Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 28 de maio de 1909
O Sr. Euclides da Cunha [movimento de atenção]:
Senhores – Estudando as várias teorias da lógica, quer da lógica formal, que procurei seguir além dos moldes habituais, até à análise matemática da inferência dedutiva criada pelo gênio de Georges Boole, na sua tentativa de realizar em Lógica uma transformação idêntica à que Descartes realizou em geometria; quer a da lógica indutiva, que procurei acompanhar muito além do mecanismo dos métodos experimentais, até ao cálculo das probabilidades, o qual, malgrado a sua significação antifilosófica, é uma das mais belas e das mais interessantes tentativas do espírito humano, para colher o próprio fortuito e forrar-se às ciladas permanentes do acaso; neste tirocínio, acompanhando as verdadeiras ciências para ver como o método se transforma e se transfigura, conforme as exigências de cada uma delas, só houve uma coisa em que não pensei: foi no ponto que me coube por sorte.
Apresso-me em dizer que, absolutamente, não lamento o fato. Apenas apresentarei os motivos de ter sido colhido de surpresa. É que eu imaginei que o tratar deste assunto fora incidir na condenação da própria ciência normativa que procurei compreender. Explico a razão da minha surpresa.
Apelo para a própria definição do que se denomina Metafísica.
Metafísica dizem, é a ciência do Ser, e alguns acrescentam – do Ser, ou do Absoluto. Ora, o Ser implica, inegavelmente, as mais arrojadas concepções filosóficas: a ideia de Ser enfeixa, sem excetuar uma só, todas as conclusões de todos os sistemas dogmáticos e é, necessariamente, o corpo e o âmago de uma falsa ciência, toda arquitetada de hipóteses aventurosas, de hipóteses inverificáveis – portanto, inaceitáveis – de uma falsa ciência, toda feita de hipóteses arrojadíssimas, desenvolvendo-se sob o influxo exclusivo do método reflexivo, inteiramente a cavaleiro dos preceitos regulares que a Lógica nos dá para que afiremos a legitimidade do nosso pensamento.
Era natural que eu vacilasse no primeiro momento, vendo que nesse terreno tão claro, tão firme, da Lógica, me aparecia o problema tremendo de enfrentar a realidade em si, numa situação que, dado o próprio título do ponto, me talha uma atitude de Hamlet, agitando “o ser e o não ser”; ou agitando três palavras – o ser, o absoluto e a substância – três palavras sinônimas, através das quais os exageros materialistas e espiritualistas procuram lobrigar as noções fundamentais de tudo quanto existe.
Mas preciso ainda aditar que fui colhido de surpresa, porque, no momento atual, os problemas positivos são demasiado numerosos e demasiado sérios, para que nos permitam a pior das gaspillages, que é a intelectual.
Ainda recentemente, uma frase singela de Ernst Mach, o extraordinário pensador austríaco, fez a volta ao mundo porque sintetizava uma infrangível verdade: – a ciência significa a economia do pensamento.
Ademais, o preocupar-me com uma tese, de tal porte, fora quase que admitir a ciência estagnada, há uns cinco séculos, nas páginas da Suma Teológica.
Mas, note-se que estou dentro do ponto; dele não me afastarei. Apenas preciso dizer que se eu subisse a esta tribuna para falar, muito seriamente, do Ser, como representando as coisas existentes ou possíveis; do Ser que o Cardeal Mercier, ainda há pouco tempo, com extraordinária bravura declarou constituir o objeto formal do nosso pensamento, e alguns acrescentam, de toda a filosofia; se eu fizesse isso praticaria um ato de insinceridade.
Certo, pelo simples jogo mecânico da memória, e naturalmente paralisando as forças vivas, superiores do espírito, eu poderia preencher largamente esta hora, feito um escolástico, impondo-me a mim mesmo torturas extraordinárias e pontificando muito seriamente do ens in quantum ens e falando das substantiæ, das essentiæ, já simples e puríssimas, sintetizadas num Deus, já compostas de uma matéria, esse in potentia, e de uma forma, esse in actu, combinando-se numa espécie de metaquímica maravilhosa, e constituindo todos os gêneros, todas as espécies, todos os indivíduos e todos os objetos do nosso pensamento. Mas, ainda que tentasse esta empresa, surgiria uma dificuldade insuperável: e é que o Ser, a ideia do Ser isolada, diante da fluidez correntia da realidade a que se prende o nosso pensamento, cientificamente, e, portanto, logicamente, não existe.
