Caderno Ondas

Sumário
Índice (por ordem alfabética)

Eu tinha 15 anos
Contém, pois, a tua ironia, quem quer que sejas…

Rio de Janeiro

— Ondas.

primeiras poesias —
de
Euclydes [da] Cunha

— Rio de Janeiro —
— 1883 —

14 anos de idade
obs. fundamental, para explicar a série de
absurdos que há nestas páginas.
1906 — Euclydes

[Correi, rolai, correi – ondas sonoras]

Correi, rolai, correi – ondas sonoras –
Que à luz primeira, d’um futuro incerto,
Esgueste-vos assim – trêm’las – canoras –
Sobre o meu peito – um pélago deserto
Correi… rolai – que audaz por entre a treva,
Do desânimo atroz, – enorme e densa, –
Minh’alma um raio arroja e altiva eleva –
Uma senda de luz que diz-se – Crença!…
Ide pois – não importa que ilusória
Seja a esp’rança que em vós vejo fulgir…
– Escalai o penhasco ásp’ro da Glória…
Rolai, rolai – às plagas do Porvir!…

Rio de Janeiro – 1883 –

Aurora

Eu sinto-a já – além… de seu riso o fulgir
Rompendo entre os cendais enormes do porvir
Me vem n’alma tombar, e audaz cheio de ideias
Já N’ela me burilam as livres epopeias…
Eu sinto-a já além… e seu olhar ardente
Rolando do infinito – em luz me banha a mente,
Soergue-me a razão, do gênio as asas solta
E ralha-me no cér’bro os cantos da revolta…
Eu vejo-a, sim, além – erguendo majestosa,
Imensa a fronte audaz, altiva e luminosa
– Na qual vejo brilhar dos séc’los entre os véus
Um sulco que traçou a mão firme de Deus!…
Eu vejo-a, sim, erguem além o forte olhar
(Audaz clava de sóis que em breve há de rasgar
Do torvo despotismo o selo negro, impuro!)
A liberdade – a Ruth das searas do futuro!…

– 2 –

É ela – é ela sim a noiva da Canalha –
Que talha aos pés de Deus a lúgubre mortalha
Da Crua tirania – enquanto – ásp’ra e possante,
O punho, o punho envolto, envolto nessa guante
– A alma de Spartaco –! arroja rude, audaz
À face atroz da terra – abrindo-lhe um gilvaz
De luz, do qual escorre a e abrasa a multidão,
Essa lava tremenda – sangrenta – em rev’lução!…
É ela, é ela sim – a Mole dos tiranos –
Que o golpe retempera há mais de dois mil anos
– Que um negro acervo faz – das c’roas, tronos, cetros
E das púrp’ras dos reis – dos cortesãos: espectros –.
E os incendeia audaz c’o seu olhar sublime
A fim de iluminar o funeral de crime!…
– Enquanto altiva funde as almas refulgentes
De Scévola, Catão, e Rocinsko e Tiradentes
Em pér’las colossais – para c’o elas bordar
De seu noivado o véu…

– 3 –

…eu sinto-a caminhar!…
É Ela!… a utopia imensa do Calvário
Que a Cristo suspendeu no lenho mortuário
E que Amanhã sublime – altiva e rugidora
– Olhar grande de Deus fundido n’uma Aurora –
O mundo arrancará de sua cruz sombria!…
De sua Cruz maldita – a Cruz da tirania
31 de outubro de 1883

Clava…

Era em Noventa e Três – a desforra dos séculos
– O brado colossal – o áspero rugir…
– Eco da voz de Deus, rolado sobre o mundo,
Que foi, grande, arrancar, do seu torpor profundo,
A liberdade audaz – no seio do porvir!…

Era em Noventa e três – a febre colossal –
Que o riso de Marat e o verbo de Dantão –
Acenderam – cruel – fatal – atroz – sublime
(Amplexo da Glória com o Crime…)
No peito suarento viril – da multidão!…

Era em Noventa e três – infrene a populaça –
Feroz – louca, revel – na febre dos fuzis!…
Traçava c’os punhais, a delirar, insana –
As estrofes cruéis da liberdade humana.
Nas pedras sanguinosas das praças de Paris!…

