Democracia, Rio de Janeiro, 10 de maio de 1890
Sentimos profundamente discordar do modo de ver do nosso colega da Cidade do Rio, e temos necessidade de contradizer as suas asserções ontem a propósito das festas de treze de Maio.
Como signatários da petição dirigida pelo Batalhão Acadêmico ao seu digno comandante permita-nos o colega que lhe digamos que foi excessivamente injusto e falho de verdade não só para conosco, mas a quem fez alvo de seu ataque e releve que lhe ponderemos: 1º) que os signatários da petição não são membros do Apostolado Positivista do Brasil, muitos deles não conhecem a doutrina positivista, e muitos outros até lhe são infensos; 2º) que os signatários tinham e têm plena consciência do que fizeram e não foi portanto o positivismo ortodoxo que rompeu em hostilidade à procissão das festas do Treze de Maio, e sim a moral social revoltada e representada por assinaturas de indivíduos de todos os credos e que ainda não têm o coração contaminado pelos vícios e conciliações com atos profundamente imorais.
Revele-nos a Confederação Abolicionista o dizermos-lhe que não pode se arrogar a única representante do abolicionismo no Brasil e que nessa matéria tem contra si graves e ponderosas acusações.
Os filósofos, os que seguem a doutrina positivista sistematicamente (e nós que não somos membros do Apostolado Positivista, e podemos dizer com toda isenção de ânimo) não se dedignam de ombrear com as classes operárias, com os desprovidos da fortuna, não só porque são os que se colocam ao seu lado para clamar contra todos os privilégios e monopólios burocráticos de nossa sociedade, como tem em sua sala ao lado dos grandes, dos mais elevados fatores da civilização humana, representados por bustos e retratos de um preto, retrato que podemos afirmar não existe na sede da Confederação Abolicionista nem nas casas de seus membros; retrato do grande e ilustre preto libertador do Haiti, o primeiro entre os mártires da liberdade de sua raça — o grande Touissant Louverture.
Ninguém condenou, e no tempo em que a escravatura nos Estados Unidos da América do Norte ainda existia em toda a sua pujança, com mais energia, com mais fundamento e mais irrefragavelmente, esse crime ocidental, essa aberração monstruosa das sociedades modernas, do que o eminente filósofo, o grande mestre dessa escola filosófica.
Quando a Confederação Abolicionista ainda não sonhava em surgir, em 1864, uma distinta brasileira, D. Nizia Floresta Brasileira Augusta [ 1 ] sob a inspiração do Mestre na sua obra escrita no estrangeiro, apresentava alguns remédios morais para o mal que nos maculava. Em 1865 o Sr. Brandão, em Bruxelas, escrevia um opúsculo em que se dizia positivista, e combatia a monstruosa posse.
Em 1879 quando ainda os Srs. Teixeira Mendes e Miguel Lemos não eram positivistas sistemáticos, em uns panfletos que então publicaram, de crítica ao Imperador, o Sr,. Teixeira Mendes sustentou perante o direito criminal a tese de que o escravo que matasse ao seu senhor não tinha crime. Em Setembro de 1880 pouco antes da fundação definitiva do Centro Positivista, os Srs. Teixeira Mendes, Drs. Teixeira de Souza, Aníbal Falcão, João Francisco de Souza e Generino dos Santos, assinavam um artigo que foi publicado em suplemento da Gazeta da Tarde, de propriedade então do falecido Ferreira de Menezes de saudosa memória.
Nesse artigo não só vinha a condenação a mais enérgica a esse incalculável mal, como vinha o remédio num projeto abolicionista que se fosse executado, nossa situação econômica e social seria outra.
Daí há pouco tempo forma-se esse Centro que consagrou nas suas bases a condição de que para ser a ele pertencente, era indispensável que o pretendente não possuísse escravo de forma nenhuma, isto é por compra, herança, donativo ou empréstimos e fazer a essa associação de então para cá uma propaganda ativa e incansada.
Foi dessa propaganda que resultou o considerar-se o problema, não como consistente simplesmente na libertação dos escravos, o fazer-se justiça a essa raça, mostrando que a sua libertação não era simplesmente uma questão de comiseração, para que nós lhe éramos devedores das principais afetividades do coração brasileiro, visto a raça preta africana ser muito superior em afetividade à raça branca.
Ora, a Confederação Abolicionista só se formou depois depois que existiam nesta capital muitas sociedades com esse fim e que se congregavam e quando já no país inteiro lavrava uma enorme opinião favorável à questão — o que não impede que muitos de seus membros fossem batalhadores de todos os tempos.
Quanto às sociedades carnavalescas, diremos que elas não fizeram benefícios à libertação dos escravos como tais, pois que o seu fim não era esse e sim o divertimento por meio das orgias, e se muitos de seus membros concorreram, isso será tomado na conta em que o deve ser; e ainda mais, se o dinheiro tirado para a libertação dos escravos saiu dos cofres sociais, não foi mais do que as migalhas; as sobras das orgias, porque essas sociedades sem tivessem esse espírito de filantropia e e abolicionista que se lhes quer dar, preferiam empregar as centenas de contos que gastavam nas orgias, em resgatar a liberdade de seus semelhantes.
