Definamo-nos

Província de S. Paulo, 23 de julho de 1889

Um fato insignificante constitui hoje a nota mais viva dos acontecimentos. Destinado em qualquer sociedade civilizada à existência efêmera das ocorrências locais, entre nós avoluma-se de instante a instante e se generaliza e conseguirá por certo permanecer como um fenômeno social, quando pertence exclusivamente ao domínio restrito da fisiologia.

Para nós o que é realmente deplorável e profundamente triste, é toda esta agitação constante e crescente que parece assoberbar inteira a vida nacional; o que é verdadeiramente um atentado, é essa convergência de todos os espíritos para a niilidade de um ato precipitado e leviano; moralmente, tudo isso indica que o caráter nacional não tem ainda a inteireza, a contextura inviolável dos grandes princípios que definem a honra das nações; socialmente mostra limpidamente que não há ainda nos esforços da sociedade brasileira continuidade bastante que os salvaguarde de inevitáveis perturbações interiores.

Um rapaz, uma criança quase, alveja, de longe, a carruagem imperial — e ante isto abre-se um largo parêntesis na nossa existência geral, perturbam-se as relações interiores, desequilibram-se os negócios, suspendem-se as garantias, prolongam-se ao seio inviolável da Constituição, violadores, os artigos do Código Criminal, toda uma sociedade imobiliza-se na mesma comoção e vibrando esse enorme abalo de nervos da Pátria — o telégrafo irradia pelo mundo inteiro a expansão profundamente sentimental de toda essa gente.

Por outro lado a administração geral não descansa: interroga, investiga, rodeia os seus atos desse sigilo tão próprio a perturbar o antro dos poltrões, multiplica-se expandindo-se num grande amor às instituições, consulta insistente a perspicácia dos nossos desastrados Javerts, insistente consulta o espírito dos nossos minúsculos Pitts, explora o terror, põe diante de cada consciência a perspectiva de uma ameaça e violando o futuro entra pelas Escolas adentro — pregando moral — como se a sociedade de amanhã, não tivesse já altitude bastante para compreender que não deve macular a de hoje.

Animada de uma cólera sagrada a facção monárquica alevanta-se formi[dá]vel e, explodindo na imprensa, numa fraseologia expletiva todo o seu ressentimento; inconsciente e por isto injusta, ignorante e por isto má, aponta à represália governamental o pequeno grupo dos que, pela elevação de ideias e rigidez de caráter, realizam no meio da anarquia e desorientação atuais — a miniatura da Pátria.

Não convém, porém, aos advogados de uma causa perdida, abandonar o momento de caminharem um pouco ao lado da opinião — já que uma assustadora anquilose moral condena-os à imorabilidade. Têm inteira persuasão de que os republicanos foram os únicos que se entristeceram ante esse fato e não convêm-lhes manifestá-la. Sabem que há a disciplina austera de uma consciência arduamente feita ao lado de suas expansões mais fortes; e sabem que, afastando-se dos fetiches sentimentais que por aí genuflectem-se, são os únicos a nobilitarem o tão malbarateado amor da Pátria, dando-lhe o complemento moral da inteligência: dispondo, no cérebro — na dinâmica maravilhosa das ideias — as forças vivas do coração…

Quadra-lhes, porém, a cultura do escândalo, prolongar a tragédia bufa que os diverte e, abespinhando-se calculadamente, engrimponando-se nas colunas dos jornais — numa alegria ruidosa de búzios felizes — acirram o sentimentalismo do povo e entretecem ao velho monarca uma coroa de mártir, que ele repilará, se realmente for, como se propala, um homem de espírito.

E tudo isto é contristador e profundamente imoral; indica-nos a ausência completa de princípios, que nos alevantem acima de qualquer fato que se isole do curso natural da nossa evolução; patenteia-nos a carência de preocupações sérias e muitíssima ociosidade à vista de escândalos.

Na posição atual do homem moderno, posição que traduz um árduo e secular esforço de todas as sociedades do passado, compreende-se que as responsabilidades são extraordinárias. Cada indivíduo sabe que há na construção ideal de sua consciência a colaboração dessas grandes existências extintas; emancipado das fantasmagorias metafísicas tem certeza de que tudo quanto há de elevado e bom dentro de seu cérebro e dentro de seu peito — veio de fora, deram-lhe; exprimindo nada mais que um termo de transição entre o passado e o futuro, na grande existência histórica das sociedades, compreende o dever de nobilitar o que lhe confiaram — a própria vida; não a malbarateia porque não pertence-lhe, não a infama porque tem de transmiti-la ao futuro.

Unicamente um excesso de objetivismo — aniquilador e bárbaro — poderá impeli-lo a materializar pela brutalidade de um assassinato um ideal que o alente e neste caso — convençamo-nos disto — ele não incompatibilizou-se com um partido mas com a sociedade inteira.

Querer, entretanto, aliar a seu ato pessoal uma responsabilidade geral é, encarando logicamente somente, no mínimo — absurdo.

Entretanto é o que se dá. Inconsciente de si mesma, de sua própria força, perturbando-se escandalosamente certa parte de nossa sociedade longe de ter para com o seu pseudo-regicida as solicitudes que devem rodear a um doente, desatina — e generalizando um ato claramente individual, ferindo-se a si própria, estende-o à parte pensante do país.

Os republicanos não aceitaram-na; repelem-na — pelo próprio contraste das posições. Para nós — como as translações dos sistemas materiais na mecânica, o movimento do sistema social não perturbar-se-á, quaisquer que sejam as agitações interiores; impele-o a fortaleza de um grande ideal e para realizá-lo, basta-nos isto: — estabelecê-lo teoricamente.

Se nos colocarmos ao lado desse pobre moço, a quem tanto se insulta hoje, covarde e irrefletidamente, fá-lo-emos, não em nome de um partido, o que seria um crime, mas em nome da humanidade — o que é um dever.

 
E. C.

Como citar
CUNHA, Euclides da. Definamo-nos. EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Crônicas. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/cronicas/. Acesso em: [data]. Reprod. CUNHA, Euclides da. Crônicas. In: Obra completa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1. pp. Originalmente publicadas em Província de S. Paulo, 23 de julho de 1889.