O trono se curvava em frente à barricada…
A púrp’ra ante o farrapo – em ombros seminus
Aos pés de um povo um rei – curvava-se, tremia…
E vinte séc’los maus de treva e tirania
Curvavam-se ante uma hora de liberdade e luz!…

Era tremendo aquilo!… ah! mas também – sublime
Mistura atroz de luz – de sangue, almas – punhais!
– Dir-se-ia Deus falar – erguido no infinito
Enquanto de Paris no peito de granito…
Pulsava o coração cruel de Satanás!…

Em uma praça larga, extensa e lamacenta –
Tremente, a vacilar e como que ébria então –
(– Por ter talvez bebido em douda impaciência
Mui sangue – vinho atroz – que embriaga a consciência)
Tremia – a delirar – raivosa multidão!…

Brilhava em cada cér’bro atroz – mortal ideia…
Brilhava em cada face – atroz olhar sombrio –
Em cada áspera mão – cruel punhal brilhava
…Nesse momento um carro a custo ali passava
Quando, áspero, pelo ar – um brado restrugiu…

Como a vaga possante, estrídula – veloz
Que o seio esfacelando em cima dos parcéis
Se atira ao fraco barco e o quebra – má – fremente –
– Por sobre o carro assim – lançou-se a turba ardente…
É que nele se via – a c’roa de um marquês…

Era de um nobre… basta… ergueram-se os machados!…
– Como um floco de espuma – erguido n’amplidão
Dos mares colossais e negros e bravios –
Assim também por entre – os mil rostos sombrios
Se ergueu – trêm’lo – alvejante um crânio d’ancião

Mas não ergueu-se só – a ruína do passado
Se erguia c’uma pérola ardente do porvir…
No seio, aquela noute – levantava uma aurora…
Oh! sim aquele velho uma criança loura
No peito frio erguia – esplêndida a sorrir!…

Um grito, um grito atroz – das bocas despencou;
Os punhos – rubros – maus – ergueram-se fatais –
– O velho estremeceu fitando desvairado
Da mísera criança o rosto imaculado
– Rosa infeliz envolta – já de espinhos – punhais.

O seu machado ergueu à fronte encanecida
Um ser sangrento e rude – estátua de rancor
– Animada por Deus – guiada pelo crime –
O velho então tremeu e – gélida – sublime –
Su’alma se embuçou num frio olhar de dor.

Ele ia perecer – porém nesse momento
Ao bárbaro fitando e erguendo a branca mão –
A criancinha riu-se – e era um rir tão magoado –
Ah!… tão cheio de lágrimas!… que trêm’lo, abalado
O bárbaro recuou… lançando a arma ao chão!

1º de Novembro de 1883

No túmulo de um inglês…

És bem feliz mylord!…na tua tumba fria
Um sono gozas, bom – no seio da soidade –
Feliz!… não tens o sol de tu’Albion sombria
Mas tens o olhar de Deus – o Sol da eternidade!…

És bem feliz – mylord a triste ventania
Soluça no cipreste os cantos da saudade…
Quem sabe se te traz – em vozes de agonia –
Os risos e as canções de tua mocidade!…

Estás livre do spleen… invejo-te deveras…
Do túm’lo a sombra espanca as pálidas quimeras.
– Em teu berço de pedra! embala-te a soidão…

És bem feliz mylord – assim antes eu fora!…
Tu tens a calma eterna, a solidão sonora
E tu não tens – feliz – não tens – teu coração…

Rio – 2 de Novembro 1883
Nota
N. A.: Este túm’lo está no cemitério de Catumbi – tornou-se-me saliente pela isolação em [que] se acha – quase em pleno mato – completamente separado dos outros. Antes de ler a inscrição na lousa – onde este soneto fiz – adivinhei ser de um inglês…

Fatalidade… (À E…)

Ai não me lembres do passado as cenas.
Nem essa jura desprendida a esmo.
F. Varela

