obras Públicas, observou alterações profundas, e não as encobriu. [ 2 ]

A seu parecer, o delta platino, extremado hoje em Punta Morón, avança incessantemente à maneira dos do Ganjes e do Danúbio. Outros veem na superfície líquida que o defronta desde as desembocaduras do Paraná e do Uruguai até à barra limitativa do Atlântico, expressivos atestados de um aterro em larga escala: multiplicam-se os baixios; cegam-se, lento e lento, os canais, invadidos das areias; acentuam-se a mais e mais os espaldões das “barras”; e avolumam-se os bancos, nomeando-se sobretudo o que se alonga da Boca de Santa Lucía a Buenos Aires, atravessando a meio o estuário, e prefigurando um outro delta, lateral, capaz de acelerar consideravelmente aquela obstrução enorme.

Por outro lado, em toda a cercadura da margem meridional, novas terras emergem, enxundiando, numa sublevação contínua nímio prejudicial ao porto de Buenos Aires. E as plantas hidrográficas ou estudos de várias comissões nomeadas para elucidarem esta circunstância alarmante, convergem, consoantes, na afirmativa do levantamento paulatino do litoral porteño, onde se adunam de preferência os sedimentos aluviais. A terra cresce. Rasam-se as águas. Por fim se desviam rumo feito às ribas da Banda Oriental, de formação mais antiga e firme, onde, como corolário deste desequilíbrio do regímen fluvial, cada vez mais se reprofundam os canais afeiçoando-se à grande navegação.

É, como se vê, e eles julgam demonstrar, uma fatalidade física, tangível, apavorante, crescente.

Daí os trabalhos notáveis já feitos a muito custar pela República Argentina, e os que se planeiam numa escala indefinida: as dragagens sistemáticas acarretando serviços de conservação dispendiosíssimos; os balizamentos longos, dos canais, desenhando-se, a resplandecerem, à superfície das águas nas linhas pontuadas das boias iluminativas; as semáforas flutuantes para assegurarem roteiros dúbios e penosos; as docas monumentais e jetées armadas à captura de uma profundidade escassa, de 23 pés, no máximo, aquém do calado mínimo dos menores transatlânticos; os projetos arrojados de canais laterais, a exemplo do que ligará La Plata ao ancoradouro de Buenos Aires, paliando-lhe apenas os defeitos irremediáveis; e a imponente construção de portos artificiais, como o de Samborombón, vindoura maravilha entre os prodígios da hidráulica contemporânea…

Recordam-nos o ressurgir da engenharia titânica dos holandeses. Mas com um objetivo oposto: para afastar a terra e atrair o mar.

Realmente, entre as linhas secas, e os desenhos, e as páginas crespas de algarismos dos projetos, dos pareceres, dos diagramas e dos relatórios, que conjeturas tão sombrias agoirentam, se poderiam inserir as linhas comovidas de uma frase de Domingo Sarmiento escrita há cinquenta anos: “El río de la Plata se embanca rápidamente em toda su extensión y en pocos siglos más Buenos Ayres dejará de ser puerto…

Não maravilha que há pouco tempo o engenheiro Barabino, Diretor do Departamento de Obras Públicas de la Nación, ao repelir o projeto de um canal que a seu parecer redundava no prejuízo de favorecer aquele deslocamento das massas líquidas para o litoral uruguaiano, garantisse sem vacilar, que ele engravesceria a situação delicadíssima de Buenos Aires, predestinada a isolar-se em um internamento, que a despojará das vantagens de sua posição fluvial; e exemplificasse citando o caso acontecido às vistas da geração atual, de se haverem retirado as águas que formavam os antigos banhados de Palermo.

Aí se trata, evidentemente, de uma circunstância local impropriada a generalizar-se, ou a constituir-se exemplo dominante. Tão certo é que não será em poucos, senão ao cabo de muitos séculos que desfecharão estas transfigurações vagarosas da terra — e se reduzirá o espraiado latino a um grande e verdadeiro rio, prolongando o Uruguai, de que o Paraná se tornará tributário, e ajustando-se, definitivamente, à Banda Oriental. Para isto, mais do que os sedimentos trazidos pelos rios, concorrerá a lei hidrográfica de Baer, ou seja, o próprio fatalismo astronômico da rotação terrestre, impondo aos rios orientados como o Prata, no hemisfério sul, a torção obrigatória para leste, já a se denunciar, hoje, graficamente na complexidade das costas ribeirinhas do Uruguai.

Entretanto, a importância histórica que por ventura se ligue a um fato, de marcha muitas vezes secular, atenua-se consideravelmente, ou desaparece na sua própria distensão indefinida, no tempo.

Não acontece o mesmo com as suas fases atuais, intermédias. Tornaram-no de algum modo preponderante na política platina. O fácies imanente ao estuário, no período em que o encontrou a História, figurava-se com efeito, de par com tantos inconvenientes, vantajosíssimo sob muitos aspectos à nação que lhe senhoreasse as águas, sobretudo atendendo-se que a sua condição semifluvial faria que se não pudesse limitar a sua jurisdição interior, privativa, com os princípios gerais, de direito, que regem os mares livres.

