O Estado de S. Paulo, 16 novembro de 1907
Coisas Nacionais
“Peru versus Bolívia”
Não pretendo aqui examinar os méritos propriamente de um pleito internacional entregue à decisão arbitral de um governo estrangeiro e no qual, se não nos achamos diretamente representados, estamos indiretamente interessados no máximo, porquanto é presentemente nossa uma parte do território sobre que vai recair a sentença e cuja posse vai, portanto, ser atribuída a um dos dois governos litigantes, o que pretende ser seu o direito à mesma ou o que dele dispôs em nosso favor.
Qualquer brasileiro só pode desejar que caiba ganho de causa à Bolívia de quem adquirimos o que nos convinha na extensão de terras que o Peru lhe disputa, numa revivescência de luta colonial entre duas audiências reais. O contrário seria anti-patriótico, porque solução diversa significaria dificuldades incomparavelmente maiores e mais graves de conciliação neste ponto entre os governos de Lima e do Rio de Janeiro. Por isso, quando mesmo não fosse convincente – que carece sê-lo – a argumentação contida no volume Peru versus Bolívia, que há pouco apareceu, após a sua primeira publicação em artigos, no “Jornal do Commercio”, que tamanha sensação produziram entre os que têm e percebem estas matérias, não pertenceria a um nacional proclamar-lhe os defeitos.
O trabalho aludido suporta, porém, perfeitamente, a meu ver, possíveis críticas de fora: se é feito com a maior sinceridade, nele não é menor a habilidade. Estes predicados se não excluem, antes muitas vezes se casam, se harmonizam e sem completam. Compete-nos, a nós, salientar e louvar a forte contribuição que para a liquidação da controvérsia pendente trouxe aquele livro, que é um primor de concepção e de leitura.
Desconhecendo até não há muito o elemento histórico do processo, conhecedor apenas, mas por observação pessoal, de uma porção da região contestada que explorou e vai descrever com a largueza, a paixão e o pitoresco que não permitiam as dimensões, a frieza e severidade do relatório oficial e técnico que apresentou, o admirável trabalhador e poderoso espírito que é o sr. Euclides da Cunha rapidamente se assenhorou do assunto. Inteirando-se das exaustivas memórias trocadas entre as partes e apoiadas numa mole de papéis, enfronhando-se nesta documentação essencial para a compreensão, separando o sentido dos textos, arrastando para o debate autoridades geográficas, homens de Estado de todos os tempos da história americana, internacionalistas, jogando com datas, observações astronômicas, noções corográficas e dados diplomáticos, o nosso ilustre patrício elaborou como que uma terceira memória, extraoficial pois que não somos parte no processo, mas não por certo a menos importante e interessante para o conhecimento completo da questão.
O sr. Euclides da Cunha tem em si dois motivos de superioridade sobre o comum dos advogados de limites, que são a sua proficiência profissional como engenheiro e a sua expressão empolgante como literato. Como engenheiro o lado técnico, a argumentação científica, a que um leigo é estranho ou que só pode utilizar como amador, oferece-lhe um terreno sólido sobre que assentar sua exposição política, evitando que ela se torne senão romântica, pelo menos puramente letrada. Como literato, o talento posto em semelhante exposição garante-lhe a soma de leitores que a aridez física afugentaria.
Sobre isto – como bem notou o sr. José Veríssimo na revista literária que dedicou ao escritor por ocasião desse seu último trabalho – a emoção que se desprende da obra, por haver sido feita com amor e quase com febre. O sr. Euclides da Cunha (todos os que têm a dita de conhecê-lo o testemunharão), não é só um intelectual que pensa, é também um intelectual que vibra, e a vibração ainda é o melhor meio de comunicação entre o autor e o público.
Sem pretensões a historiador, o sr. Euclides da Cunha, achou pois aí meio de fazer história da melhor, assim como, sem ser jurisperito, achou ocasião de revelar familiaridade com o direito das gentes, na sua forma mais progressiva como nos seus aspectos mais afastados. O merecimento maior de seu recente livro, como memória diplomática e como alegação jurídica, reside contudo na sua vivacidade e no seu modernismo, na utilização das fontes tradicionais para a evocação palpitante de um passado a que se vão prender as raízes do litígio, e simultaneamente dos episódios recentes na história dos três países limítrofes em suas negociações sobre a extensão territorial ainda em discussão.
Já a propósito do recentíssimo trabalho do sr. Capistrano de Abreu sobre nossa vida colonial, me referi à improcedência como precedente e como base – na ocasião do conde de Palmela por ininteligível – da linha de Santo Ildefonso, da qual o autor do Peru versus Bolívia prova à saciedade a sem valia, o abandono e a inexequibilidade em páginas de uma argumentação cerrada e de um estilo animado, pessoal, sugestivo, fascinador, que a torna irresistível.