Porque te não esqueço – ai! sim – quisera
Olvidar-te mulher sim – te esquecer…
Sim a ti – a mais rósea primavera
Que vi fulgir no céu de meu viver –
Sim a ti que a minh’alma altiva, inteira
Co’um só olhar fundiste – a ti mulher
Que fostes minha luz, meu céu, meu ar
– Eu esquecer quisera… ai – olvidar!…

Porque te não esqueço – e do passado
Porque deixando a muda solidão –
Me vem o som dos beijos – tão gelado –
No fundo me chorar do coração
As tristes vênias do amor finado…
E abrir-me n’alma as chagas da paixão…
Porque – oh sempre a luz dum teu olhar
A noute de meu peito vem rasgar?!…

Quisera te olvidar – doce agonia –
…Quanta vez – solitário, o olhar sem luz
Visito a morte na região sombria
– De mármor’cheia a transbordar de pus…
E a fronte descansando triste e fria
Nos ombros negros de silente cruz –
Mendigo ao Nada o seu bafejo atroz
Das tumbas à mudez atiro a voz…

Quisera te esquecer – anjo maldito –
Ah!… quanta vez no lábio meu sem cor –
Travando da blasfêmia a voz, o grito
Sinto – triste no peito sem calor –
Meu coração chorar – divino aflito –
– Cheio de fel, de lágrimas – de amor –
Chorar – chorar teu nome em dor mortal.
Teu nome tão sublime… vil – fatal!…

E no entanto te amei… e te amo ainda.
E tu? se eu te esquecesse – a meu talento
Peias – de teu olhar c’o a luz tão linda
E embalde, desvairado, febril – tento
Apagar no meu peito a flama infinda
Que gera o desvario – mau– sangrento…
– A desgraça – a Margot das esperanças
Amarrou meu porvir – nas tuas tranças!…

Jamais te olvidarei e só, errante –
– Pobre joguete de um cruel destino –
Só calcarei a senda tão distante
E espinhosa que atroz – cruel – ferino
Um teu olhar traçou-me… e soluçante –
Nesse atroz caminhar – sem fé – sem tino
Eu só – eu só terei – a calma, a luz
Prendida a alma nos braços de uma cruz…

Ah!… não conheces, não – as fundas dores,
As vertigens tão más, cruéis delírios
Que o peito me transbordam de negrores…
Ai!… não conheces, não – os desvarios
Que me tecem – pejados de negrores
N’alma as geladas palmas dos martírios
Ah! tu não sabes não – te amo e padeço –
Quisera te esquecer e… não te esqueço!…

Rio 3 Novembro 1883

Serenada

Ai vem!… morena, vem… – meu ser delira
– A noute cinge a coifa das estrelas…
– A juruti – na selva além suspira –
– Se dobram nas hastes as rosas belas
Ai vem!… morena, vem… – meu ser delira…

Numa estrofe minh’alma a tua unida –
Vamos ouvir os cantos da mudez…
Vamos – a sós – cismar ó minha vida,
Dos dédalos das matas através
Numa estrofe minh’alma à tua unida!…

No seio da floresta olente e grande –
Ah! vamos aninhar os nossos beijos…
– Tanta rósea ilusão nele se expande…
Há tanta voz de amor, tantos desejos
No seio da floresta – olente e grande…

Naveguemos no mar da fantasia
Seja o teu seio a gôndola divina
– Nós temos por farol – a poesia –
– Meu coração por búss’la purpurina
Naveguemos no mar da fantasia…

Rolemos do ideal às róseas plagas
– Lá onde os sonhos brotam – delirantes –

[E em lesto – veloz librar]

E em lesto – veloz librar
O bando voa tremente
Até lá onde – impotente –
Não voa o mais forte olhar…

Parece – nos voos seus
Se erguerem – ágeis e belas
– Tendo a fome das estrelas!… –
À seara rubra de Deus!…
Quando empalece o arrebol
E lúgubres – solitários –,
Pranteiam – os campanários
A rubra morte do Sol!…

E, do seio da amplidão,
Gelado o crepúsc’lo rola…
– Quando o mistério se enrola –
No silêncio da soidão!…

Na hora em que um frio véu
Do espaço a fronte se encerra…
– E os astros olham p’ra terra,
– As almas crentes p’ro céu…

