Uma entrevista com o dr. Euclides da Cunha

Jornal do Commercio, Manaus, 29 de outubro de 1905

Os trabalhos da comissão brasileira de reconhecimento do alto Purus

Um dos nossos companheiros procurou o sr. dr. Euclides da Cunha, competente engenheiro, chefe da comissão brasileira de reconhecimento do alto Purus, e solicitou desse nosso ilustrado patrício uma entrevista acerca da viagem que fez àquelas paragens, no desempenho da importante incumbência que lhe cometera o governo federal.

Ao nosso representante o sr. dr. Euclides da Cunha deu cativante e gentil acolhida, fazendo, no entanto, algumas ponderações sobre o que ele desejava e atinentes ao caráter da comissão que chefia, criteriosamente referindo que nem tudo podia informar, em virtude de determinadas circunstâncias que expôs e que bem mostram a compreensão que tem o festejado homem de letras, de seu árduo encargo.

Nem só isso, porém, fazia com que o chefe da comissão se reservasse a atender em tudo ao justificado propósito do nosso companheiro; a modéstia que caracteriza o preclaro escritor concorria também para a sua excusa à solicitação do representante do JORNAL.

Por fim, o sr. Euclides da Cunha, que bem conhece os trabalhos da imprensa e até que ponto os seus obreiros levam a sua pertinácia para fornecer ao público não só as notícias dos casos triviais, senão também a nova dos fatos relevantes, como este de que tratamos, se dispôs a dar ao nosso companheiro os esclarecimentos infra sobre a mencionada viagem da comissão que dirige.

Pelo que se lê a seguir pode-se fazer ideia segura das mil e uma dificuldades encontradas nesse percurso por tão afastadas paragens, como também é fácil avaliar quanto esforço e quanto heroísmo foi necessário empregar para conjurar os tropeços de tão arriscado empreendimento.

Foi a seguinte a resposta que o sr. Euclides da Cunha deu à nossa primeira pergunta, resposta que abrange quanto nos podia dizer o ilustre chefe da comissão questionada e que, cabalmente, nos satisfez:

— Que houve de mais importante na dificultosa viagem da comissão brasileira de reconhecimento do alto Purus?

Responderei apenas à sua primeira pergunta, fazendo-o de modo a dar uma apagada resenha da nossa viagem e assim procedo porque, avaliando as reservas que devem existir em trabalhos desta natureza reservas que ao meu ver devem estender-se aos últimos pormenores técnicos não desejo romper com uma utilíssima praxe.

Farei, portanto, uma breve narrativa, restringindo-a a assuntos que entendam o menos possível com os deveres profissionais.

Partindo de Manaus a 5 de abril aqui aportamos, de volta, a 23 do corrente; seis meses e meio. Para muitos isto foi um prodígio de celeridade, dada a quadra imprópria em que seguimos.

Mas o fato explica-se pela própria natureza da comissão. Íamos em trabalhos dessa engenharia expedita em que uma vasta série de observações e estudos colhidos no menor tempo possível compensem largamente o grau inferior de precisão nos resultados conseguidos. De fato, o que importava, sobretudo, era um juízo claro e pronto, de conjunto, das regiões atravessadas, uma síntese enfeixando-lhes os aspectos predominantes – relegando-se naturalmente a indagações ulteriores, pormenorizadas e lentas, todas as outras faces, numerosíssimas, que nos patenteia qualquer paragem perlustrada, e que vão, numa complexidade crescente, do simples fato astronômico da determinação das coordenadas às manifestações variadíssimas da Vida.

Realmente, para o engenheiro, num reconhecimento, a rocha, a flor, o animal surpreendido numa volta do caminho, um recanto de floresta, um pedaço de rio enovelado em corredeira ou desatado em estirões, e as mesmas estrelas que ele prende por um instante nas malhas dos retículos, tudo o que se lhe agita em roda deve impressioná-lo e interessá-lo, mas não o prende, não o manieta e não o remora.

Nós podíamos avançar aforradamente, e fizemo-lo visando ressarcir o tempo que se perdera em Manaus.

Entretanto, levamos ainda um mês para chegarmos à boca do Acre; e quinze dias depois, a 21 de maio, tivemos de estacar antes da confluência do Chandless, em virtude do lamentável naufrágio do batelão “Manuel Urbano”, onde iam os nossos gêneros. Retidos pelo doloroso incidente, que nos desaparelhava de recursos precisamente à entrada do deserto, e impunha a reorganização da comissão enfraquecida justamente na ocasião em que deviam multiplicar-se as suas energias para investir com o desconhecido – somente em começos de junho abalamos da boca do Chandless para a frente.

Íamos em canoas, e se considerardes que os seus tripulantes empunhavam pela primeira vez os varejões e os remos, se atenderdes que o rio, esgotado, impunha os máximos resguardos no se evitarem choques em paus e encalhes nos baixios, e se somardes todas as paradas obrigatórias nas estações em que avaliávamos as distâncias com a luneta de Lugeol – ajuizareis de todo o nosso desapontamento e quase desânimo resultantes de um confronto da nossa marcha ronceira de 3 a 4 milhas diárias e o desmedido da distância a percorrer.