Ao mesmo tempo, uma navegação tateante, a colear pelos canais, tornejando baixios, submetida ao comando adventícios dos práticos, criaria, facilmente, às mais formidáveis esquadras, situações de fraqueza irremediáveis — e o Prata, apesar de desmarcada porta larga de 50 léguas, que escancara ao tráfego fluvial de quase um quarto da América do Sul, poderia ser trancado de golpe, no sobrevir de qualquer conjuntura que exigisse esta medida, constituindo-se extraordinário elemento de defesa. No seu âmbito, tão ao parecer desimpedido e franco, a grande navegação até a Colastiné, onde se liga à rede ferroviária de todo o Norte argentino, depois de um trajeto de 470 km a partir da cabeceira do delta, só se efetua por um canal único, partindo de Buenos Aires para leste e depois ao norte a buscar as confluências do Paraná-Guaçu e do Uruguai. Assim, na ilusória fartura de suas águas, se risca aquele rio estreitíssimo que ninguém vê, serpeante na profundura, escondido debaixo da carena dos barcos, e, por vezes, divagante ou vário.

Eram intuitivas as vantagens ao país que o possuísse, indenizando-se sobradamente dos dispêndios de uma conservação dificílima, com os direitos e recursos de uma fiscalização soberana. O simples apagamento das bóias iluminativas seria o cerrarem-se de improviso todas as passagens.

Além disto, rematando dispositivos infavoráveis a derivarem de elementos tão prejudiciais, aquela estreitíssima trilha batimétrica antes de atingir as costas do Uruguai, e a oito km delas, evita-as vivamente. Inflete para o norte; e depois de um curso de dezesseis milhas, ladeia os flancos de uma ilha, que comanda de alto e de perto, inteiramente, a passagem. Deixando-a, o canal alcança logo adiante o ponto onde se forqueiam o Paraná e o Uruguai.

A importância excepcional da Ilha de Martín García ressalta, evidentemente, das condições naturais daquela passagem a prender-se-lhe à ilharga, e do local, tornando-a de fato a chave de todas as entradas para o interior por intermédio do Prata.

Revejam-se os inumeráveis projetos que de 1876 a 1899 se elaboraram e discutiram, atinentes a melhorar a travessia do estuário, sujeita sempre à preliminar de efetuar-se, de extremo a extremo, em águas argentinas, de modo que nenhum outro país compartisse e jurisdição sobre ela; e ver-se-á como aquele nome ressoa monotonamente em todos os pareceres. Os mil e poucos metros de paso de Martín García eram diretriz intorcível, fatal, dos mais discordantes roteiros — desenhando-se como trecho preestabelecido e imutável, ante o qual eram preteríveis quaisquer outros, embora dotados de melhores requisitos de navegabilidade.

É que a formação tópica do Prata, originando aquela única e exclusiva linha de penetração, e bipartindo-a nas que conduzem aos seus dois grandes rios formadores, precisamente depois da passagem obrigatória, ajustada aos flancos ocidentais de Martín García, fora de toda influência estranha, revestira naturalmente a ilha de um valor que certo não se a rodeassem águas mais praticáveis e profundas.

Compreendem-se então todas as controvérsias ou convênios apaixonadamente debatidos que no correr de um século se travaram à roda de um ilhéu, de si desvalioso, e a que Díaz Solís, na falta de melhor nome, dera o seu despenseiro de bordo, sem imaginar que o tornaria imortal.

*

Sem dúvida a fisionomia histórica de Martín García é uma prova do quanto importam, por vezes, às mais complicadas relações políticas, os fatos físicos mais simples. Do ponto de vista argentino ela figura-se uma dádiva da própria natureza. Pelo menos os “rios trabalhadores” que construíram, conforme os cálculos exagerados de Corthell, 1.554.000 km, dos melhores terrenos agrícolas da República — e que hoje estão perlongando-lhe desastrosamente para o levante o domínio territorial — têm naquela ponta de rocha o último marco de uma terefa milenária; desde que, evidentemente, depois dela, para leste, a correnteza forte do Uruguai, volvendo entre as barrancas firmes de formação mais antiga e estável, sobrestará de vez o avançamento das aluviões e aterros. Além disto, enquanto estes malsinam toda a economia do país — rasando-lhe portos, entulhando-lhe enseadas, abarreirando-lhe os caminhos marítimos para a sua capital, ameaçando interná-la, sequestrada dos mares, num círculo isolante de sedimentos acumulados — foi ainda à sua ilharga, a correr providencialmente no lado argentino, fora do domínio e das vistas da nação vizinha, permitindo-lhe jurisdição privativa, que se lhe abriu o desafogo de uma passagem praticável e segura para os recessos da terra.

Então se aclaram numerosos aspectos dessas velhas questões platinas, onde os acontecimentos algumas vezes refletem, incoerentes e discordantes, a instabilidade e as vicissitudes do ciclo evolutivo do Prata — como se as linhas mais expressivas da história política sul-americana traduzissem ou copiassem aquela página admirável da História Natural.

Mostra-no-lo o livro de Agustín de Vedia, onde sobressai, na primeira parte, a apologia mais apaixonada e viva que ainda se fez da posse argentina sobre a ilha requestada. Lendo-o, depois de La Isla de Martín García, de Setembrino Pereda, colhe-se em flagrante a inconstância singular de muitos sucessos sujeitos na mais completa passividade à molduragem dos mais opostos juízos, à feição do subjetivismo dos que os discutem.

As mesmas coisas e os mesmos homens oscilam, bifrontes, como símbolos invariáveis, a que se trocam apenas os sinais para passar-se das fórmulas uruguaias às fórmulas argentinas.

Fora longo reproduzi-los arrostando-lhes a inaturável monotonia. A tarefa viria a talho para demonstrar-se o quanto a História se mascara e dana com a intrusão ilógica dos casos nascidos esporadicamente das paixões ou das discrasias do momento — espécies singularíssimas de realidades inexistentes, coisas que de fato aconteceram e historicamente não existiram pelo próprio aparecerem fora da diretriz geral das ideias e intuitos verdadeiramente dominantes de uma época.