Na hora em que tudo é paz…
Na hora em que tudo é sombras,
Desde as rasteiras alfombras
Às grimpas dos coqueirais…

Nesta hora rasgando o ar
Eu gosto de ver, sereno,
O bando, o bando pequeno,
Do espaço enorme tombar!…

Parece então – entre os véus,
Da noute que atrai e aterra…
Sonhos que ralam à terra,
Sonhos que rolam dos céus…

6 Novembro de 1883

Eu quero…

Eu quero à doce luz, dos vespertinos pálidos,
Lançar-me, apaixonado, entre as sombras das matas –
– Berços feitos de flores e de carvalhos válidos,
Onde a Poesia dorme, aos cantos das cascatas…

Eu quero aí viver – o meu viver funéreo,
Eu quero aí chorar – os tristes prantos meus…
E envolto o coração, nas sombras do mistério,
Sentir minh’alma erguer-se entre a floresta e Deus!…

Eu quero aí unir a voz de meus martírios
C’os trenos, que murmura a brisa nos palmares
– As lágrimas guardar, no seio azul dos lírios,
E os soluços no seio dos trêm’los nenúfares…

Eu quero, da ingazeira – erguida aos galhos úmidos,
Ouvir os cantos virgens – da agreste patativa…
Da natureza eu quero nos grandes seios túmidos
Beber a Calma, o Bem e a Crença – ardente, altiva –

Eu quero, eu quero ouvir o esbravejar das águas
Das ásp’ras cachoeiras que irrompem do sertão…
– E a minh’alma cansada – ao peso atroz das mágoas –
Silente adormecer no colo da soidão…

8 Novembro

Reminiscência [I]

Um dia a vi, nas lamas da miséria
– Como entre pântanos um branco lírio –
Velada a fronte em palidez funérea
– O frio véu das noivas do martírio!… –

Pedia esmola – pequenina e séria –…
Os seios, – pastos de eternal delírio, –
Cobertos eram de uma cor cinérea –
– Seus olhos tinham o brilhar do círio –

Tempos depois num carro – audaz, brilhante
Uma mulher eu vi – febril, galante…
Lancei-lhe o olhar e… maldição!… tremi…

Ria-se – cínica, servil –… faceira?…
– O carro numa nuvem de poeira
Se arremessou… e eu nunca mais a vi!…

9 de Novembro

Tombos…

Uma águia colossal, possante – um dia
O voo alevantou,
E nas garras torcendo a ventania
A vastidão galgou!…

Subiu – subiu – subiu – e audaz subia
Quando fraca estacou
– U’a corrente de abismos a prendia!… –
Em queda atroz rolou…

Um dia – assim também meu ser se viu…
E a delirar – na febre dos desejos –
Subiu, subiu, subiu…

Afinal sem um arrimo sequer
Rolou, descrente – tropeçando em beijos –
De um seio de mulher!…

10 Novembro

Ironia… (?)

Como os tufões que rolam do infinito
E rebramem na fronte das maretas
Da rocha assim no peito de granito
Bramavam, batendo, as picaretas…

De cada malho audaz se erguia um grito
As alavancas fortes, férreas, retas
Tombavam, firmes com fragor maldito –
Dos pulsos dos viris, rijos atletas!

Lançaram fogo à mina e nesse instante
Um som ásp’ro – rasgado, retumbante –
Bramiu por entre a vastidão sombria…

Dissipou-se a fumaça… ouviu-se um brado
– Gemia um operário, ensanguentado!…

Num riso imenso a pedra se entreabria!…

10 novembro 1883

Serenata

Viens!… on dirait, Madeleine –
Que le Printemps dont l’haleine
Donne aux roses les couleurs
A cette nuit – pour te plaire
Secoueé sur la bruyère
Sa robe pleine de fleurs!…

– Victor Hugo –

Vem!… ó minha Madalena –
A noute dorme, serena –
Das florestas no tapiz…
Não ouves – além – mimosas
Soluçarem, amorosas
Nas brenhas, as jurutis?…