De fato, é até um truísmo o dizer-se hoje que o valor dos nossos conhecimentos, que o objetivo dos nossos conhecimentos, está não nas coisas, mas no encadeamento das coisas. Ninguém absolutamente o nega.
Toda ciência é, sobretudo, uma coordenação de fatos presos a sistemas de relações. A realidade exterior é tão fugitiva, é tão volúvel, que ela só se nos define e só se nos fixa quando a ligamos pelos elos indissolúveis das leis em que ela se formula.
Não se compreende nenhuma ciência das coisas em si, nenhuma ciência do Ser. Compreendem-se ciências de relações. E são estas as que a Lógica acompanha, assistindo-as de perto, para julgar se as condições em que se travaram estas relações são corretas e, dadas as relações, se o resultado corresponde aos seus elementos iniciais ou formadores. Acode-me neste momento a reflexão de um homem que considero a mais pura das glórias científicas da França contemporânea, Poincaré.
Não posso repeti-lo literalmente. Mas Poincaré, em resumo, nos diz que, se por acaso um Deus conseguisse, afinal, descobrir a natureza do Ser, a natureza íntima das coisas, e pudesse falar aos nossos ouvidos terrenos, nem por isso adiantaríamos muito, por uma razão – nós não o compreenderíamos.
Eu poderia, continuando neste rumo (se não temesse abandonar o assunto, porque efetivamente não desejo abandoná-lo) mostrar também, percorrendo de relance a história da ciência, e mais particularmente das teorias científicas, que todas elas, quando desabam, trazem sempre dentro do seio, uma dessas ideias ontológicas ou absolutas.
Seria um argumento negativo. Mas poderia completá-lo, mostrando as ciências que se transfiguram e se levantam pelo simples fato de abandonarem esses elementos estranhos e dissolventes.
Sugestivo exemplo está na Física. Apesar da ação extraordinária de Galileu, ela só se sistematizou, definitivamente, e se racionalizou, e pôde francamente desencadear todo o vigor do seu método predominante, quando se viu expurgada de oito ou dez fluidos e da hipótese do calórico.
A Astronomia, constituída há tanto tempo, só se revestiu de caráter inteiramente positivo depois que a hipótese dos turbilhões varreu os anjos; postos, inexplicavelmente, por Kepler, às ilhargas dos planetas e predestinados a guiá-los com segurança nas órbitas, cujo traçado geométrico ele descobrira.
A Biologia, ao desenvolver-se, abandonou um sem número de pré-noções, submetendo-se à influência exclusiva do raciocínio experimental, instituído por Claude Bernard; e hoje, progredindo, liberta-se da própria “ideia diretriz”, que este ainda lhe deixara no seio, como último reflexo ou refúgio da finalidade.
A sociologia, até há pouco ainda, sujeitava-se exclusivamente a uma lei incompleta, ou pelo menos de aproximação muito precária, porque visava caracterizar o desdobramento evolutivo das sociedades, por sua natureza extremamente complexa, considerando uma variável única – o tempo; e tinha, a orientar-lhe as investigações, a preocupação flagrantemente metafísica de uma Humanidade ideal.
Hoje, transfigurada, progride, pela simples circunstância de ater-se à consideração dos “fatos sociais” em toda a sua extrema variabilidade.
Na Química, depara-se-nos exemplo mais expressivo. Ela surgiu, de golpe, aparelhada inteiramente, da noite para o dia, de uma experiência única de Lavoisier.
Mas, nesta experiência, ao mesmo passo que se revelava a verdade experimental da oxidação, demolia-se a velha entidade metafísica: o flogístico, de Stahl.
Poderia continuar por aí, mas prefiro cingir-me ao ponto; e é bem possível que, fixando-me nele, encontre novos argumentos.
A ideia de Ser, de substância, de essência – porque tem vários nomes esse Proteu metafísico – a ideia do Ser é um velho sonho, ou melhor, é um belo pesadelo da humanidade.
Ela surgiu, pela primeira vez, muito apagadamente, com o hilozoísmo antigo; ou antes, o hilozoísmo helênico foi a nebulosa espiritual em que ela principiou a germinar, ainda incaracteristicamente, em uma evolução indecisa. Aí, a ideia do Ser, que seria mais tarde o motivo das maiores discórdias filosóficas, está ainda in potentia, como diria Aristóteles ou o seu avatar medieval, S. Tomás de Aquino.
Então, o espírito e a matéria confundiram-se. Mais propriamente, somente a matéria, aviventada por um intenso antropormofismo, existia, vibrátil, em transfigurações excessivas, onde se iam formando os vários seres da natureza.
