Distribuição dos vegetais no Estado de São Paulo

O Estado de S. Paulo, 4 de março de 1897

O XI boletim da Comissão Geográfica e Geológica trata, entre outros, daquele interessantíssimo assunto que se traduz como uma novidade na deplorável inanidade do nosso ambiente intelectual e erige-se como a primeira tentativa séria, a par do recente trabalho de Warming sobre a flora da Lagoa Santa, em Minas, de um estudo sistemático da nossa flora local, e talvez, sob um ponto de vista mais geral, da geografia botânica do nosso país.

De fato, os lineamentos gerais do nosso mundo vegetal, traçado pelo ilustre Martius em sua clássica divisão de províncias ou sub-reinos amplíssimos e de mal definidas fronteiras, tinham demasiada amplitude para refletirem as modificações impostas pelas circunstâncias locais. Abrangendo cada uma daquelas divisões, às vezes, muitos graus de latitude, caracteriza-as a máxima generalidade, tal que se tocam e se confundem quase, na parte ocidental da nossa terra, as duas províncias extremas das Napéias extratropicais e Náiades intertropicais — as primeiras dominando exclusivamente no Rio Grande, Santa Catarina, Paraná e sul de Mato Grosso e as segundas, mais disseminadas, acompanhando o curso dos grandes rios e definindo-se com admirável opulência na Hiléia amazônica de Humboldt que desdobra pela extensão do grande vale uma vegetação incomparável e forte, sob a adustão perene dos grandes dias tropicais.

Torna-se, assim, claramente, necessário, por meio de um estudo mais íntimo da nossa natureza, definir os vários aspectos particulares inevitavelmente assumidos por aquelas divisões, ante as modalidades do meio. Foi o que intentou, para a flora paulista, o Sr. A. Löfgren após pacientes e longas investigações.

Compartindo o domínio da vegetação paulista as Dríades e Oréades de Martius, a que pertencem respectivamente as matas que revestem as montanhas graníticas do litoral e a flora das regiões montano-campestres intertropicais, cada uma dessas províncias, segundo as condições ambientes, pode revestir-se de feições particulares, perfeitamente definidas, transmudando-se lentamente, sob o influxo das reações exteriores, e estabelecendo, numa continuidade admirável, a transição das grandes florestas primitivas, silvæ primevæ, à vegetação rudimentar dos campos.

A traços largos embora e aproveitando habilmente as divisões criadas pela própria natureza, descreve o Sr. A. Löfgren esses diversos aspectos em que se repartem naturalmente aquelas duas grandes divisões do eminente iniciador da Flora brasiliensis, adotando para designá-las as denominações populares geralmente conhecidas. E com a máxima clareza liga os dois extremos naturais da vegetação, as matas e os campos, pelas séries decrescentes definidas pelos capoeirões, capoeiras e carrascais, de um lado e de outro pelas catanduvas, cerradões, cerrados e caatingas — formações derivadas, segundo a denominação de Warming, do Drias e Oreas martianos. Define estes diversos facies de uma flora que se adapta com singular plasticidade a um meio altamente complexo inconstante e aborda afinal o ponto capital da questão — estudando-lhes as espécies vegetais características.

Compreende-se que tal estudo é apenas um ensaio, como declara o seu autor, e, acrescentamos, uma tentativa até certo ponto heroica.

Tendo, talvez, em parte, como única orientação as recentes deduções de Warming acerca do modo de ser da flora da Lagoa Santa, o Sr. A. Löfgren esteve quase que inteiramente isolado nessas indagações persistentes por meio da flora opulenta e nimiamente caprichosa de uma região, cuja disposição topográfica parece ter invertido a definição astronômica dos climas, impondo aos isotermos deflexões bizarras e exageradas e imprimindo em sua zona extratropical do litoral a feição tropical por excelência, muitíssimo mais acentuada que no interior.

Daí o altíssimo valor do seu esforço, destinado a maiores resultados futuros e a inegável originalidade de um estudo para cuja apreciação exata carecemos de competência, não tendo estas linhas outra função além de impedir que o indiferentismo geral apague e extinga mais um tentame notável. Não acompanharemos por isto o infatigável botânico na criteriosa análise dos diversos tipos florais do Estado — da flora exuberante das matas à vegetação caótica das capoeiras ou dos campos, adstrita a um meio inclemente.

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Ampliando as notáveis indagações iniciadas em Minas pelo ilustre secretário do Dr. Lund, abordou o Sr. A. Löfgren, com inteira segurança, sobre a larga base dos estudos a que nos vimos referindo, o problema interessantíssimo e atraente da gênese dos campos e a explicação segura das causas que determinam a persistência, a constância da sua vegetação deprimida, estacionária e sem a mínima tendência, por meio de um movimento evolutivo ascensional, a formas mais proeminentes.

É esta inegavelmente a feição mais diretamente útil do seu trabalho, sobretudo se considerarmos que preponderam neste Estado as regiões campestres geralmente consideradas estéreis e inaptas a qualquer cultura regular; — regiões destinadas entretanto a notável ação sobre o nosso desenvolvimento econômico, em próximo futuro, quando o esgotamento das terras ora cultivadas, coincidindo com o aumento da população, determinar o surto de uma lavoura mais inteligente, na qual graças a um maior desdobramento de energias, exigidas pela cultura intensiva, a inteligência do homem, em íntima colaboração, se alie à força inconsciente da terra.