Mas isto fora escrever um livro apagado, paralelo às páginas fulgurantes do escritor platino. Então o caso original de Martín García despontaria com interessante destaque nessas margens indecisas da pequena história, urdida de meias verdades e meias mentiras, onde rebrilha a anedota, e esfarelam-se as esquírolas das conjeturas discordantes, e campeia a farfalha dos incidentes pessoais, e revela a peripécia inexpressiva, e domina o fortuito, e pontificam soberanamente os rubros exegetas de todos os preconceitos patrióticos. Pelo menos, demonstrar-se-ia que desde a sua gênese que ele vem malignado de todos os inconvenientes e exclusivismo de uma ideia fixa e irredutível, tão obsessora que suplantou por vezes, escandalosamente, no ânimo dos mais lúcidos estadistas, outros pensamentos e outras ideias incomparavelmente mais altas.

Vale a pena mostrá-lo, a correr embora.

Foi em 1827 que D. Pedro I, num de seus garbosos gestos de imperador romântico, abriu ruidosamente um debate, destinado a perturbar, intermitentemente, as grandes linhas retilíneas da diplomacia imperial.

Negociava-se no Rio de Janeiro, com o plenipotenciário argentino, García, o Tratado de 24 de maio daquele ano, quando o Imperador lançou, do próprio punho, na minuta de condições que deu ao Marquês de Queluz, nosso ministro dos Estrangeiros, a cláusula do art. 6º, estatuindo que “se entregasse ao Brasil a ilha de Martín García, de que o Império necessitava para melhor segurança de suas fronteiras e da sua tranquilidade”. [ 3 ]

Os torcicolos das maranhas diplomáticas, cortava-os, como se vê, a linha reta daquela decisão golpeante. E o Imperador podia vibrá-la. A situação das gentes platinas era desesperadora. O recontro, liricamente romanceado, de Ituzaingó, tivera os efeitos que devera ter — desvaliosos e inapreciáveis — próprios a uma batalha indecisa que não sombreia as nossas glórias militares.

Entretanto, aquele artigo foi para logo repelido pelo negociador argentino, embora o Presidente Rivadavia, impressionado ante o espetáculo das Províncias Unidas do Prata cindidas das discórdias civis, lhe insinuasse como elemento principal de seus esforços “e ponto da partida para tudo, a paz”.

A repulsa era compreensível. Dom Manoel J. García era a figura preeminente da diplomacia argentina, que ele representava, quase isolado, desde os tempos agitadíssimos das lutas da liberdade. Tinha uma cultura clássica excepcional, com o supletivo de conhecimento perfeito dos homens que o rodeavam. Assistira ao nascimento da pátria. Adestrara-se no governo desde 1821, como ministro: era o companheiro predileto de Rivadavia e êmulo de Julián Agüero. Além disto, a sua negociação tinha como objetivo expresso, à parte a paz anelada, a “devolução da Província Oriental à Argentina, ou a ereção dela em um estado separado, livre e independente…”; e fora em verdade lastimável que, ainda para propiciar o conseguimento de tão elevados intuitos, ele se submetesse a uma resolução, imposta de uma forma tão abertamente imperialista.

Repeliu-a. Reaviaram-se as negociações perturbadas; e concertaram-se por fim no Tratado abortício de 24 de maio de 1827.

Relendo-o, vê-se que venceu o precavido negociador, substituindo-se a cláusula alarmante pelo art. 4º daquele acordo, consignando apenas que a ilha seria “reposta no statu quo ante bellum, retirando-se dela as baterias e petrechos”.

Porém, ao mesmo tempo estonteia-nos uma surpresa; nota-se, com espanto, a violação integral da fórmula superior de suas instruções, e que as nobilitava: pelos art. 1º e 2º, a Província Cisplatina continuaria incorporada ao Império, renunciando as Províncias Unidas do Prata a todos os direitos sobre o território respectivo.

Veja-se o contraste. Martín García é um rebento granítico, de duas milhas de roda, mal apontoando nas águas, com uma altura escassa, cingida de recifes fervilhantes a recordarem a ruinaria e o desmantelo das costas uruguaias, de onde se desarticulou em épocas remotíssimas.

E por aquela partícula exígua do velho presídio da metrópole, o homem mais representativo da política internacional argentina trocava um país inteiro, esquecia uma nacionalidade nova e vivaz, traindo ao mesmo passo a causa mais elevada de sua missão. Comentando este caso de daltonismo político, observaríamos ainda que o convênio fracassou, salteando-o as rajadas patrióticas a irromperem do seio de todos os partidos em que se fraccionava a República, acarretando a queda da presidência Rivadavia: e que as mais ríspidas passavam, indiferentes, de alto, sobre o pecaminoso abandono do Uruguai, indo bater de preferência o plenipotenciário que consentira naquele tocar-se de leve na paragem intangível e sacratíssima.