Compreende-se que não possa delongar-me considerando, em seus diferentes aspectos, essas concepções primitivas, a que se alia a Física, incipiente dos Iônios.
Apenas, incidentemente, notarei, a correr, uma gravíssima falta de lógica, certo, já perpetrada antes, porém mais acentuada a partir daquela quadra, na qual os máximos ancestrais do materialismo moderno se abalaram à tentativa prematura de uma síntese objetiva. Os extraordinários pensadores, entre os quais avultava Tales (que tem, como se sabe, uma posição singular na Filosofia, por ter sido o descobridor da primeira lei científica) aberraram então, realmente, da Lógica, desgarrando-se num desvio de método, cujas consequências, avolumando-se pelos séculos em fora, se constituiriam o determinante de quase todas as aberrações ou erronias filosóficas. Este desvio está na facilidade ou no alvedrio com que se estabeleceram “princípios” – princípios dos quais se tiravam depois, dedutivamente, todas as ciências. Deslembravam-se de que as verdades científicas, em começo, só se estabelecem indutivamente. E este erro propagou-se pela humanidade em fora, refletindo-se, ao mais leve exame, nos exageros de todos os sistemas filosóficos.
O nome de “princípios” nasceu e persistiu até hoje, trazendo, desde a origem, a eiva de uma clamante antinomia.
Com os Eleatas, a ideia do Ser pareceu organizar-se. Anaxágoras destacou da matéria caótica, amorfa, inerte, o nous, o espírito vibrátil e refulgente, propiciando, assim, o dualismo platônico, no qual se instituiu a hegemonia soberana das ideias sobre a matéria imperfeita e contingente.
Como quer que seja, o Ser surgiu, pela primeira vez, da fusão de dois princípios: – a matéria e a ideia.
Aristóteles caracterizou-lhes, então, as relações recíprocas: e, ao traçar, subsecutivamente, o quadro das suas categorias, promoveu a nova ideia – a ideia do ser (substantia, essentia), em chefe de classe das propriedades que ele arbitrariamente indicou para servirem de atributos comuns de todas as coisas, ou pontos de semelhança de todos os objetos do pensamento.
A escassez do tempo impossibilita-me, infelizmente, de considerar de frente a grande ilusão de Aristóteles, ao imaginar que o seu quadro de categorias representasse não já os seres como os concebemos, senão também como eles, de fato, existem na natureza; ilusão que se delatou por 15 séculos ou mais, e foi compartida pelos mais robustos espíritos ao admitirem que, naquela moldura, se refletisse a natureza toda, dos fenômenos mais elementares aos mais complexos.
O meu fim único é dizer que esta ideia lançada à frente da Filosofia, pelo maior gênio da Antiguidade, a ideia do Ser, sujeito universal dos atributos comuns de todas as coisas, nunca mais se removeu do primeiro plano das divagações metafísicas.
De pronto, não poderei discriminar todas essas divagações. Felizmente, a Metafísica tem isto de vantajoso: varia na forma; altera-se, ou transmuda-se, consoante as várias perspectivas que determina, mas os seus caracteres essenciais persistem inalteráveis. A ideia do Ser, por exemplo. Ela constituiu e constitui ainda, dos mais remotos tempos até hoje, o lastro principal de toda a Metafísica, sob os seus mais díspares aspectos.
Que é a ideia do Ser para a Metafísica?
Para a Metafísica, de um modo geral, é isto: a mais simples (e alguns aditam um superlativo impossível) – a mais simples e a mais universal de todas as ideias.
É tudo quanto existe – substância ou propriedade: é a primeira e a última palavra da ciência, porque todas as ciências têm por objeto determiná-la, analisando já o Ser em si, já o seu conteúdo, já as relações entre o Ser e os elementos que o compõem.
Assim, apareceu na Filosofia a trilogia da tese, da antítese e da síntese.
Considere-se o Ser na sua integridade perfeita, como unidade: teremos a tese; examine-se subsecutivamente o Ser em seus elementos, como multiplicidade – e teremos realizado a antítese; finalmente, façamos reagir sobre esses elementos desagregados e contrapostos, que por vezes vivamente se repulsam, a influência misteriosa do todo, originando uma harmonia suprema – e atingiremos a síntese.