A tese converte-se em ensaio, a prova histórica vaza-se em moldes os mais atraentes, e a pulsação que corre pelas suas páginas atesta a solidez dos alicerces. São capítulos esses dos anais diplomáticos do nosso continente, já transportados da península ibérica, escritas com uma profunda inteligência das controvérsias entre as duas metrópoles e as nações entre si que lhes sucederam nas responsabilidades e nas aspirações, e com a perfeita mestria de quem se não sente peado pela disciplina desvirilizadora da profissão, nem se perde nas inconsequências do amador sem critério. São a obra de um verdadeiro erudito, que se não preparou para sê-lo, e de um genuíno escritor que com tais dotes nasceu. Ela subsistirá pelo seu alto merecimento literário – e neste literário se abrange a feição histórica a par da estilística – no olvido a que se vêm relegadas, uma vez servido o fim a que se destinam, as mais das alegações desse gênero que não possuam o valor geográfico definitivo de um “Oiapoque” de Joaquim Caetano da Silva, ou não tenham recebido como as do sr. barão do Rio Branco a consagração do êxito diplomático.
A importância literária do estudo a que procedeu o sr. Euclides da Cunha, o seu movimento de conceitos, a sua forma caudalosa e acidentada em que as palavras, amontoando-se, soam como cachoeiras e se combinam com efeitos raros, como se a luz de decompusesse na espuma da água batendo nas rochas que se acavalam, não sobrepuja no entanto absolutamente a exatidão científica que o distingue. Um pequeno exemplo: o sr. Euclides da Cunha defende muito bem a latitude deduzida pelos astrônomos portugueses Silva Pontes e Lacerda e Almeida, em 1781, para a semi distância estipulada no tratado de Santo Ildefonso, entre as confluências do Madeira e do Mamoré – 7°38’42” – e increpa com sobeja razão a estranha interpretação da Raimondi, perfilhada pela Sociedade de Geografia e pelo Arquivo de Limites de Lima, que a fixa em 6°52’15”, sobre pretexto de que o Mamoré guarda seu nome, depois de se lhe juntar o Guarporé, até encontrar o Beni – quando o artigo 13º do tratado de 1777 é a tal respeito formal aplicando expressamente o nome de Madeira ao rio em questão desde a união das águas do Mamoré e do Guaporé.
Pois tanto assim era, que da mesma forma o entendeu, em 1871, autoridade não menor do que Link, o notável cientista sueco, na estudada e conscienciosa descrição geográfica, etnográfica e histórica, que, sem aqui ter vindo, pelos documentos cartográficos e outros, fez do Brasil por ocasião do casamento da arquiduquesa Leopoldina da Áustria, com o príncipe real Dom Pedro. Refere-se ele ali explicitamente ao Mamoré “ou, como é chamado desde a confluência do Guaporé, rio da Madeira”, e até observa a este propósito que por esta linha de fronteira (a última convencionada entre os governos de Portugal e Espanha, e que ele miudadamente descreve) – o Brasil conservou a sudoeste um considerável trecho do Peru.
Não será de certo desagradável ao sr. Euclides da Cunha esta conformidade que observo entre a sua justa interpretação geográfica, à luz dos documentos do tempo, e a do ilustre naturalista-escritor, especialista em assuntos portugueses desde a sua viagem e os seus excelentes estudos na Península; do mesmo modo que lhe foi seguramente lisonjeira a concordância que anteriormente notei nestas colunas entre a sua asserção da inviolabilidade da linha de Santo Ildefonso, com a opinião manifestada num papel até aqui inédito pelo maior dos diplomatas portugueses do século XIX.
Trata-se, porém, aí de pontos que só possuem atualmente um interesse histórico, pois que é impossível moralmente ao Peru, como a qualquer outro fragmento do império espanhol na América do Sul o seria, fazer reviver o tratado nunca executado de 1777. O interesse do momento e capital está a qual desses fragmentos cabem de fato e de direito às províncias desconhecidas de outrora, onde demora nossa aquisição de 1903 e por onde se foi verificando a expansão da nossa raça.
Nisto se empenhou especialmente o autor de Peru versus Bolívia, adjudicando aquela região à Bolívia, representante política da quase autônoma Audiência de Charcas, mercê da abundância de provas de todo gênero que constituem a trama da sua magistral memória que, para ser perfeita, tem até o merecimento de ser breve e o de não abusar das transcrições documentais, só lhe faltando por enquanto o merecimento supremo da vitória, dependente tantas vezes de causas alheias à boa razão.
Rio, novembro de 1907
Oliveira Lima