Não se impressiona, contudo, A. de Vedia, com a antilogia. Cega-o a mesma fascinação. Encanta-o o romance histórico de Martín García. Acompanhando-o, qualquer leitor inexperto acaba convencendo-se que o domínio pleno de Buenos Aires, ali, se firmou como invariável preliminar de todas as negociações, e artigo implícito, sem número, de todos os tratados. O assunto, miudeado aos mínimos pormenores, refulge em páginas que seriam subscritas pelo mais fervoroso porteño; e em todas elas eriça-se aquela soberania plena, apenas limitada por uns frágeis princípios gerais de livre navegação dos rios; a resistir a todos os transes; a recalcitrar, irritantemente, em todos os debates; e a sobrancear, brilhantíssima, as mais violentas crises das guerras, que não raro se centralizaram em Martín García: desde fins de 1825, em que a ocupou a esquadra do vice-almirante brasileiro, Lobo, deixando-a voluntariamente para reforçar a praça da Colônia; até meados do século, quando a expugnaram e ocuparam, durante a intervenção estrangeira, os marinheiros franceses do Almirante Leblanc, emparceirados aos orientais de Fructuoso Rivera; ou mais tarde, durante a intervenção britânica, outra vez pelos orientais, ao mando do Coronel Garibaldi. É de ver-se então como se transfigura o significado real da conjuntura gravíssima, naquele período em que tremularam sobre os espaldões rasteiros dos pequenos fortes da ilha, as bandeiras da França e do Uruguai. No ensofregado afã de elidir o hiato a abrir-se numa posse, que se lhe faz mister seja sempre contínua, nunca discutida, nunca perturbada, para estabelecer que a usurpação também é um meio de adquirir, imprescritível sob a consagração do tempo, e mais necessário até entre os Estados soberanos que entre os indivíduos, o escritor – não lhe importando que aquela posse tenha sido negada, solenemente, pela própria Confederação Argentina, no Tratado de 7 de março de 1856, demazia-se às últimas temeridades da tese preconcebida. Invertem-se os fatos: põe-se a História pelo avesso; e todo afestoado das grinaldas ricas de um estilo exuberante, transfigura-se o fato desfavorável. Aproveita-se a circunstância de se ter refugiado ali entre os desvelos de franceses e orientais, o grande e infeliz general Lavalle, com os seus companheiros repelidos pela ditadura de Rosas, para firmar-se, curiosamente, a continuidade do direito.

A ilha faz-se então o território virtual da Argentina futura, transformando-se no mais seguro abrigo da sua liberdade ao ensaiar contra o tirano uma reação predestinada a agitar-se longo tempo inútil, sulcada intermitentemente pelos revides tremendos do ditador, até que as armas brasileiras se associassem àquela aspiração nobilíssima e desfechassem a vitória internacional de Monte Caseros.

Entretece-se-lhe a legenda heroica, a um tempo fulgurante e fugacíssima, em que tanto se aprazia a inteligência sonhadora de Juan Bautista Alberdi.

La isla tomaba para los argentinos contornos fantásticos en ese tiempo. Lavalle estaba allí, como un león encadenado, tratando de organizar el cuerpo de ejército que necesitaba para atacar Rosas en el centro de su poder. Allí se reunió su secretario y consejero don Félix Frías, quien debía acompañarle en toda su campaña, fiel en la vida y en la muerte. Allí se fueron incorporando antiguos compañeros de armas: Olavarría, Pueyrredón, Benavente, González, etc. Martín García recibió entonces el nombre de Isla de la Libertad. De allí debia salir la cruzada redentora, al mando del héroe de la emancipación americana, en quien todos los proscritos de la tirania cifraban sus esperanzas de salvación[ 4 ]

O estilo é quase bíblico, na simulcadência destes períodos breves. Compassa-o o reiterativo de um advérbio martelante a marcar o passo grave de um pensamento solene. Mas é por isso mesmo eloquente. Se a algum pensador vadio acudisse o intento de interpretar a odisseia das ilhas, numa longa derrota pelos séculos em fora, desde Ítaca a Santa Helena, ao chegar à boca do Prata bastar-lhe-ia traduzir, justalinearmente, as páginas mais gongóricas da literatura hispano-americana.

Por aqueles tempos o espírito maravilhoso de Alberdi doudejava em ditirambos sem rimas, contemplando-a: “¡Martín García! […] Apenas conocido de los marinos de los ríos, este nombre oscuro como tus rocas y tus aguas, representará en adelante una leyenda gloriosa, un monumento eterno de sublimes recuerdos…”

Ou, mais longe, arrebatado na visão dos sonhados dias da liberdade: “El navegante solitario no verá tus montes, ni tus rocas, como esas creaciones indiferentes al corazón. Tus aguas serán queridas y tu tierra respetada. ¡En ella se reunirán! dirá. Y esta palabra recordará una época entera… ¡Martín García, bendición sobre ti!”.

Por fim a sua fisionomia histórica ampliou-se numa utopia. Nos últimos tempos da ditadura Rosas todos os alentos da nacionalidade dessangrada pela Mazorca parecia concentrarem-se na fortaleza moral de um homem. Domingo Sarmiento sobressaía nas crises da sua terra despedindo os clarões de suas grandes esperanças, pressagos de um próximo amanhecer depois de uma noite nacional de vinte anos.

E entre os planos engenhados pela sua inteligência infatigável, idealizou aquela cidade maravilhosa que seria um dia capital dos Estados Unidos da América do Sul e sede fundamental, aduaneira, do majestoso Zollverein do Brasil, Uruguai, Paraguai e República Argentina. Porém, locando-a em Martín García, que ele percorrera e medira, muito a sério muito convencido, sem que o desinfluísse base tão exígua e ideal tão desconforme – o extraordinário escritor no que sobretudo atenuou foi naquela situação preexcelente, à forquilha dos dois grandes rios, com os dispositivos hidrográficos, que revimos, e tanto a aparelham para submeter ao critério argentino toda a navegação do Prata.

Não o disfarçou. É para ver-se-lhe o ingênuo entusiasmo:

Aquela islita que los Europeos ocupaban siempre sin darse cuenta por qué, es hoy moral y politicamente hablando, un Gibraltar, un capitolio, un mundo. Ahí está el nudo gordiano de la cuestión argentina. De ahí dependen los destinos de las provincias del interior, del Paraguay y mucho del Uruguay…

É quase a apologia do velho espectro histórico do Vice-Reinado. Uma linha mais, e o espírito glorioso do pensador da Civilización y Barbarie resvalaria ao imperialismo raso de Manoel Rosas.

