Atos e Palavras [1893]

O Estado de S. Paulo, 20 de Abril de 1893

Rio, 17 de abril de 1893

Escrevo considerando a perigosa e crescente progressão que seguem os negócios do Rio Grande, os quais parecem atingir agora o seu período agudo, justamente na ocasião em que se anuncia, oficialmente quase, uma modificação séria no governo — a próxima demissão, a pedido, dos secretários da Fazenda e da Marinha.Este último fato tem com o primeiro uma dolorosa solidariedade — ambos caracterizam a assustadora quadra que atravessamos; ambos denunciam toda a desorientação do presente e todos os perigos do futuro.Realmente é difícil definir-se de pronto qual mais desanimador — se o espetáculo do Rio Grande convulsionado pela revolta ou se este abandono do poder, na iminência do perigo, na hora solene das responsabilidades!Digamos francamente a verdade.

Embora constitucionalmente irresponsáveis, pesa sobre os demissionários responsabilidade moral suficiente para que um tal ato se pareça com uma deserção em combate.

Segundo afirmam, os dois eminentes cidadãos assim procedem afim de concorrerem na próxima eleição presidencial; destinam-se ao sufrágio do povo e acreditam poder, em troca de problemáticos serviços no futuro, substituir os esforços que lhes requerem as dificuldades de hoje.

Sob a guarda de um acha-se a fortuna e o crédito do país, sob a de outro grande parte da sua força ativa; ambos mais ou menos afeitos à gestão de tais negócios compreendem todas as dificuldades que assaltarão a quem quer que neles se queira iniciar, sobretudo numa época agitada; apesar disto retiram-se — e não se retiram desalentados, fugindo a uma posição para a qual sejam fracos; retiram-se repletos de esperança e vigor, em busca de uma missão mais árdua, a suprema direção dos negócios, animados de um fortíssimo, extraordinário e notável amor pela Pátria…

É uma singular mania de patentear dedicação pelos destinos de um povo.

Por mais nobre que por acaso seja esta atração do futuro ela deslumbra até à cegueira os candidatos de amanhã; não se vai ao futuro saltando sobre o presente; ele está em função de todos os perigos que nos rodeiam e ninguém pode seriamente acreditar que possam corresponder a ulteriores tarefas os que cruzam os braços ante as exigências da situação atual, trocando um posto arriscado pela atividade fácil das cabalas.

Realmente, é um singular exemplo que desce das alturas do poder; não se pode imaginar mais bizarra credencial para adquirir a confiança de um país inteiro.

Os futuros postulantes têm a perspectiva feliz de uns seis meses entregues a um grande embalar de esperanças, contrastando com o tumultuar espantoso das lutas; seis meses de agradável diversão cortejando a opinião pública, enquanto esta se desorganiza; seis meses de inatividade e calma criminosa, enquanto o governo sobrecarregado de trabalhos, vacilando ante dificuldades crescentes, agitará doidamente a fórmula shakespeareana da dúvida por sobre uma sociedade atumultuada, descrente dos seus mais ilustres filhos e esperando, numa perturbação enorme, a única coisa que hoje lhe é permitido esperar — o inesperado…

Durante todo esse tempo, os telegramas do Rio Grande continuarão a transmitir-nos, numa trágica monotonia, a história das hecatombes.

Sejamos francos. Os dois aspirantes à presidência vão dar, desastrosamente, um péssimo exemplo que não lhes trará a mínima vantagem. Só o fato de aspirarem, a todo o transe, agora, a uma eleição, é motivo sério para que não sejam eleitos.

O país espera, ansioso, pelo dia em que possa escolher o seu primeiro funcionário e nós acreditamos que ele saiba encontrar quem possua mais alta intuição do dever e mais exata compreensão de seus destinos.

Qualquer que seja, porém, o número das candidaturas, o trabalho de uma seleção conscienciosa já se acha em parte diminuído: há duas inexoravelmente condenadas.

Os atuais ministros da fazenda e da marinha romperam — na hora do perigo — a solidariedade que os prendia a todos os que se dedicam conscientemente à causa da Pátria.