Assim se faz a determinação de todos os princípios do Ser. O homem, por exemplo, é uma unidade – é a tese; o homem biparte-se em alma e corpo, em espírito e matéria – é antítese; estes dois elementos, ao cabo, se justapõem, o espírito superpondo-se à matéria sem com ela
confundir-se, uma e outro unidos, mas distintos – e assim se realiza a síntese.
Não vale a pena continuar. Neste jogo inexpressivo e inútil de palavras, o assunto é naturalmente ilimitado. Mas confesso que a minha educação filosófica, certo por demasiado modesta, me incompatibiliza de todo com essas divagações.
Só poderia enveredar por aí considerando, talvez, o lado pitoresco da questão, porque, realmente, entre Platão e Jouffroy, há numerosos espécimens, interessantíssimos e originais, de sonhadores, que, em todos os tempos e em toda a parte, tanto se afadigaram na urdidura dos romances transcendentes das ideias e dos seres.
Mas prefiro definir claramente o meu pensamento relativamente ao nosso ponto essencial; embora esse pensamento careça de originalidade, seguirei de perto os ensinamentos claros da psicologia contemporânea.
Penso que o Ser não pode constituir objeto do nosso pensamento, porque, já contemplando o mundo pela observação exterior, já contemplando o nosso eu, reflexivamente, numa introspecção profunda; num e noutro caso – do mundo e do nosso eu – as coisas que nós realmente conhecemos são as nossas sensações. Nada mais.
Toda a psicologia moderna, no seu caráter rigorosamente experimental (embora ela não abandone – porque não o deve abandonar – o método próprio, que a define, que é o da introspecção) toda a psicologia moderna nos demonstra, de maneira iniludível, o caráter mediato das nossas percepções. A sensação é o intermediário obrigatório entre a nossa inteligência e o mundo. Mais incisivamente: entre a nossa inteligência e o mundo está o nosso sistema nervoso. Nesta afirmativa reproduzo o pensamento integral da maioria dos psicólogos destes dias. Fora inútil nomeá-los.
As modificações produzidas em nossa organização nervosa pelos excitantes externos são o único objeto direto da nossa consciência. Daí se infere, naturalmente, a necessidade de distinguir a sensação – que é o único objeto direto da nossa consciência – da causa exterior, da causa que no-la produz, isto é, do objeto exterior, que não negamos. Negamos, porém, que a sensação reproduza exatamente o objeto externo. E a prova temo-la ainda nos documentos da mais remota psicologia.
Propositalmente, me estearei em experiências velhas de 200 anos, que a tanto remonta a lei da energia específica dos nervos, de Muller.
À luz desta lei, que persiste inabalável em meio de todas modificações inerentes ao próprio desenvolvimento das ciências, a natureza de nossas impressões depende menos da natureza dos agentes ou excitantes externos, que no-las determinam, que da natureza do órgão sensorial que as recebe, do cordão nervoso que as transmite ou propaga, e do órgão receptor que as recolhe.
Projetai um raio de luz numa pupila, exercei um recalque, ou pressão sobre um globo ocular; fazei que atravesse uma corrente elétrica, seccional, de um talho de bisturi, o nervo ótico… Aí, então, sem dúvida, quatro agentes, de todo em todo diferentes, produzem a mesma impressão luminosa. Por outro lado, e inversamente, um mesmo agente, variamente aplicado, pode determinar, ora uma impressão de som, ora uma impressão de cor. Não há fugir-se às consequências de tais fatos. Diante deles põe-se de manifesto quão ilusória é toda tentativa de descobrir-se a natureza íntima das coisas.
Muito provavelmente (e não sou eu quem fala, é o Diretor do Laboratório de Psicologia Experimental da Sorbonne, isto é, da mais conservadora, talvez, entre todas as instituições científicas) muito provavelmente, diz ele, fora de nós, na natureza, não há extensão, não há coisa alguma do que nos é ordinariamente dado pelas sensações.
A luz é apenas a excitação do nervo ótico. A luz brilha e refulge somente em nosso cérebro. Nada absolutamente nos diz que o excitante, o agente exterior que a propicia, seja luminoso. Em pleno deslumbramento de uma aurora, é bem possível que, em torno, fora de nós, esteja de fato a noite, a noite eterna e indescritível. O som, por sua vez, é uma excitação do nervo acústico. O ruído está todo no nosso cérebro. Nada nos demonstra que o agente externo seja sonoro. Escutemos os rumores profundos da natureza, os barulhos irritantes das cidades; em roda de nós, falam vozes amigas, estalam gritos agressivos; e os rumores e os barulhos, e as vozes e os gritos, temo-los dentro de nós mesmos. Fora de nós, está, talvez, a mudez eterna e misteriosa das coisas.