Mas, ainda neste caso, a sua ilusão era enorme. Jacente a menos de três milhas da costa do Estado Oriental, o Gibraltar ardorosamente proclamado seria hoje derruído em poucos dias, aluindo-se pedra por pedra, desmantelando-se, desmontado por qualquer bateria de canhões modernos que se emparquem na margem uruguaiana e se conteirem, diminuindo até os ângulos de mira para que não passem altas de mais, sobre ela, as trajetórias distensas de três léguas.

Dado, porém, que a indústria da guerra não se aperfeiçoasse tanto – e pondo de lado uma hipótese deplorável cada vez mais repelida pela cultura sul-americana – a legenda heroica de Martín García, urdida pelos agentes terrestres articulados às agitações humanas, seria inteiramente desfeita com o simples progredir do fato natural que lhe propiciou condições tão vantajosas.

Desde 1855 um oficial da marinha norte-americana descobrira, por acaso, à outra banda, entre ela e a margem uruguaia, um novo canal, de requisitos superiores de navegabilidade a contrastarem em todos os pontos com o estado cada vez mais precário da antiga passagem histórica, do Ocidente argentino, que de ano para ano ia tornando-se menos praticável, apesar dos incessantes e pertinazes serviços de dragagem quase inúteis ante a invasão contínua das areias.

E este incidente que, inexplicavelmente, Agustín de Vedia não cita, esta maravilha banida às últimas notas dos anais geográficos, ao mesmo passo que apagaria de vez no quadro das relações internacionais os contornos das ilha memorável – ou atenuar-lhe-ia a primitiva importância, destruindo-lhe o primitivo encanto – acarretou consequências mais sérias, substituindo o remoído debate da soberania sobre uma rocha quase a afogar-se nas águas, pelo mais complexo, ou mais inçado de preconceitos patrióticos, que se diz a “jurisdição do Prata”.

II

Referindo-se ao canal que se predestinava a deformar e torcer o rumo das questões platinas, Agustín de Vedia aponta-nos como documento mais remoto revelador de sua existência um informe do século XVIII, do piloto castelhano Oyarvide, destinado a ilustrar mais tarde os debates de limites entre Portugal e Espanha. O descobridor dera-lhe então o nome de Canal do Inferno, “por las muchas corrientes que en él hay y la gran marejada con vientos del sur”.

Poderíamos reivindicar a nossa primazia, herdada, no acontecimento, destacando expressivos tópicos do Diário da navegação da armada que foi á terra do Brasil em 1530, de Pero Lopes de Souza, de onde se concluiria que o destemeroso cavaleiro do mar, esclarecendo a rota de Martim Affonso, perlustrou aquelas paragens.

E seria um encanto o seguir-se, longamente, a esteira secular da dilatada derrota descrita naquela língua portuguesa do tempo, onde as sílabas duras traem a palavra robustecida e feita para ser ouvida entre os barulhados ruídos das vagas e das tormentas.

Vindo do Cabo de Santa Maria, na larga volteadura da costa e fazendo o seu caminho ao longo de la a um tiro de besta da terra, o grande marinheiro penetrou no Prata, onde “o mar era tão grande que me nam podia parecer que era rio”, num mau dia de tempestade, sob um resplandor de coriscos a sarjarem o cariz dos céus, e a romper sobre as vagas rijamente picadas do sudoeste, “correndo tanta fortuna quanta homens nunca passaram”.

Prosseguiu ao arrepio da correnteza, rumo feito a noroeste, “com pouca vela e a sonda na mão”, impressionado com os muitos fumos que via no litoral convizinho, pelo que determinou de “por a artelharia em ordem, e irmos concertados para pelejar”, e lavrou, temerariamente, as águas daquele impetuoso canal. Alargou-se de terra; e foi surgir “à pustura do sol foi surgir á hua ilha grande, redonda, toda chea d’arboredo”, à qual pôs o nome de Santa Ana, e é hoje Martín García, Pernoitou-lhe à ilharga, “matei muito pescado de muitas maneiras, […] pexes d’altura de hum homem, amarelos e outros pretos com pintas vermelhas.”

Ao outro dia saiu em terra; mas o vento saltou, ao sul, obrigando-o a pôr-se da banda do norte da ilha, “com muita tempestade”; até que se abonançou o tempo e ele foi de novo à ilha “onde mandei pôr fogo em três partes della, para ver se nos acudia gente, e nam vimos senam fumos”.

Deixou-a, velejando a noroeste. Foi surgir, ao cabo de dois dias, à boca de “hum rio de mea legua de largo, e de hua banda e d’outra tudo cheo de arboredo” que é hoje o Paraná-Guaçu. “A agua corria mui tesa para baxo; havia de fundo des, doze braças de lama molle”.

Apesar disto foi “ávante aos remos”; e penetrou-o. Debateu-se longos dias, estonteado no labirinto dos paranás, onde “tudo eram braços e ilhas. Eram tantas as bocas dos rios que nam sabia por onde ía”; até chegar à terra, que chamou dos Carandins, mandando “fazer muitos fumos, a ver se me acudia gente, e no sartam me responderam com fumos mui longe”.

E “porque via que nam podia tomar prática da gente da terra; e havia muito que era partido donde Martim Afonso estava”, resolveu se tornar dali pondo “dous padrões das armas d’el-rei” e tomando “posse da terra”, cuja latitude determinou (33°45′). [ 5 ]

Este périplo, porém, distancia-se exageradamente no passado.