Vem!… Tu temes, porventura,
O vento, que na espessura,
Das selvas, rebrame atroz?…
Pois não temas – anjo pálido –
Dum só beijo com o estalido
Lhe esmagaremos a voz!…

Vamos, juntos, bem juntinhos
Pelos floridos caminhos
Dos desertos, através…

Oh! não sabes – Madalena?… –
– Brota um lírio, uma açucena –
Nas pegadas de teus pés!…

Temes, acaso entre as matas –
Os mugidos das cascatas
Que quebram as solidões?…
– Mas um só riso argentino
De teu lábio purpurino –
Transborda o ar de canções!…

Não temas a noute imensa,
– Do infinito suspensa –
Sem uma pér’la em seu véu,
Que a rubra luz dos desejos
Constelarei – com mil beijos
O teu seio, doce céu!…

Ai vem!… serão, porventura –
Escolho à tanta doçura
Os negrores da amplidão?…
– Pois são nada esses escolhos –
Com dous sóis como os teus olhos
– Há dia no coração!…

12 novembro 83

Ímãs

Tristonha a noute gélida morria
Aos dardos flamejantes do Oriente…
E como um lábio – o céu azul – ardente –
Curvo se abria num sorriso – o Dia!…

Na mata me embrenhei, sozinho, à pé
Do Sol fervente envolto nos lampejos…
Trêm’lo em meu lábio – um Tântalo de beijos
Brilhava um canto ardente de Musset!…

Perdia-se-me o olhar sobre a savana… –
Num momento porém – como arrastado –
Ficou num ponto – audaz, firme cravado…

É que dous olhos meigos de serrana,
Um pouco adiante – enormes de negrura,
Povoavam de luzes a espessura!…

13 Novembro 1883

Tristeza

(Ao amigo Caetano J. de Freitas)

Ah!… quanta vez – pendida a fronte fria –
– Coberta cedo do cismar p’los rastros –
Deixo minh’alma –, na asa da poesia
Erguer-se ardente, em divinal magia,
À luminosa solidão dos astros!…

Infeliz mártir de fatais amores
Se ergue – sublime –, em colossal anseio,
Do infinito aos siderais fulgores
E vai chorar da terra atroz as dores
Lá, das estrelas, no rosado seio!…

É quase sempre na funérea hora
Em que as florestas, o oceano, os céus,
A noute rútila, a soidão sonora,
E o vento triste que nas sarças chora –
Nos seios lançam um só nome – Deus!…

É nessa hora, meu amigo, imensa,
Que qual falena – divinal, ardente –
Ela voeja n’amplidão extensa
E vai beber esse perfume – Crença –
Dos céus infindos no rosal florente!…

É nessa hora, companheiro, bela,
Que ela, a tremer – no seio da soidade –
– Fugindo à noute que a meu seio gela –
Bebe uma estrofe ardente em cada estrela,
Soluça em cada estrela uma saudade

E é nessa hora, a delirar – cansado –
– Preso nas sombras de um presente escuro –
– E sem sequer um riso em lábio amado –,
Que eu choro –, triste – os risos do passado,
Que eu adivinho os prantos do futuro!…

14 Novembro 1883

Paralelo

– À Exxx

Ai! não chores, por Deus – que do teu pranto
Cada gota que rola – ó ente puro! –
É um astro que foge, um astro santo,
Do largo, céu, sem fim – de meu futuro!…

Eu sei que a dor às vezes nos dói tanto –
Que é só o pranto o bálsamo seguro
Que o pobre coração nos dá, enquanto
N’alma nos sangra o seu golpe tão duro!…

Consola-te porém – oh! não mais chores
Não mais, não mais, de lágrimas descores
Teus olhos donde o meu estro destila!…

Muita sombra de dor tu’alma prende?
Pois… quanto mais a noute cresce, estende,
Mais brilhos tem a estrela – mais cintila!…

15 Novembro

Verso e reverso

Bem como o lótus que abre – o seio perfumado –
Ao doce olhar da estrela esquiva d’amplidão,
Assim também, um dia, a um doce olhar, domado,
Se abriu meu coração!…