Demais seria solução tirara um preto da fazenda, liberta-lo e converte-lo num vagabundo e capoeira no interior da capital?
Queremos que nos diga a Confederação Abolicionista que diferença existe entre a prostituição nos Clubes aqui no centro da cidade?
Os artistas de companhias que aqui fizeram benefícios à libertação dos escravos, não o fizeram como representantes das companhias, cujo fim nunca foi a abolição, e sim como indivíduos de bons sentimentos.
Isto ainda é mais uma prova de que, quer queiram, quer não, o altruísmo há de dominar as ações humanas.
Os clubes de corridas como as sociedades carnavalescas, não tiveram nunca por fim a libertação dos escravos e nem como tal tomaram parte e sim como levados pelos impulsos do coração de alguns de seus membros e nem por isso deixam como aquelas de ser profundamente imorais.
Não é estragando a raça humana que se melhora esta, pelo contrário se a estraga profundamente.
Perguntaremos que diferença há entre o jogo na espelunca de alguns mil réis e os jogos nas patas dos cavalos de dezenas de contos? Nós só conhecemos uma, e que é: os primeiros pagarem multa e irem para a polícia, os segundos terem todos os auxílios da polícia; os primeiros, pouca ação terem sobre a sociedade, os segundos influírem perniciosamente com seu exemplo e de um modo poderoso.
A Confederação Abolicionista quer fazer uma festa popular e no entanto manda convites especiais a essas sociedades e não convida especialmente o elemento popular que devia ser a nota dominante da festa; não convida os libertos para virem incorporados render homenagem aos grandes vultos da abolição. Não são as casacas e os carros ricos espalhados em profusão que fazem a popularidade e grandeza da festa.
O exemplo de outros países, quando fosse a expressão da verdade, isto é, quando a essas festas concorressem sociedades cujos fins não são imorais e nesse caráter, em nada nos aproveitava, porque não somos obrigados a imitar ninguém e porque os outros procedem mal não se segue que nós devamos proceder do mesmo modo.
Ainda mais, desculpe-nos a Confederação que lhe digamos francamente, não acreditamos em seus sentimentos abolicionistas, pois que, no dia seguinte ao da libertação dos escravos, quando o problema era mais ingente, por consistir em inocular naqueles cérebros obcecados e corações deprimidos pela mais infamante das instituições, o o amor da Pátria, o amor ao trabalho e à família, as nomeações intelectuais as mais indispensáveis ao operário para incorpora-lo definitivamente na sociedade, fazia o contrário, concorria para anula-lo desorganizando o trabalho e tornando o braço que devia ser a seguir a tranquilidade da família, a prosperidade da Pátria pelo trabalho profícuo e moralizado, no braço armado do sicário, que devia por em sobressalto todas as consciências e todas as famílias, concorrendo assim para uma nefanda e nova exploração dessa miserável raça, secularmente espoliada, pela criação e animação da célebre Guarda Negra.
E após tanto tempo passado vem-se com a panaceia das creches. Perguntamos que diferença há em segregar o pequeno de sua mãe para que esta alimente o filho de seu senhor e em coloca-lo na creche para que ela vá para a oficina, dar o seu esforço ao patrão? Por um e outro modo não se desorganiza a família operária?
Por que razão a Confederação Abolicionista, quer tirar as glórias da abolição do povo brasileiro, para aureolar a fronte de D. Isabel agora que vai festejar o grande dia, que a sarou redentora para a Confederação, não traz o busto de D. Isabel no préstito a fim de render-lhe a homenagem devida?
Não concordamos com a introdução de elementos imorais na procissão, porque apelidaram-na de — cívica — chamem-na carnavalesca, marcha da alegria, ou qualquer outro nome que não indique educação do país, e podem colocar aí todos os elementos. Mas casar a imoralidade, com aquele nome é o que não admitimos.
Desculpe a Confederação a franqueza, mas a verdade deve ser dita sempre.
Rio de Janeiro, 10 de Maio de 1890
Saturnino Nicoláo Cardoso
N. no Rio Grande do Sul em 1858
Rua do Lavradio 139
Thomaz Cavalcanti de Albuquerque
N. no Ceará em 1855
Rua da Floresta n. 21
Euclides da Cunha
N. no Rio de Janeiro em 1867
Campo de S. Cristóvão 18
Democracia, Rio de Janeiro, 12 de maio de 1890
II
Sentimos ter ainda de voltar ao assunto visto o tempo de que dispúnhamos não nos permitir fazermos algumas considerações que se nos afiguram indispensáveis.
Disse a Confederação que tinha convidado todos os elementos que reprovamos, para dar-lhes o agradecimento pelo concurso que prestaram à libertação dos escravos.