Mais expressiva para o nosso caso, até pelas considerações que no momento sugeriu, foi a notícia transmitida de Buenos Aires em dezembro de 1855, pelo Tenente Page, comandante da U. S. Steamer Water Witch, à Real Sociedade Geográfica de Londres, que sobre reivindicar para o marinheiro yankee a precedência da descoberta, nestes tempos, daquele canal, depois de um apagamento três vezes secular, tem o mérito de expor imparcialmente, às claras, sem preconcebidos intuitos, um juízo superior quanto aos limites jurisdicionais das águas do estuário, robustecido do beneplácito da mais ilustre entre todas as associações geográficas.

Traduzindo-se o comunicado inserido em um dos boletins daquela sociedade, observa-se, realmente, que naquele ano o Comandante Page descobrira uma nova passagem entre a ilha de Martín García e a costa oriental, tendo mais dois pés de fundo, do que a antiga.

“Mas a importância do achado não estava apenas naquela maior profundidade do novo canal, senão também no caráter político que ele assumiria. Ele destinava-se a despojar Martín García da importância geográfica que lhe dava o Governo de Buenos Aires, porque à exclusiva jurisdição que até àquela época este último exercia sobre o antigo canal a correr todo em seu território, se iria contrapor, na nova passagem, a jurisdição concorrente da Banda Oriental. O novo caminho, além de mais praticável, afastava-se de 1 ¼ de milha da ilha, retirando-lhe assim o comando perfeito anteriormente exercido sobre as entradas dos rios Paraná e Uruguai.” [ 6 ]

A tradução é quase literal. E deve-se convir, deletreando-a de par com o original em inglês, em que o Comandante Page parece haver traçado aquelas linhas como se em largo descortino contemplasse o futuro. É de lamentar-se que Agustín de Vedia não as interserisse na argumentação poderosa.

Com efeito, não só elas resumem, como resolvem o embaraçadíssimo assunto.

Senão, vejamos.

A questão do Prata, relativa à soberania, e subsecutiva jurisdição das suas águas – excluído o incidente da posse de Martín García, hoje desvalioso e apto a ser resolvido à parte, divide-se em dois aspectos fundamentais, consoante os critérios divergentes, naturalmente oriundos da própria feição ambígua, meio fluvial, meio marítima, do estuário.

A uma banda, alinham-se os que o consideram uma reentrância, ou entalhadura atlântica, submetida ao regímen internacional dos mares livres. É o critério britânico, ainda há pouco formulado entre violentos protestos da opinião uruguaia, a contrastar com a injustificável indiferença da opinião argentina.

À outra banda, estão os que ali vêem, esteando-se nas mais firmes, nas mais infrangíveis e nas mais claras noções fisiográficas, um rio, e consequentemente, adscrito à jurisdição interior, ou privativa, dos países circundantes. É o critério uruguaio neste momento; e o critério argentino, tradicional, até pouco tempo.

Poder-se-ia aditar uma terceira forma, a que mais a engravesce e dana, dos que, caracterizando-se como rio, ampliam desmedidamente os direitos de uma posse exclusiva, admitindo que sobre todo ele, até ao último farelhão de ilhota inapreciável, até ao último grão de areia das suas barrancas, molhado das enchentes, até à última ponta de cabucho a arremessar-se das costas, se possa generalizar a soberania indiscutível de uma nação isolada, criando-se o monopólio das águas. E este seria o critério argentino atual, se, como veremos depois, os juízos mais elevados e lúcidos emitidos pelos melhores homens de governo da República, desde os princípios do século até hoje, não livrassem uma nacionalidade de subscrever a doutrina singularíssima de Estanislao Zeballos, malgrado a sua invejável inteligência. [ 7 ]

Não antecipemos.

Daquela comunicação, propagada depois pelo presidente da grande associação científica da Inglaterra, resultam desde logo duas consequências essenciais.

A um lado, é ilativo que já naqueles tempos, ao parecer das autoridades mais sérias, e filhas da nação entre todas mais interessada em se definirem as bases físicas, onde se decalcam os princípios reguladores da navegação geral – o Prata não se considerava um mar livre. A opinião do oficial norte-americano não era isolada.

Além de seu prestígio oficial, refletiu, naturalmente, a de outros profissionais, sobretudo ingleses, que naquele mesmo ano estudavam, por ordem expressa do Almirantado, aqueles lugares: bastando nomear-se o Lieut. Sidney encarregado das sondagens nos baixios circunjacentes a Martín García, ou o Lieut. Day, a quem se deve uma das melhores cartas do Paraguai a partir de Corrientes. Ademais a Sociedade Geográfica de Londres reforçara-lhe, implicitamente, o asserto. Destarte o protesto recente do Uruguai contra o Governo da Inglaterra, quando este considerou o estuário um braço de mar, tentando debruar-lhe as margens com a faixa ideal das três milhas dos limites territoriais, contestando às nações ribeirinhas velhíssimos poderes incorporados no Direito Internacional desde os tratados de Paris e de Viena (1815 e 1816) – naquele lance, a diplomacia uruguaia poderia religar os seus argumentos com as linhas tradicionais da geografia britânica. Elas asseguram o caráter fluvial do estuário, aliás derivado da sua interessante gênese geológica. e removem da discussão, simplificando-a, aquelas regras instáveis das demarcações das águas jurisdicionais, que intermitem a variarem em todos os convênios, sempre mudáveis, sempre provisórias no recortarem as faixas dos mares territoriais, que hoje se alargam entre os limites extremos de três e cinco milhas, e serão amanhã mais largas, e irão aumentando a pouco e pouco, indefinidamente elásticas, dilatadas pela voz troante dos canhões de costa e submetendo o espírito do legislador aos ramos ascendentes das parábolas das balas.