Ah!… foi um astro puro – e vívido, fulgente,
Que à noute de minh’alma em luz veio romper
Aquele olhar divino, aquele olhar ardente –
De uns olhos de mulher!…

Escopro divinal – tecido por auroras –
Bem dentro do meu peito – esplêndido tombou –
E nele altas canções, inspirações sonoras –
Sublime – burilou!…

Foi ele que a minh’alma – em noute atroz cingida –
Ergueu do ideal ao rútilo clarão!…
Foi ele – aquele olhar, que à lágrima dorida –
Deu-me um berço – a Canção!…

Foi ele que ensinou-me às minhas dores frias
Em estrofes ardentes, altivo transformar!…
Foi ele que ensinou-me a ouvir as melodias
Que brilham num olhar!…

E são seus puros raios – seus raios róseos santos –
– Envoltos sempre e sempre em tão divina cor –
As cordas divinais da lira de meus prantos,
D’harpa de minha dor!…

Sim – ele é quem me dá – o desespero e a calma,
O ceticismo e a crença – a raiva, o mal e o bem –
Lançou-me muita luz no coração e n’alma,
Mas lágrimas também!

É ele que – febril a espadanar fulgores
Negreja na minh’alma – imenso, vil, fatal!…
– É quem me sangra o peito – e me mitiga as dores
– É bálsamo, é punhal –

17 de Novembro 1883

Horas de crença [I]

De noute aos brilhos dos sidéreos lumes –
Quando o mistério –, das soidões no meio –,
Num beijo vindo da floresta o seio
Peja, sublime, de estivais perfumes!…

Quando, das serras nos altivos cumes
Debruça a Lua –, num calado anseio –,
A fronte loura –, meu amor, eu creio
Nas crenças santas que no olhar resumes…

Creio nos beijos do teu lábio rubro…
– Creio dos mortos no viver sem fim! –
As sombras d’alma numa prece encubro!…

Creio na febre de teu seio – e alfim
Por entre cismas o meu Deus descubro…

E muitas vezes creio até… em mim!…

17 Novembro

A Canalha

É ela, é ela – a lívida Canalha!
Gomes Leal

O seu brial de séc’los arrastando
E do porvir nos campos procurando
A utopia plantada aos pés da Cruz…
Eu vejo – essa Leprosa das Idades
Da qual as chagas – torvas claridades –
Golfejam sangue e luz!…

Brilhante de epopeias – rubro, extenso
Flameja o seu olhar – sonoro – imenso,
Na luz do qual se forjam – os Tirteos!…
– No seio requeimado, ásp’ro, fervente –
Aninha a Rev’lução – a febre ardente –
– Esse hálito de Deus!…

Envolve-lhe ao porvir um céu opaco…
Porém a ideia – o sonho de Spartaco
Em flamas lhe povoa a altiva tez!…
Um riso – que ilumina – enorme a história –
No lábio tem – é um clarão de glória –
É mais: – Noventa e três!…

E lúgubre ela marcha – a grande escrava
Ora altiva, possante, heroica e brava
Ora protérvia, humilde, crua e má!…
– Da história arroja à face rutilante
Ora Rocinsko – u’a lágrima brilhante, –
Ora um esgar – Marat!…

E caminha, ora erguida – ora de rastos –
Por entre mil desertos – secos, vastos…
– Ela agoniza à fome muita vez
Enquanto no seu seio – crua, fria –
Faminta eterna – à larga se sacia –
– A lepra vil dos reis!…

Foi ela quem – um dia – à fulva coma
De um incêndio voraz que ardia em Roma
De Nero se abaixou às plantas vis!…
E foi ela também – que um dia alteada
Lançou p’ra Glória, em pé na barricada –
O nome de – Paris!…

Foi ela que em Caprea – um certo dia –
Aplaudiu de Tibério a insana orgia –
Estúpida, servil, torva e jogral!
Mas foi ela que um dia – rediviva –
Burilou na história uma estrofe altiva –
De Bruto c’o punhal!…

Foi ela quem um dia – má – esquálida –
Escarrou, delirante, ébria – pálida
No cadáver luminoso de Catão!…
Mas foi ela também que um dia – ardente –
Do futuro cravou a voz potente
No lábio de Dantão!…