Em primeiro lugar essas associações ou indivíduos só concorreram para a libertação dos escravos depois que a ideia abolicionista tinha lavrado em todo o país e dominava em todas a consciência; e portanto não poderiam, quem quer que fossem, afastar-se ou colocar-se fora da ação do meio em que viviam e haviam forçosamente de concorrer para esse fim, como muitas vezes concorreram, bem a pesar seu, os escravocratas.
Em segundo lugar, esse concurso foi devido, como já o fizemos ver, ou aos impulsos naturais ao coração humano, de alguns indivíduos, ou da parte das sociedades a sobra das migalhas de suas orgias e ganhos. E esse mesmo concurso resultou não só da imposição dos sócios e dos sentimentos generosos dos indivíduos, como também e principalmente da vaidade filantrópica, a modo porque foi abolicionista o Sr. D. Pedro II.
Em 3º lugar porque essas sociedades concorreram, não deixam por isso de ser profundamente imorais, os seus fins continuam os mesmos, e quando o concurso deles viesse a auxiliar a questão, isto não implicaria hoje o seu comparecimento, porque nessa ocasião tratava-se de obter por todos os meios a libertação de nossos semelhantes e hoje tratamos de fazer-se-lhes a glorificação, e glorificação que possa educar a sociedade. Portanto aí só podem entrar elementos sérios e que devem ter uma existência normal em uma sociedade moralizada.
Além disso se a Confederação quer fazer agradecimentos, que o faça àqueles que já não têm mais interesse nesse agradecimento, visto materialmente não existirem mais. Rememore os José Bonifácio, Eusébio Ferreira França, Visconde do Rio Branco, Ferreira de Menezes, Luiz Gama e todos os grandes trabalhadores da santa causa, que caíram na luta e que não puderam presenciar o espetáculo da terminação de sua obra.
Por que a Confederação Abolicionista despreza a raça por tanto tempo espoliada e não lhe faz a glorificação, não só representando nesse dia as mais elevadas qualidades que fazem o seu apanágio, glorificando-os nos grandes vultos ou tipos a ela pertencentes e cujo modelo é o grande Touissant Louverture?
Por que a Confederação Abolicionista gastou dois contos e tanto de réis para comprar uma estátua de bronze e fazer presente ao marechal chefe do governo provisório, e não empregou esse dinheiro em auxiliar a fundação de uma escola para libertos com o nome do ínclito marechal? Este fato, garantimos, agradaria mais ao ilustre marechal e exprimiria os sentimentos abolicionistas da Confederação, por fazer crer que ela estaria cuidando em preparar o proletariado preto e nacional para resistir vantajosamente a concorrência que em breve lhe farão os operários estrangeiros, concorrência essa desastrosa pela superioridade de educação profissional e de hábitos dos operários estrangeiros, e que será a aniquilação dessa generosa raça por tanto tempo tão dura e nefandamente explorada.
A Confederação por que não faz nesta festa um público e solene agradecimento à Sra. D. Isabel, merecedora de que essa associação lhe fosse mais grata do que agora se mostra?
Não! Isso não se faz simplesmente porque a Confederação entende que fazer uma comemoração é fazer uma festa pela festa, e não é educar; e ainda mais, que se pode desvirtuar pelo fato de se fazer festa, os termos da língua não só etimológica como sintaticamente.
Eis as razões poderosas porque não damos o nosso concurso a essa desvirtuação de uma grande data.
Rio, 12 de Maio de 1890.
Saturnino Nicoláo Cardoso
N. no Rio Grande do Sul em 1858
Rua do Lavradio 139
Thomaz Cavalcanti de Albuquerque
N. no Ceará em 1855
Rua da Floresta n. 21
Euclides da Cunha
N. no Rio de Janeiro em 1867
Campo de S. Cristóvão 18
CARDOSO, Saturnino Nicoláo Cardoso; ALBUQUERQUE, Thomaz Cavalcante de; CUNHA, Euclides da. Resposta à Confereação Abolicionista. EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Crônicas. São Paulo, 2021. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/cronicas/resposta-a-confederacao-abolicionista. Acesso em: [data]. Reprod. Democrata, São José do Rio Pardo, São Paulo, n. 834, 7 de maio de 2005. Caderno Cultura 2. pp. 2-3. Publicado originalmente em Democracia, Rio de Janeiro, 10 e 12 de maio de 1890. Recuperado por Joel Bicalho Tostes na Biblioteca Nacional.
ARRUDA, Maria Olívia Ribeiro de. Os inéditos de Euclides. Democrata, São José do Rio Pardo, São Paulo, 7 de maio de 2005, p. 3. Caderno Especial.
CUNHA, Euclides da. Amanhã. Democracia, Rio de Janeiro, nº 60, 12 de maio de 1890.
HERCULANO, Paulo. Euclides fala sobre abolição. Democrata, São José do Rio Pardo, São Paulo, 7 de maio de 2005, p. 2. Caderno Especial.