A outro lado, conclui-se que já naqueles tempos, entre profissionais de todo despeados das lutas ou rivalidades acaso existentes entre as repúblicas platinas, se punha de manifesto o conceito de que o rio, nos limites das regras normais estabelecidas, era também parte integrante do Uruguai, compartido por ele e pela Argentina. Os dizeres são límpidos; o canal recém-descoberto despojaria a ilha de Martín García da importância política e geográfica que lhe dava o Governo de Buenos Aires em virtude de um motivo essencial, resumindo-se em que dali por diante a entrada nos rios Paraná e Uruguai, que ela comandava do lado argentino, deslocava-se para a outra banda, onde haveria de repartir-se com a República Oriental numa fiscalização até aquela época indivisa e privativa.

O lance de vistas do Comandante Page, porém, foi ainda mais longe. Naquele conceitear que a valia de sua descoberta estava menos nos requisitos físicos da nova passagem do que no caráter político que ela assumiria, o seu magnífico bom senso dilatou-se na visão de um estadista. Adivinhou, com surpreendedora presciência, que aquela jurisdição comparte, naturalmente e obrigatoriamente comparte, tão clara, tão de si mesma evidente, tão a desenhar-se nas mais nítidas linhas geográficas, teria de ser iludida, ou discutida, ou quase sonegada mais tarde, acarretando ilógico e condenável tumulto em toda a política internacional sul-americana.

E relanceou um futuro obscurecido, do qual, somente passados cinquenta e dois anos, se descerrariam os véus

*

Neste lanço o livro de Agustín de Vedia é admirável. A monstruosa anomalia, a tese aventurosa “segundo a qual a República de ‘las antiguas Provincias Unidas del Río de la Plata, hoy Confederación Argentina, es la soberana exclusiva de la boca y de la navegación del río de la Plata’” (para deixar-se, prudentemente, nos seus próprios dizeres a cinca resvaladia), a quimera retardatária ressurgindo à última hora para espanto de toda a civilização, redu-la a pena desfibradora do velho escritor a um caso vulgaríssimo de ignorância de Geografia e História; e, sobretudo, de desconhecimento de elementares noções políticas, porque sobrecarrega a singular pretensão de constringir, impacta, a República do Uruguai aos limites secos de suas costas nos baixa-mares, com a obstinada recusa em submeter ao veredictum supremo da arbitragem tão lastimável pendência.

Quer dizer: para que seja viável aquele pensamento retrógrado, faz-se-lhe mister aberrar da linha superior da própria política internacional da Argentina, tão nobremente fundada no direito e na justiça nas suas questões territoriais com o Brasil e o Chile – e, ainda, do rumo geral da política americana, que já vem de um itinerário quase secular, desde a Conferência de Panamá (1826) às de Lima (1847 e 1865), à de Caracas (1883), à Pan-Americana de Washington (1889), aos Congressos Ibero-Americanos de Madrid (1892 e 1900), ao científico, de Montevidéu (1901), aos Pan-Americanos do México e Rio de Janeiro (1902-1906) – resumidos todos na sanção universal da Segunda Conferência de Haia.

E esta só a consideração a invalida e esmaga.

Mas embora a excluíssemos, o quadro da política argentina é o melhor reverso de tão revolucionária tese. Agustín de Vedia desenha-no-lo em páginas extraordinárias, onde o escritor é por vezes suplantado pelo assunto, tão vivas são as cargas cerradas dos fatos que ele revela, tão numerosos os argumentos que o atropelam, claros, irrefragáveis, interpretando-se no próprio enunciar-se sem deixarem frinchas ao comentário mais breve, articulando-se, espontaneamente, no discorrer sucessivo e contínuo, ou deduzindo-se uns de outros numa sequencia tão lógica e irresistível, que as simples datas de seus aparecimentos se alinham com o rigorismo e a convergência inflexível de uma verdadeira série matemática. Aqui, é a Convenção que congregou em 1854 o melhor da mentalidade argentina para deliberar-se acerca dos limites territoriais do novo estado platino – a adotar, por unanimidade, a linha divisória do rio da Prata, pela metade de sua corrente. E ouve-se a palavra soleníssima de Bartolomeu Mitre, acentuando a este propósito que “certas linhas gerais traçadas pela Providência, aceitas como leis naturais escritas sobre o terreno, e sancionadas não só pela consciência do povo de Buenos Aires, como também pela de todos os povos, se não podem riscar porque as delineou a própria mão de Deus…”

Além, como a mostrar a altitude da Justiça, capaz de nivelar figuras tão diversas, irradiando ao mesmo tempo nos mais luminosos e nos mais obscuros espíritos – é o governo crepuscular de Juan Manuel Rosas, que ao despedir um de seus decretos tirânicos relativo ao tráfego fluvial do rio, atentatório da soberania do Uruguai, não reluta em acolher o protesto deste, e declara que, de fato, para a soberania generalizada, argentina, naquelas águas no puede alegarse título alguno, siendo comunes las aguas.