Estas coisas, porém, foram melhorando em marcha: o soldado ou o trabalhador bisonho a pouco e pouco se transmudou no varejador desempenado, e a observação persistente do regime das águas esclareceu os proeiros no se desviarem dos sucessivos obstáculos, de sorte que, duplicada a breve trecho a nossa marcha, fomos atingindo as principais escalas do roteiro.

A 3 de junho, chegamos a “Novo Lugar”, onde estacionara a comissão administrativa brasileira, tolhida pela vazante; a 21, estávamos em Cataí; a 29, em Curanja. Compensáramos bem, nessa arrancada, parte do tempo que se perdera.

Partimos de Curanja a 5 de julho, depois de breve demora para se regularem os nossos cronômetros, e zarpamos para a Forquilha longínqua do Purus.

Íamos para o misterioso. Não pode negar-se que até aquela data existia entre nós e as nascentes do Purus, descido um desmesurado telão, escondendo-no-las. Ademais, no caserío de Curanja, onde fomos bem acolhidos, avultavam, mais desanimadores, os informes relativos aos lugares que íamos atravessar.

Concluía-se que eram impenetráveis, somente acessíveis às ubás ligeiras dos caucheiros tripuladas pelos amauacas mansos. Multiplicavam-se os paus, as pedras e baixios que trancavam o rio. Repontavam os obstáculos novos das cachoeiras, no leito, e grandes tremedais às margens dos rios esgotados, e, cumulando tais empeços, ao cabo, o antagonismo formidável dos “campas” destemerosos. Citava-se o homicídio de um empregado da casa Arana, desta cidade, e apensos a este caso verídico, sem-número de outros vinham engravescer os desalentos, dando-nos a quase certeza de que não poderíamos ir muito longe. E como experimentado caucheiro de Curanja nos marcara 17 dias para chegarmos a Forquilha, imaginamos efetuar esta travessia em 25, pelo menos.

Fizemo-la em 13. A diferença é expressiva e dispensa maior comentário no delatar o afogado da sulcada.

Contribuiu, certo, para isso a mudança do clima que rapidamente varia, tornando-se muito superior ao dos lugares a jusante.

A própria praga de carapanãs, piuns e mantas blancas que para baixo tortura por tanta maneira o viajante, ali desaparece; e numa constância admirável, sem repentinas transições de temperatura e sem a pesada umidade que para logo sentimos no mesmo reanimar-se das nossas disposições para o avançamento. Mas por outro lado, lá estavam, tangíveis, as grandes dificuldades contra as quais combateríamos, impotentes.

Duvidávamos da subida. No rio “Cujar”, que conduz ao varadouro por assim dizer oficial, percorrido até hoje pelos que demandam Iquitos, pelo Ucaiali, aguardavam-nos, à parte dos bancos de areia e paus, 74 cachoeiras. Se as transpuséssemos chegaríamos ao “Cavaljani”, onde os entraves redobrariam ao lado dos mesmos empecilhos das quedas-d’água… Depois viria a passagem penosíssima do Pucani, para afinal entrar-se no “varadouro”.

No Curiúja idênticos obstáculos.

Sobre tudo isto, a ameaça dos “infieles”. Duas horas antes de alcançarmos aquele ponto, tínhamos visto, atirado no barranco esquerdo do rio, num claro, entre as frecheiras, o cadáver de uma mulher, uma amauaca. Fora, ao que colhemos depois, trucidada pelos bárbaros, que rondavam por perto numa ameaça permanente e surda.

Vede bem: íamos como na complicada urdidura de um conto oriental; os trabalhos cresciam-nos à medida que os vencíamos.

Assim partimos da Forquilha, confluência do Cujar e do Curiúja, para a frente.

E fomos à meia estação. Demandávamos paragens despovoadas e os víveres que levávamos, no máximo para 25 dias, reduziam-se a carne seca, farinha que se acabou ao fim de 12 dias, um pouco de açúcar que tenazmente poupado, durou 3, meio garrafão de arroz, uns restos de bolacha esfarinhada, que uma chuva repentina diluiu, e algumas latas de leite condensado.

Propositadamente, apresento esta lista. É eloquente.

Prosseguimos a 24 – e vimos logo o fundamento das informações obtidas. Na parte inferior, antes do primeiro rápido, o Cujar, desenrolado em estirões, alargando-se não raro de modo desproporcionado às suas águas escassas, dificultou a passagem pelos longos e contínuos baixios, indo de uma a outra margem, sem o mais estreito canal que evitasse o exaustivo serviço do arrastamento das canoas. Um empeço novo, aparentemente desvalioso, aparecera na vegetação característica de suas margens, orladas de “buchiticas” (Calliandra trinervia), leguminosa admiravelmente artística, cujos ramos distendidos horizontalmente e repousando sobre as águas, tomavam em largos tratos os trechos de melhor acesso. Desta sorte, antes mesmo de galgarmos a parte encachoeirada, tivemos tresdobrada a luta que traváramos desde a confluência do Chandless e vimo-la engravescida pela impropriedade das nossas embarcações, mui diversas das ubás aligeiradas, únicas que se afeiçoam àquele rio.