Foi ela quem – um dia – infame, fria –
Matou Dante –, pejada de ironia,
E a Chatterton, Camões negou um lar!
Mas foi ela que um dia ergueu-se à história –
Aureolada p’r um clarão da Glória –
– O olhar de Bolívar!…

E vaga – ora embuçada, – lutulenta –
De algum mártir na túnica sangrenta –
Ora na rota púrpura de um rei!
E vaga – torva – dos séc’los no meio –
Enquanto atroz lhe rasga o velho seio
Um azorrague – a Lei!…

Muitas vezes – tecidas de desgraças –
– Essas noutes que descem sobre as raças –
Tombam, malditas, sobre os ombros seus!…
Ela treme, vacila… geme um grito
E soergue-a – rolando do infinito
Um raio de luz – Deus!…

Boêmia eterna seus gigantes rastros
Do vasto céu da História são os astros!…
Dos reis c’o sangue faz – os arrebóis…
E muita vez consegue – à imensidade
U’a pirâmide erguer, – a Liberdade
C’os crânios dos heróis!…

Ai! muita vez também – após instantes
Após rubros momentos, delirantes,
Sonoras e sublimes e cruéis –
C’o seio a transbordar cheio de brilhos,
Vai mendigar o pão p’ros magros filhos
Na porta dos bordéis!…

Ela medita um golpe sanguinário!
Guarda em seu seio o sonho do Calvário
Que lhe avassala, ardente, todo o ser
E que Amanhã talvez ’i não cabendo,
Irrompa divinal, rubro fazendo
O novo alvorecer!…

Ah! ela marcha, lívida, sonora –
E Amanhã, Amanhã sim! – uma Aurora
Lhe há de vir cobrir os ombros nus!…
Será cada um seu rastro – uma epopeia –
– E à sombra, descansar há de da ideia
Plantada aos pés da Cruz!…

15 Novembro 1883

Oscilações

Ah! que de vezes quando no ar desfila
A treva – e as sombras a amplidão negrejam –
E das estrelas que nos céus palejam
O vasto poema aos pés de Deus cintila!…

E mil perfumes às campinas pejam
E… da floresta o coração distila
Um vago som que em nosso ser se instila
E gera sonhos que a nossa alma beijam…

Quando há na terra uma magia imensa!…
Eu – que não tenho a vida d’alma – a Crença –
Nem uma prece que divina sagre-ma…

Eu… – (ai! dizei-me o que a soidão exprime!)
Eu rezo um nome – Minha mãe – sublime –
E me ergo a Deus – nos brilhos duma lágrima!

17 Novembro
Rio

Horas de saudade

Oh!… que de vezes – quando rósea, rósea –
Formosa envolta em seus purpúreos véus
– Bem como um riso que no espaço brilha –
Se encosta a tarde no ombro azul dos céus –

Eu me recordo – dolorido e triste –
De ti, morena –, minha atroz paixão –!
– Rosa que um sopro sublimal de Deus –
Ergueu no seio do vivaz sertão!… –

Relembro, insano, tuas negras tranças –…
– E no peito ardem-me fatais desejos
Quando relembro tua boca – trêm’la –
– Rosado berço de meus rubros beijos!…

Oh! como dói-me o teu tão doce rosto
Por entre os véus de fria atroz saudade!… –
E recordando teus alegres risos
Que amargo pranto todo o ser me invade!…

Ah! quanto sonho nós sonhamos juntos
Da Ave-Maria, na funérea hora –
– Quando através a negridão da noute –
No olhar erguias divinal aurora! –

Ah! quando a treva ia acordar… a luz! –
Dos céus por entre a vastidão sem termos…
E o pio triste do jaó na serra
Triste chorava na mudez dos ermos!…

E quando ríspido o tufão dos montes
Torcia, bravo, dos ipês os ramos,
– Quanta ilusão – com beijos nós tecemos –
E… quanto sonho, juntos, nós sonhamos!…

Mas hoje, hoje – meu gelado lábio –
Já sem teus beijos – em tão breve idade, –
– Pobre, exilado de teu quente seio –
Soluça, frio – os cantos da saudade!…

Hoje – morena – a minha mente, em sombras –
De amor u’a ideia nem sequer colora –
E em meu deserto peito, trêm’lo, trêm’lo –
Meu coração teu nome, em estos, chora!…

Hoje minh’alma – d’ilusões já ruía –
Se embuça triste do sofrer nos véus –
E por ti chora quando – rósea, rósea,
Se encosta a tarde n’ombro azul dos céus

20 Novembro

Varela [ 1 ]

Nem tristezas cantei, nem amarguras
Mas Deus, a vida, a mocidade e a glória!

