O Estado de S. Paulo, 21 de abril de 1903
O forasteiro que no último quartel do século XVIII demandasse os povoados mineiros, eretos da noite para o dia na extensa zona do distrito diamantino, sentia a breve trecho o mais completo contraste entre a aparência singela daqueles modestos vilarejos e as gentes que neles assistiam. Entrava pelas ruas tortuosas e estreitas ora marginando as lezírias dos córregos em torcicolos, ora envesgando, clivosas, pelo viés dos pendores, ladeadas de casas deprimidas de beirais desgraciosos e saídos; percorria-as calcando um áspero calçamento de pedras malgradadas; desembocava num largo irregular onde avultava a picota octogonal do pelourinho, ameaçadora e solitária; deparava mais longe duas ou três pesadas igrejas de taipa; e certo sentiria crescer a desoladora saudade do torrão nativo se naquele curto trajeto não se lhe antolhassem singularíssimos quadros.Surpreendiam-no, empolgantes, o excesso de vida daqueles recantos sertanejos e o espetáculo original da Fortuna domiciliada em pardieiros.E se conseguisse abarcar de um lance a multidão doudejante e inquieta que atestava as vielas e torvelinhava nas praças, teria a imagem estranha de uma sociedade artificial, feita de elementos díspares transplantados de outros climas e mal unidos sobre a base instável dia a dia destruída, ruindo solapada pela vertigem mineradora — da própria terra em que pisavam.Acampado nos cerros o povo errante levava para aqueles rincões — escalas transitórias ocupadas à ventura — todos os hábitos avoengos que não afeiçoavam ao novo meio. E estadeava todos os seus elementos incompatíveis fortuitamente reunidos, mas repelindo-se pelo contraste das posições e das raças: — dos congos tatuados que moirejavam nas lavras, com a rija envergadura mal velada pelas tangas estreitas ou rebrilhando, escura, entre os rasgos das roupas de algodão; aos contratadores ávidos e opulentos passando por ali como se andassem nas cidades do reino, entrajando as casacas de veludo, de portinholas e canhões dobrados, abertas para que se visse o colete bordado de lantejoulas, descidas sobre os calções de seda de Macau atacados com fivelas de ouro. A grenha inextricável do africano chucro contrastava com a cabeleira de rabicho, empoada e envolta de um cadarço de gorgorão rematando numa laçada, do peralvilho rico; a alpercata de couro cru estalava rudemente junto do sapato fino, pontiagudo, cravejado de pérolas, do reinol casquilho, graciosamente bamboleante com o andar que ensinavam os “mestres de civilidade”; o cacete do guarda-costas vibrava próximo do bastão de biqueira de ouro, finamente encastoado; e o facão de cabo de chifre, do mateiro, fazia que ressaltassem, mais artísticos, os brincos de ourivesaria dos floretes de guarnições luxuosas dos fidalgos recém-vindos.
Ia-se de um salto de uma camada social a outra.
Parecia não haver intermédios àquela simbiose da Escravidão com o Ouro, porque não havia encontrá-los mesmo no agrupamento incaracterístico, e mais separador que unificador, dos solertes capitães-do-mato, dos meirinhos odientos, dos bravateadores oficiais de dragões, dos guarda-mores, dos escrivães, dos pedestres e dos exatores, açulados pelas ruas, farejando as estradas e as picadas, perquirindo os córregos e os desmontes, em busca do escravo, filando-se às pernas ágeis dos contrabandistas, colados no rastro dos contraventores, espavorindo os faiscadores pobres, e inquirindo, indagando, prendendo, intimando, acionando e, quase sempre, matando…
Sobre tudo isto dois tremendos fiscais que a corte longínqua despachara apercebidos de faculdades discricionárias, o ouvidor da comarca e o intendente dos diamantes.
Tinham a tarefa fácil de uma justiça que por seu turno se exercitava entre extremos, monstruosa e simples, mal variando nos “termos de prisão, hábito e tonsura”; oscilando em mesmices torturantes, da devassa ao pelourinho, do confisco à morte, dos troncos das cadeias aos dez anos de degredo em Angola.
É que a terra farta, desentranhando-se nos minérios anelados, não era um lar, senão um campo de exploração predestinado a próximo abandono quando as grupiaras ricas se transmudassem nas restingas safaras, e fossem avultando, maiores, mais solenes e impressionadoras, sobre a pequenez dos povoados decaídos, as Catas silenciosas e grandes — montões de argila revolvidos e tumultuando nos ermos à maneira de ruínas babilônicas…
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Mas fora da mineração legal adscrita na impertinência bárbara dos alvarás e cartas régias, trabalhada de fintas, alternativamente agravada pelo quinto e pela capitação exaurida a princípio pelos contratadores e depois pela extração real, estendera-se intangível, e livre, e criminosa, irradiante pelos mil tentáculos dos ribeirões e dos rios, desdobrando-se pelos tabuleiros ou remontando às serras, a faina revolucionária e atrevida dos garimpos. Despejados dos arraiais; esquivos pelas matas que varavam premunidos de cautelas porque não raro no glauco das paisagens coruscavam, de golpe, os talins dourados e os terçados dos dragões girando em sobre-rondas céleres; caçados como feras — os garimpeiros, incorrigíveis devassadores das demarcações interditas, davam o único traço varonil que enobrece aquela quadra.