Atingido o primeiro rápido vimos para logo, à parte os inconvenientes próprios à sua passagem, uma causa inevitável de demora na baldeação, por terra, prolongando os barrancos dos nossos cronômetros, já tão duramente batidos pela navegação anterior.

Transmontamo-lo; e dali por diante, numa intercadência invariável, numa sucessão intervalada de degraus, se nos antepuseram aquelas barreiras, vencidas não raro a pulso, lentamente arrastadas as canoas sobre as pedras, quando não exigiam o supletivo de sirga ou cabos de segurança, reagindo à violência tumultuária da correnteza.

A natureza do terreno mudara.

Revelaram-no as pedras que afloram por toda a banda, formando quase todo o leito do rio.

São evidentemente rochas sedimentárias, mas sob os dois aspectos que patenteiam, já finamente granuladas, já em grosseiros conglomerados, recordam na consistência e rijeza os quartzitos e granitos. A combinação ou separação de ambos forma os vários tipos de quedas, que ora tombam, ex abrupto, de um salto único, ora em repetidos socalcos, ou então em planos clivosos, eriçados de pontas ou atravancados de blocos desmantelados.

Assim varávamos os meios para vencê-las. Não os apresentarei para não dilatar esta resenha – assim como nada direi sobre sofrimentos, que se prevêem, para fugir à triste contingência de fazer reclame de sacrifícios.

No dia 30 de julho, alcançamos a confluência do Cavaljani. Estávamos nas cabeceiras do Purus.

Prosseguimos – chegamos no dia 3 de agosto, às 12 e 55 minutos, à entrada do Pucani; e às 12 e 58 desembarcados, penetrávamos na estreita quebrada que leva ao varadouro. Note esse intervalo. Não podíamos parar. Os nossos gêneros esgotavam-se e estávamos em pleno deserto…

O Pucani tortuoso, estreito de uns três metros e em geral raso, foi percorrido a pé, transpostos os profundos poços em que intermitentemente se afunda, pelos atalhos que lhe ladeiam os barrancos, dentro do mato. Sem guias, não nos transviamos por uma outra quebrada igual, que lhe aflui à esquerda, graças às latas vazias, de conservas e de pólvora, que íamos a espaços encontrando – de sorte que, às 3 e 15, ao chegarmos a um último poço, deparávamos, retilíneo, atrevidamente arremessado por uma vertente fortíssima – o sulco do varadouro…

Extremam-no quatro tambos de paxiúba, onde se acolhem os viajantes e se guardam as mercadorias. Em roda, por todos os lados, latas vazias de conserva, garrafas, e uma velha ferragem espalhada, delatavam a escala forçada dos que por ali passam e um tráfego relativamente grande.

O varadouro, largo de um metro, abre-se adiante, para o sul. Empina logo em ladeira e muito mais íngreme do nosso lado, descamba depois, mais suavemente, em três pequenos socalcos, para o vale do Ucaiali. Em alguns minutos estávamos no seu ponto culminante, e não conseguimos, absolutamente, observar o aneróide.

O sol descia para os lados do Urubamba… Os nossos olhos deslumbrados abrangiam, de um lance, três do maiores vales da Terra; e naquela dilatação maravilhosa dos horizontes, banhados no fulgor de uma tarde incomparável, o que eu principalmente distingui, irrompendo de três quadrantes dilatados e trancando-os inteiramente – ao sul, ao norte e a leste – foi a imagem arrebatadora da nossa Pátria que nunca imaginei tão grande.

Fiquemos nesta altura…

*

Resta-nos agradecer ao sr. dr. Euclides da Cunha a atenção cavalheirosa dispensada ao representante do JORNAL que rende ao digno engenheiro as homenagens a que fazem jus os seu belo espírito e altas qualidades de perfeito cavalheiro.

Como citar
CUNHA, Euclides da. Uma entrevista com o Dr. Euclides da Cunha: os trabalhos da comissão brasileira de reconhecimento do alto Purus. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Discursos e entrevistas. São Paulo, 2021. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/discursos-e-entrevistas/uma-entrevista-d…uclides-da-cunha. Acesso em: [data]. Publicado originalmente em: CUNHA, Euclides da. Uma entrevista com o Dr. Euclides da Cunha: os trabalhos da comissão brasileira de reconhecimento do alto Purus. [Entrevista cedida ao] Jornal do Commercio. Manaus, ano 2, n. 579, 29 out. 1905. p. 1.