Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 22 de junho de 1894
Minas possui ruínas antigas e cheias de majestosa tristeza — embora não se traduzam por imponentes escombros de muralhas derruídas, palácios soterrados de cidades extintas, restos de colunas, vastos ornamentos de dolmens seculares ou imemoriais monumentos ciclópicos, desses que irrompem as idades, indestrutíveis, graças à prodigiosa argamassa que lhes une as moles superpoderosas — o peso.
Os que sondam o seio da lendária terra, estão bem certos que ele não os surpreenderá com um pedaço de mármore, admiravelmente talhado e animado pelo vigor eterno de algum gênio antigo.
A nossa breve história, o nosso passado de ontem ainda, ao invés do da antiguidade clássica, não se traduz por um povo imortal de estátuas, falando através do majestoso ritmo dos poemas. Perde-se na penumbra de impérvias florestas, resumido nas lendas ingênuas das tribos. Não precisamos, para estudá-lo, decifrar velhíssimas inscrições, abertas em faces de obeliscos, ou ressuscitar a linguagem morta dos papiros.
Apesar disto, porém, quem segue o roteiro penoso de uma estrada mineira, interrompe muitas vezes o curso da viagem, divisando, inesperadamente, ao longe, no extremo do horizonte, a aparição fantástica quase, de uma cidade imensa…
Altas e agudíssimas ogivas, perdendo-se no espaço, n’um arranco insensato para os céus, como as que há trezentos anos tão bem caracterizavam os exageros da arquitetura gótica e os delírios da fé; deprimidas basílicas, imponentíssimas e amplas, lembrando templos de Bizâncio; colunas policromas, meio derrocadas umas, altaneiras outras, nos peristilos de partenons serenos e elegantes; circos romanos, disformes coliseus; pórticos e arcarias vastíssimas estampam-se ante o olhar deslumbrado, iludido. Incoerente amálgama de todas as ordens arquitetônicas, onde tumultuam as mais discordantes ficções da arte humana, disseminadas, desde a desordem sistemática dos arabescos à áspera rudeza dos menires, desde a harmonia retilínea das fachadas gregas às voltas suavíssimas das volutas!…
Quem observa semelhante cenário – adormida a razão, altamente expandida a fantasia – completa os enganos da miragem, vendo um como fervilhar de multidões distantes, em longínquo rumor de vida soberana. Esporeia o cavalo, vinga rapidamente a distância que o isola da olímpica cidade e antolham-se-lhe então em frente, desoladas e ermas, as velhas Catas mineiras, rodeadas pelo silêncio majestoso dos sertões.
Vi-as, pela primeira vez, após um dia entregue todo à faina improdutiva de mineralogista principiante, à cata de humílimos espécimes de calcário, procurando as cores fracas das dolinas, no mesmo local onde há um século afanosamente se procurava o ouro.
Vastas, tintas pelo vermelho duro de óxido de ferro que as cobre, envoltas pelos últimos lampejos do poente, com as suas profundas erosões, cortes a prumo, bizarros acidentes, derramando-se pelas encostas das colinas afastadas – patenteavam aspecto belíssimo e grandioso.
Passara por ali a febre esterilizadora, o bafejo causticante da ambição humana.
Há um século, talvez, agitara-os um simulacro de vida, defluido da existência revolta dos garimpeiros; sociedade aventurosa e atumultuada, vivendo através de uma vertigem, agitando-se sem progredir, e cuja feição moral, como que se estampou indelevelmente no próprio aspecto singular, movimentado e imóvel, das Catas desoladas e tristes.
Toda a sua vida, fugaz, extinguiu-se ao cintilar no solo a última esquírola de ouro. Hoje, em flagrante contraste com a natureza exuberante que as rodeia, revolvidas e imóveis, elas recordam trágicas cidades bíblicas subitamente paralisadas, peadas à maldição incoercível dos profetas.
Penetrar-lhes o seio é trocar a fantástica necrópole pela miniatura do caos. Montanhas de barro, monstruosas e informes, orientadas em todas as direções, e cujos donos, aspérrimos, como que conservam ainda sulcos indeléveis de garras; depressões escuríssimas e fundas; amplas galerias, desordenadas, cruzando-se; criptas profundas, cumuladas de treva…
Nem um arbusto lhes suaviza a estranha monotonia. Cinge-lhes a trama, impenetrável, às vezes, das florestas virgens, em cujos seios, perene e surda, trava-se luta prodigiosa pela vida. Mas a planta que não consegue a distinção das lianas para fugir à sombra, morre à míngua de luz, sem invadir-lhes o espaço vazio e iluminado.
Foram-lhes roubados com o ouro todos os elementos da vida. Elas permanecerão perenemente estéreis. São como um documento eterno dos desvarios da nossa existência nacional. Abriu-as nos sertões a onda tumultuosa dos Bandeirantes. Estes, que podiam constituir o nosso único título para uma epopeia brasileira, têm, é certo, à primeira vista, nas marchas aventurosas, lampejos de heroicidade.
Seguir-lhes a rota, porém, é procurar os cenários de espantosos dramas. Realizaram uma antítese assustadora – invadiram a própria pátria. Sem um ideal, jungidos à vertigem da riqueza, agindo automaticamente, sob a obsessão de atraentes Eldorados, a sua marcha não foi, certo, um êxodo do regímen colonial para o seio de uma nacionalidade futura que intentassem construir, afastados do litoral, longe dos galeões da metrópole – no meio dos sertões.
Iluminou-a do começo ao fim o incêndio das malocas, definiu-a sempre o assalto brutal e criminoso à terra. Quando passavam, mais tristes permaneciam as chapadas incultas, cheias da derrocada das tabas, da imensa dor das tribos espavoridas, cobertas pela ruinaria eterna das catas…
É por isto talvez que estas desdobram o aspecto desolado de vastas cidades mortas. Abortos monstruosos da atividade inconsciente, na faina de procriar ruínas, noto-lhes, entretanto, hoje, uma função qualquer, civilizadora talvez para alguns, consoladora com certeza para muitos.
Aos crentes e fortes, alentados pela aspiração augusta e por ventura altruísta, de oferecer todas as energias ao levantamento moral da sua terra, dizem na eloquência silenciosa da própria desolação, todos os perigos e males que encalçam aos povos que se não nacionalizam à luz de um verdadeiro ideal, jazendo como acampados apenas numa certa zona do globo; aos fracos e desalentados, aos velhos de cabelos pretos, afistulados de desilusões em plena mocidade… Sei de um que abandonou um dia o meio rendoso de opulenta capital, repleta de toda alacridade embriagadora das ovações triunfais, transudando brilhos ofuscantes, animada pelo constante deambular de multidões febris – e sente-se melhor nesta hora no seio silencioso de uma cata deserta – fantástica cidade de uma população de duendes…
Euclides da Cunha
Campanha, 29 de maio de 1894.
CUNHA, Euclides da. As catas. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Crônicas. São Paulo, 2021. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/cronicas/as-catas. Acesso em: [data]. Publicado originalmente em: Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 22 jun. 1894, p. 2. Reprod. sem as notas dos editores de: CUNHA, Euclides da. Ensaios e inéditos. org. e coord. Leopoldo M. Bernucci e Felipe Pereira Rissato. São Paulo: Editora Unesp, 2018. pp. 73-9.
Ver também poema As catas