*

A hora do perigo a que me refiro não é um exagero de frase: nós realmente a atravessamos — e se tal não se desse, um membro proeminente do governo não se dirigiria às paragens tempestuosas do sul, não para levar uma palavra de paz como se propalou. Esta conjectura existiu aqui por alguns dias — mas é falsa; apareceu sem causa séria, espontaneamente, no seio de uma sociedade que parece hipnotizada pelos telegramas ou agitar-se doidamente sob o galvanismo dos boatos.

O General Moura vai presenciar de perto os acontecimentos.

A sua viagem era necessária. Tem havido uma precipitação prejudicialíssima em todo esse movimento de forças, de cujo seio defluirá a ação governamental.

Os nossos generais acreditavam encontrar alguns bandos indisciplinados na fronteira e encontraram um exército; um exército vibrante de entusiasmo no qual o arrojo dos chefes completa admiravelmente a bravura impetuosa dos soldados — exército, organizado de acordo com a própria sede dos combates, com uma mobilidade pasmosa, passando diante das nossas tropas como uma legião fantástica e impalpável de centauros…

Daí todos os revezes das forças legais ante um inimigo, que além de respeitável pela bravura e pela força, joga admiravelmente com uma tática perigosa — e que se pode chamar — a tática da fuga.

As nossas tropas cansam-se improficuamente em contramarchas estéreis, seguindo a orla de uma fronteira agitada e ameaçadora.

A viagem do ministro da guerra era necessária e urgente; quando menos manifesta um grande exemplo, o que não é vulgar pelos tempos que correm.

*

Enquanto tudo isto se dá — avizinha-se a época da eleição presidencial.

Por enquanto somente dois candidatos, e já os consideramos, existem — em perspectiva. Nenhum deles porém, é uma opinião individual, satisfará tão elevada missão.

Devemos convir — a nossa pátria precisa de um homem verdadeiramente superior e quase que se poderia dizer: de um homem de gênio.

Tudo o que presenciamos, todo este tristíssimo quadro em que o nosso espanto vacila entre a dispersão geral das opiniões e a completa desorganização dos sentimentos — quase que demonstra que a eficácia provada das instituições democráticas, embora aliada à boa vontade dos políticos, não basta às vezes como garantia de progresso.

Como que se faz precisa sobre a agitação do nosso país a ação providencial, o influxo precioso de uma grande consciência, brilhantíssima e enérgica.

Não desejo ostentar uma descrença vã, cometendo o atentado de fazer rendilhados de estilo em torno de um falso pessimismo, à custa de uma crise perigosa.

A verdade é que as grandes épocas de todos os tempos e de todos os países se sintetizam em alguns nomes, verdadeiras coordenadas históricas para a definição exata dos acontecimentos. Quase que se poderia — e quem sabe se isto não será uma conquista amanhã do espírito humano? — estabelecer a teoria segura da aparição desses eleitos estudando, através do majestoso tumulto da História todas as necessidades dos povos que se civilizam.

Sem eles todas as agitações são improdutivas e anárquicas, por melhores que sejam as condições civilizadoras. Assim é que mudamos de regimen de um dia para outro; a ideia republicana — conquista de uma minoria brilhante — teve o apoio incondicional de uma maioria indiferente; quase não despertou um protesto — não exigiu uma gota de sangue; — no entretanto, enveredamos por uma série de desastres e esgotamos toda a energia alimentando uma epilepsia geral de paixões desordenadas.

Parece que nos falta uma orientação segura para as ideias, um ponto de convergência para os sentimentos.

Bem será que impelido pelo instinto da própria grandeza e da própria conversação, o nosso povo descubra alguém capaz de sistematizar as primeiras e nobilitar os últimos; alguém capaz de compreender todos os perigos e toda a delicadeza do atual momento histórico da nossa Pátria — capaz de dirigir a exaltação dos espíritos como Danton, ou apto para conquistar a paz — como Thiers.

Euclides da Cunha

Como citar
CUNHA, Euclides da. Rio, 17 de abril de 1893. Atos e Palavras. EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Crônicas. Atos e Palavras. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/cronicas/. Acesso em: [data]. Reprod. CUNHA, Euclides da. Crônicas. In: Obra completa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1. pp. 797-800. Originalmente publicado em O Estado de S. Paulo 20 abr. 1893.