O mesmo se diria dos demais sentidos.
Destarte, bem se pode repetir com Stuart Mill, que tudo quanto podemos afirmar da realidade externa, é que ela é a causa desconhecida e misteriosa das nossas sensações.
Não poderemos ir além. O aparelho nervoso, que nos associa à realidade, é paradoxal. É um elo e um isolador. Mostramo-la, mas afastamo-la.
Ora, neste contraste explica-se a separação que se estabeleceu entre a ciência e a Metafísica; entre a Lógica e a idealidade filosófica. A ciência entrega de bom grado às temeridades da Metafísica esse Incognoscível, que existe de fato, menos talvez pela natureza que acaso possa existir nas coisas que nos rodeiam, do que em virtude da fatalidade da nossa própria natureza. A Metafísica que lhe dê, à vontade, um nome, escolhendo um S maiúsculo e denominando-o o Ser, ou um S ainda maior, dando-lhe o nome de Substância, e que se debata ansiosamente entre as voltas constritoras destes maiúsculos pretensiosos. A ciência é mais modesta; cuida apenas das relações dos fenômenos, isto é, das causas como se nos aparecem. Esta relação mútua entre as coisas é a nossa única realidade; é objeto único do conhecimento.
O que nós chamamos mundo exterior é apenas o complexo das nossas sensações; e o destino da ciência está precisamente no determinar a solidariedade em que elas se travam por meio de leis que estabeleçam as suas dependências e vibrações.
Infelizmente, a hora está muito adiantada. Não devo prosseguir atentando mais de perto no problema da nossa percepção.
Se o fizesse, veríamos que as percepções, sobretudo as externas, são síntese, sensações, algumas bastante complexas, a que se associam imagens (porque toda percepção se pode definir: uma sensação seguida por uma escolta de imagens) num travamento tão íntimo que, às vezes, nos afigura intuição imediata o que não raro traduz uma sucessão de numerosas impressões.
Estudando-as, verificaríamos com maior destaque o caráter de relatividade das nossas percepções, e demonstraríamos com mais limpidez a permanente ilusão do mundo exterior.
Ilusão ou alucinação.
Taine emitiu a este propósito um dos conceitos mais extraordinários e profundos de toda a Psicologia: “Tudo o que divisamos em torno se traduz numa alucinação verdadeira.”
A frase resiste à mais rigorosa análise na sua concisão incomparável.
Alucinação: porque tudo quando dissemos, anteriormente, prova que o denominado objeto externo é uma síntese muito intensa, travada e retravada, de sensações; verdadeira: porque é fixa, porque é superior à nossa vontade; verdadeira: porque ela impressiona igualmente aos nossos semelhantes; porque é normal, não destoa na harmonia da nossa consciência; e não é patológica.
Realizei parte da minha tarefa.
Tenho, bons ou imperfeitos, mas definidos motivos para não acreditar na ideia absoluta do Ser. Daí, o admitir também que as nossas sensações exteriores, oriundas da contemplação do mundo, e as nossas
próprias observações internas, na visão reflexiva do nosso eu, não podem cientificamente, nem legitimar logicamente os próprios conhecimentos que elas nos sugerem.
Não creio que se possa inferir destas palavras uma profissão de ceticismo.
Neste caso, seria um cético Leibniz, o mais crente dos filósofos, porque para ele também a realidade é um sonho, apenas acrescentando “um sonho bem ligado”.
Urge, entretanto, esclarecer um ponto: a ilusão a que me refiro não é a ilusão no significado vulgar – porque na realidade as sensações vão, em nossa consciência, acompanhando paralelamente as várias excitações derivadas do meio. Ora, as percepções, sendo sínteses de sensações, revelam naturalmente que este meio externo, de qualquer modo que o consideremos, existe. Para isto se faz mister que elas o retratem fielmente.
As percepções não delineiam o objeto exterior, não o desenham; não o decalcam numa semelhança completa; as percepções simbolizam-no.
A realidade, com todos os seus deslumbramentos e todos os seus aspectos infinitos, apresenta-se-nos sob a forma de um perpétuo simbolismo.
Poderemos, porventura, rompê-lo ou decifrá-lo? Podemos corrigir os efeitos desta espécie de refração espiritual que se realiza em nós? Conseguiremos ver, através do que se nos apresenta, o fato noumenal? Teremos vigor para quebrar os ídolos da nossa caverna?