Ora, dos estudos em questão resulta que, em contraposição à opinião geral, nenhuma causa insanável determina a esterilidade aparente dos campos, cabendo à composição química do solo influência diminutíssima em sua formação e conservação.

Observando a disposição geral dos chapadões do amplo planalto paulista, revestidos pela flora campestre, que descambam insensivelmente em suaves declives segundo a direção dos rios principais, nota o Sr. A. Löfgren que são eles varridos longitudinalmente pelos ventos dominantes — o SE, marítimo e saturado de umidade, que após vingar o antemural da serra do Mar atinge o planalto determinando a ação benéfica do orvalho, e o NO ardente, oriundo das regiões adustas do interior, e originando intensa evaporação, visto como a ausência de obstáculos que não lhe oferece a superfície lisa das chapadas, conserva-lhe a temperatura alta e afastado, conseqüentemente, o ponto de saturação para a umidade. Esta condição desfavorável para a existência vegetal, própria dos vastos descampados, é agravada ainda pela irradiação noturna que é neles muito maior do que nas matas, de onde decorre o flagelo periódico das geadas. A estas causas porém, obstáculos opostos ao desenvolvimento vegetativo dos campos, alia-se uma outra.

Pertence esta à teoria estabelecida por Thurmann, firmando a influência preponderante das qualidades físicas do solo e especialmente da sua desagregação mais ou menos completa de onde resultam a avidez com que retém a água ou a faculdade de filtrá-la rapidamente, deixando-a passar às camadas inferiores.

De fato, a observação revela nos planaltos das regiões campestres camadas terrosas nimiamente espessas e permeáveis, nas quais a umidade derivada da atmosfera prestes desaparece, avidamente sugada pelo solo até às camadas impermeáveis profundas.

Da concorrência de tais obstáculos resulta a penosa adaptação imposta àquela flora, o seu estacionamento e a conservação persistente de uma vegetação característica que não evolve e ao contrário deperece cada vez mais, ante o assalto brutal dos elementos.

Vegetação raquítica, torturada e desgraciosa, em que os galhos retorcidos e desordenados dão-nos a ideia de um bracejar de desespero, ela é, entretanto, interessantíssima e melhor do que as majestosas florestas do litoral, patenteia vigor e resistência heroica na luta pela vida.

Segundo já fora observado por Warming, compõem-na entretanto as mesmas famílias e gêneros que povoam as matas. As circunstâncias desfavoráveis apontadas imprimiram-lhes, porém, movimento retrógrado tão grande que à mais inexperta vista ressalta a diferença entre as Bignoniáceas quase acaules do campo e as suas esbeltas irmãs das florestas.

Chega-se assim, logicamente à conclusão de que a persistência dos campos neste estado particular é o resultado de condições geológicas, físicas e topográficas — não sendo lícito acreditar-se numa esterilidade incompatível com uma flora variadíssima e idêntica à das matas e com a própria permeabilidade do solo.

De sorte que a irrigação artificial nas épocas de seca debelaria em grande parte os males apontados, visto como a evaporação por um lado e a sucção do solo por outro são as causas predominantes daquela aparente aridez dos campos.

Se acrescentarmos agora que estes pela sua disposição mesmo, de superfície ligeiramente ondulada, constituem regiões em que se torna facílima a aplicação dos arados, patenteando de modo notável essa manageability of nature de que nos fala Buckle, compreende-se claramente todo o seu valor e o papel que lhes destina o futuro.

Exaustas as regiões ubérrimas nas quais a decomposição das rochas eruptivas (augito-porfiritos) origina a terra roxa que está atualmente para o nosso desenvolvimento econômico como a terra negra da Ucrânia, a fecunda chernozem, para o da Rússia meridional, o aproveitamento das extensas zonas hoje abandonadas tornar-se-á inevitável e traduzirá uma expansão mais ampla da atividade do lavrador, que perdendo a feição quase parasitária atual terá necessidade de estimular antes e desencadear as energias latentes do solo.

Os campos são assim, segundo a expressão de um belo talento, as reservas do nosso futuro. A sua estrutura geológica ou, de um modo geral, do planalto sedimentarão que os contém, composta de extratos horizontais de xisto e possantes camadas de grés, cindidas pelas erupções triássicas de diábase e meláfiro, toma eminentemente praticável a abertura de poços artesianos, pela probabilidade da existência da água a pequena profundidade, nas camadas daquelas rochas sedimentárias. Por outro lado, a extrema diferenciação hidrográfica do Estado, em que a maioria dos rios se subdivide em inúmeros afluentes, facilita a formação de represas e armazenamento de grandes massas de água, que podem ser distribuídas para o beneficiamento do solo, consoante as necessidades.

Estas conclusões notáveis completam admiravelmente os estudos do digno botânico da Comissão geográfica e geológica.

Euclides da Cunha

Como citar
CUNHA, Euclides da. Distribuição dos vegetais no Estado de São Paulo. EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Crônicas. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/cronicas/distribuicao-dos-vegetais-sp. Acesso em: [data]. Transcrição da publicação original em: O Estado de S. Paulo, ano 23, n. 6.684, 4 mar. 1897. p. 1.