Vinham de um tirocínio bruto de perigos e trabalhos, nas velhas minerações; e, únicos elementos fixos numa sociedade móvel, de imigrantes, iam capitalizando as energias despendidas naqueles assaltos ferocíssimos contra a Terra.
Desde as primitivas buscas pelos leitos dos córregos, dos caldeirões e das itaipavas, com o almocrafe curvo ou a bateia africana, na atividade errante das faisqueiras; aos trabalhos nos tabuleiros, arcando sob os carumbés refertos, ou vibrando as cavadeiras chatas até aos lastros ásperos dos nódulos de hematite das tapanhuacangas; às catas mais sérias, às explorações intensas das grupiaras pelos recostos dos morros que broqueados de cavas circulares e sarjados pelas linhas retilíneas e paralelas das levadas, desmantelados e desnudos, tornavam maiores as tristezas do ermo; e, por fim, à abertura das primeiras galerias acompanhando os veios quartzosos, mas sem os resguardos atuais, tendo sobre as cabeças o peso ameaçador de toda a massa das montanhas — eles percorreram todas as escalas da escola formidável da força e da coragem.
Vibraram contra a natureza recursos estupendos.
Abriam canais de léguas ajustados às linhas das cumeadas altas; e adunando a centenas de metros de altura, em vastos reservatórios, as águas captadas, rompiam-nos.
Ouviam-se sons das trompas e buzinas prevenindo os eitos de escravos derramados nas encostas, para se desviarem; e logo após uma vibração de terremoto, um como desabamento da montanha, a avalanche artificial desencadeada pelos pendores, tempesteando e rolando — troncos e galhadas, fraguedos e graieiros, confundidos, embaralhados, remoendo-se, triturando-se, descendo vertiginosamente e batendo embaixo dentro dos amplos mundéus onde acachoava o fervor da vasa avermelhada lampejante das palhetas apetecidas…
Desviavam os rios; invertiam-lhes as nascentes; ou torciam-nos, cercando-os; e por vezes alevantavam-nos, inteiros, sobre os mesmos leitos. Todo o Jequitinhonha, adrede contido e alteado por uma barragem, derivou certa vez por um bicame colossal, de grossas pranchas presas de gastalhos, deixando em seco, poucos metros abaixo, o cascalho sobre que fluía há milênios… E ali embaixo, centenares de titãs tranquilos, compassando as modinhas dolentes com o soar dos almocrafes e alavancas, labutavam, cantando descuidados, tendo por cima o dilúvio canalizado…
Assim foram crescendo.
De sorte que quando a metrópole, exagerando a antiga avidez ante a fama dos novos “descobertos”, se demasiou em rigores e prepotências para tornar efetivo o monopólio da extração, isolando aquela zona de todo o resto do mundo, dificultando as licenças de entrada e os passaportes, multiplicando registos e barreiras, extinguindo os cerreios, e tentando mesmo circunvalar as demarcações não lhe bastando o permanente giro das esquadras de pedestres, baldaram-se-lhe em parte os esforços ante os rudes caçadores furtivos da fortuna, inatingíveis às fintas, às multas, às tomadias, aos confiscos, às denúncias, às derramas; e que aliados aos pechilingueiros vivos, aos tropeiros ardilosos passando entre as patrulhas com o contrabando precioso metido entre os forros das cangalhas, aos comboieiros que enchiam os cabos ocos das facas com as pedras inconcessas ou aos mascates aventureiros intercalando-as nos remontes dos coturnos grosseiros — estendiam por toda a banda, até ao litoral, a agitação clandestina, heróica e formidável.
“Desaforados escaladores da terra!…” invectivavam as ríspidas cartas régias, delatando o desapontamento da corte remota ao pressentir escoarem-se-lhe as riquezas pelos infinitos golpes que lhe davam nos regimentos aqueles adversários.
E armou contra eles exércitos.
Bateram longamente os caminhos as patas entaloadas dos corpos de dragões.
Adensaram-se em batalhões as patrulhas errantes e dispersas dos pedestres; e avançaram ao acaso pelas matas em busca dos adversários invisíveis.
Os garimpeiros remontavam às serras; espalhavam-se em atalaias; grupavam-se em guerrilhas diminutas; e por vezes os graves intendentes confessavam aos conselhos de ultramar a “vitória de uma emboscada de salteadores”.
Finalmente se planearam batalhas.
Rijos capitães-generais, endurados nas refregas da Índia, largaram dos povoados ao ressoar das preces propiciatórias e sermões, chefiando os terços aguerridos, e arrastando penosamente pelos desfrequentados desvios as colubrinas longas e os pedreiros brutos.
Mas roncearam, inutilmente pelos ermos.
Enquanto à roda, desafiando-os, alcandorados nos itambés a prumo; relampeando no súbito fulgir das descargas, das tocaias; derivando em escaramuças pelos talhados dos montes; arrebentando à boca das velhas minas em abandono de repente escancaradas numa explosão de tiros — os “desaforados escaladores da terra”, os anônimos conquistadores de uma pátria, zombavam triunfalmente daqueles aparatos guerreiros, espetaculosos e inofensivos.
Euclides da Cunha
CUNHA, Euclides da. Os batedores da Inconfidência. EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Crônicas esparsas. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/cronicas/. Acesso em: [data]. Gentilmente digitalizado por Felipe P. Rissato.