Em resumo: Poderemos ter afinal uma ideia adequada e perfeita do que se chama o Ser?
Naturalmente, não.
Basta considerar-se que, desde os primeiros dogmáticos até a prodigiosa concepção de Kant, a ideia, ou pensamento, ou tentativa de descobrir a essência íntima das coisas, ou de definir as substâncias de que todas as coisas se originam como modalidades, perdeu continuamente o terreno em todo o decorrer da história, até reduzir-se (antes da elaboração da filosofia crítica, que libertaria o espírito humano dessa obsessão inútil) à substância única de Descartes, a extensão; ou à extensão e impenetrabilidade, ou resistência, de Leibniz.
Não valeu ao ideal metafísico, neste recuo, o próprio auxílio formidável de Spinoza, tentando, more geometrico, resolver o problema indecifrável.
O aparecimento de Spinoza, na Filosofia, lembra um cataclismo na região superior do pensamento.
Não se medem as ousadias de um espírito que parece haver tentado tomar de assalto o Absoluto.
Brochard o esculpiu admiravelmente. Para o filósofo holandês, é por uma sorte de intuição imediata ou visão direta que o pensamento desvenda as coisas inteligíveis. O conhecimento verdadeiro não se distingue absolutamente da realidade. A realidade, de algum modo, se impregna de pensamentos. A certeza é a própria verdade. E a verdade, reflexo superior do Ser, é, por isto mesmo, o critério de si mesma. Verum index sui.
Mais tarde, Bossuet repetiu, como um eco: A Verdade é o Ser.
Ora, em todo esse desvio ideativo, debalde procuro um lugar para a Lógica.
Se o Ser se impõe desta maneira inelutável, de modo que o simples fato da certeza racional é uma condição suficiente da realidade, o que cabe à Lógica – à velhíssima lógica dedutiva – anterior a Bacon – é apenas fornecer a estas idealizações os quadros vazios de seus monótonos silogismos para que deles se tirem as deduções mais singulares.
Neste arquitetar de construções fantásticas, ou melhor, neste alinhar os cantos de seu vasto poema filosófico, não maravilha que Spinoza – e insisto neste nome porque Spinoza é o mais típico e o maior
representante do dogmatismo metafísico – não maravilha que Spinoza, realizando o milagre de um desvairamento metódico, ao mesmo passo que harmonizava a sua mentalidade poderosíssima e desequilibrada com as argumentações mais inflexivelmente matemáticas, chegasse a extraordinárias conclusões – legítimas, todas corretas, mas inquinadas da falsidade original das premissas – entre as quais se destaca a negação do erro.
Era, talvez, o meio único de evitar o dizer-se, mais tarde, que toda a sua filosofia estava errada.
Está a esgotar-se o tempo. Terminarei recordando uma frase de um dos mais sutis e claros espíritos do final da Idade Média, César Vannini, que, como Giordano Bruno e Bacon, foi um dos paraninfos do pensamento moderno. Nesta frase, pronunciada a propósito de questões metafísicas, Vannini realiza, o que mui raras vezes acontece, o consórcio da ironia e do bom senso. Adaptando-a ao meu pensamento, direi:
A Metafísica é uma ciência soberana e adorável, de grandes e privilegiados recursos; é uma formosa ciência, que nos incute conhecimentos inestimáveis e raros; mas é uma ciência que só se deve estudar quando se é velho, rico e alemão. [risos]
As duas últimas condições dizem de modo iniludível que jamais estudarei Metafísica.
Sendo assim, persistirei tranquilamente nas últimas linhas dos criticistas irredutíveis e tranquilos, e indiferentes a todas as inúteis indagações, perenemente insolúveis.
[palmas]
Rio de Janeiro, 25 de maio de 1909
Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, n. 158, 8 de junho de 1909, p. 1
Foram classificados no Concurso de lógica do Ginásio Nacional: em 1º lugar Dr. Farias Brito, em em 2º o Dr. Euclides da Cunha.
CUNHA, Euclides da. A ideia do Ser. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Dispersos e fragmentos. São Paulo, 2021. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/dispersos-e-fragmentos/a-ideia-do-ser/. Acesso em: [data]. Transcrito de: CUNHA, Euclides da. Obra completa. Outros contrastes e confrontos. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1. p. 609-618. Publicada originalmente no Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 28 maio 1909. p. 2. Prova oral do concurso de Lógica no Ginásio Nacional (atual Colégio Pedro II), realizada em 17 de maio de 1909.
Ver também A verdade e o erro (prova escrita)