Regatão sagrado

Há uns vinte anos, o bispo do Pará, d. Antônio de Macedo Costa, comovido diante da decadência dos costumes amazônicos, planeou construir o Cristóforo – navio-igreja ou vasta basílica fluvial com os seus campanários, os seus púlpitos, os seus batistérios, os seus altares e o seu convés afeiçoado em nave – flutuando perpetuamente sobre as grandes águas, indo e vindo em constantes giros dos mais populosos rios aos paranás mais desfrequentados, por maneira que, das cidades ribeirinhas aos vilarejos mais tolhiços e sem nome, onde ele ancorasse nas escalas transitórias, se difundissem os influxos alentadores da fé, e descessem sobre as gentes simples, relegadas da cultura humana o consolo, a surpresa magnífica e o encanto das repentinas visitas do bom Deus em viagem.

A ideia não se efetuou; e foi pena. Ela denunciava, documento sobre a índole romântica do prelado, um lúcido conhecimento dos homens, e tato sutilíssimo de verdadeiro apóstolo sabedor do império surpreendente dos símbolos e das imagens.

Imagine-se a cena: um arraial longínquo, adormecendo ao cerrar da noite, entristecedoramente, na quietitude daquelas solidões monótonas; e despertando na antemanhã seguinte com uma catedral ao lado, feito a metrópole de um dia da civilização errante. No alto da barranca, despertas pelos sinos, as gentes surpreendidas, em massa, vistas pasmadas, já não reconhecem o próprio chão onde nasceram e assistem. Um milagre tangível: ao invés da […]

Como citar
CUNHA, Euclides da. Regatão sagrado. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Dispersos e fragmentos. São Paulo, 2021. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/dispersos-e-fragmentos/regatao-sagrado/. Acesso em: [data]. Reprod. sem as notas do editor de: CUNHA, Euclides da. Regatão sagrado (Manuscrito em caderneta, c. 1906-9). In: CUNHA, Euclides da. Ensaios e inéditos. Coord. Leopoldo M. Bernucci, Francisco Foot Hardman, org. estabel. de texto, prefácio e notas por Leopoldo M. Bernucci, Felipe Pereira Rissato. São Paulo: Editora UNESP, 2018. p. 91-3. Fonte: Cecil H. Green Library, Stanford University.