Além são os tratados: o brasílio-uruguaio, de comércio e navegação, de 1851; o de 1853, entre a Inglaterra, França, Estados Unidos e República Argentina; o de 1853 e 1859 do Paraguai, França e Inglaterra; e a Convenção fluvial de 1859 do Brasil e Argentina – uns, outros implicitamente aceitos por esta última, a fixarem regras e medidas fiscais, a redundarem todos no conhecimento pleno do território fluvial que hoje se discute. Mais longe, é o célebre canal do Inferno, que se desvenda de todo em 1877, fazendo que se realizem logo por iniciativa do Governo oriental sérios trabalhos de balizamento e dragagens, abrindo-se subsecutivamente ao tráfego comercial, sem que o Governo da República defrontante proteste. No mesmo ponto, em 1890, é a administração argentina, resolvendo-se a dragar ou melhorar o passo de Limetas: protesta o Governo do Uruguai contra o que considera uma invasão, e o Ministro das Relações Exteriores, Dr. Estanislao Zeballos, exculpa-se nobremente, declarando tratar-se de um simples conhecimento, caso de pouca monta, operación que reputaba inocente. Logo depois, a legação argentina, em Montevidéu, a dirigir-se à chancelaria oriental, em ofício seguido dos planos e memórias dos serviços que se projetam naquela passagem – e declarando que o seu Governo cumpre um dever, esclarecendo-a de tudo, porque as obras a realizarse pasan por aguas de jurisdicción oriental. Um ano antes, é o Ministro da Fazenda argentino Dr. Vicente López a insinuar, em nota ao plenipotenciário uruguaio, que en esas aguas comunes se asimila la bandera oriental a la nacional y viceversa. No ano seguinte (1893), é outra vez o Dr. Zeballos, ministro então da presidência Pellegrini, enviando uma memória ao Congresso, a explicar que instruiu a Legação argentina de Montevidéu para conseguir do Governo do Uruguai a indispensável aquiescência aos reparos dos pasos de Martín García, caso alguns deles tocassem em “algún punto canales sometidos a la jurisdición de aquel país

Fora inútil prosseguir. Sobre tudo isto paira, soberanamente, a grande voz desta glória sul-americana, que é Domingo Sarmiento:

“Convendría, para terminar este imbroglio que los estados del Uruguay, del Plata, del Paraná y del Paraguay, el Brasil incluso, celebrasen un congreso de plenipotenciarios para ponerse de acuerdo sobre el Derecho de Gentes que ha de regir en aguas que son comunes a todos”.

E esta jurisdição comparte, do estuário, que, como se vê ofuscantemente, foi sempre norma em todos os tempos assentada por todos os governos argentinos, incluindo a ditadura de Rosas – e teve o beneplácito de chefes de estado do porte de um Bartolomé Mitre ou de um Sarmiento, assim como o de todos os presidentes constitucionais, de Avellaneda, de Julio Roca, do próprio Juárez Celman, de Pellegrini, de Uriburu, de Quintana; a comunhão que jamais se contestou, ou foi sequer opinável, e sobressai a cada passo inteiriça, em todos os tratados, em todas as notas diplomáticas, em todos os relatórios ministeriais ou técnicos, nas mensagens presidenciais, na vasta cópia de documentos trocados entre as duas repúblicas; a associação jurisdicional, que no Prata seria até um belo princípio de alta moralidade histórica, sancionando os laços consanguíneos de duas nacionalidades irmãs – tornou-se, inexplicavelmente, passível da mais singular teoria, que ainda engendrou a metafísica política dos que se divertem em revolucionar as próprias leis naturais do desenvolvimento das nações.

Esta, porém, ficará como um epílogo idealista, e nada mais indispensável ao famoso romance histórico de Martín García.

A jurisdição do Uruguai sobre as águas platinas, nos limites normais do direito, imposta vigorosamente pelos antecedentes históricos e pelas próprias leis naturais, é dessas causas superiores, que para triunfar dispensam a fragilidade das espadas, amparando-se exclusivamente na fortaleza eterna e tranquila da justiça.

[ 1 ] Herbert Smith, Notas de um Naturalista, Rio de Janeiro, 1886.
[ 2 ] International Bureau of the American Republics. Argentine Republic.
[ 3 ] A. Pereira Pinto. S. Paulo — 1867 — Estudos [sic] sobre algumas questões internacionaes, p. 7.
[ 4 ] Agustín de Vedia, Martín García y la Jurisdicción del Plata. Buenos Aires, 1908, p. 112.
[ 5 ] Diario da navegação da armada que foi á terra do Brasil em 1530, escrito por Pero Lopes de Souza, e publicado em Lisboa em 1839 por Francisco Adolfo de Varnhagen. Rio, 1847.
[ 6 ] Sublinhem-se os lances mais decisivos do original: “The importance attached to this discovery is not confined to the greater depht of water in the new channel, but it assumes political character. It deprives Martin Garcia of the important geographical position which is attached to it by the Government of Buenos Aires, in whose hands it is at this time.
Instead of Buenos Aires possesing, as she now claims, exclusive jurisdiction over the old channel, leading into the rivers Paraná and Uruguay, on the ground that her territory is on both sides, over the new channel, she has only concurrent jurisdiction with the Banda Oriental.
The new channel is more easily entered, and in it vessels are not obliged to pass nearer to Martín García than 1 ¼ m, thus taking from (despojando) this island the perfect command it formerly had over the entrance to the rivers Paraná and Uruguay”. Proceedings of the Royal Geographical Society. v. I, 1857. Rear-Admiral F. W. Beechey’s address, p. 170.
[ 7 ] Correndo o véo… 14 de setembro de 1907.
CUNHA, Euclides da. Martín García (À margem de Martín García y la Jurisdicción del Plata, de Agustín de Vedia. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. À margem da história. Parte II, Vários Estudos. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/a-margem-da-historia/martin-garcia. Acesso em: [data]. Publicado originalmente no Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 24 e 26 jun. 1908.