Varela

Ouvi-me!… foi um gênio!… – águia arrojada –
Su’alma, audaz – cravou, forte, inspirada,
O firme olhar febril
Num Sol sublime – Deus!… depois, fremente,
Deixou a terra e foi pousar, ardente –
– Da glória no alcantil!…

Sim! foi o seu viver um voo imenso
Do ideal no vasto plaino, extenso
Sonoro e colossal!…
– Foi dele que lançou p’ra glória o grito
E escalou atrevido ao infinito –
– De su’alma o pedestal!… –

Ah!… foi seu peito uma harpa – altiva e brava,
Aonde a natureza dedilhava
– Os grandes poemas seus!…
E su’alma – uma estrofe – audaz, canora –
Que na terra rolou – férrea, sonora –
– Fremida além por Deus!… –

Foi gênio e também pobre – mas um dia –
Iluminou de febre a fronte fria
Das frias multidões –
Foi pobre – mas, – audaz galé da fome –
Da pátria a atroz nudez cobriu seu nome –
– E as almas – com canções!

Foi pobre, muito pobre – mas q’importa
Se o mundo do Panteon – abriu-lhe a porta –
– Ao som de sua voz –
Se o tempo de seu nome – alvo de ideias! –
Bate embalde a trincheira de epopéias –
– A transbordar de sóis!

Quando ele alevantou – como uma aurora –
Por entre a multidão a fronte loura –
– De intérmino fulgor –
Do pobre o peito mais claro tornou-se –
Foi, do infeliz – a lágrima, mais doce –
– Doeu menos – a dor!

E foi mais longa a crença, o mal mais breve,
Mais firme a fé, doeu menos a neve
Nos ombros seminus!..
Houve – mais ilusões, mais brandas calmas,
Nos seios mais amor, mais luz nas almas
– E mais almas na luz!…

Gênio, vate e profeta, palpitavam,
Nos seus cantos viris, febris vibravam –
– As vozes do porvir –
Sim! como o Sol, que as vastidões devassa –
Ele ia onde não vai a populaça –
– Inspirado fulgir –

Dir-se-ia – que su’almas – nos valentes
Vôos seus colossais –, sem fim, ardentes –
Subia além dos Céus!…
E se aninhava em seu cér’bro revolto
E os cantos lhe talhava, um raio solto,
Solto do olhar de Deus!…

Sim! ele foi uma águia – altiva, ardida
Que passou pelos céus vários da vida
Num voo audaz, febril!…
Gigante, iluminou-os – abrasada
E foi depois pousar – pousar cansada –
– Da Glória no alcantil –

Rio de Janeiro, 23 Novembro 1883

No campo

Oh que manhã formosa… Purpurina
Rubente envolta nos seus véus de auroras
Cheia de risos de canções sonoras
Vagueia a primavera na campina…

Alados grupos de gazis cantores
Se erguem do Sol aos palpitantes lumes
E banham-se nas ondas de perfumes
Do belo e róseo mar virgem das flores!…

O campônio aparece – calmo fita
A vida enorme que em redor palpita –
E toma, assoviando, p’r um atalho…

Tempos depois – c’o a voz – argêntea e honesta –
Cantava, ásp’ro o machado – na floresta
As rígidas estrofes do trabalho!…

Rio – Novembro 1883

Andando…

Já andamos muito… descansemos nestas
Pedras cobertas de macia hera…
Sigamos, ledos, na azulada esfera
O largo voo das andorinhas lestas!…

Que curvas certas, certas – nada altera
A marcha aérea – larga e trêm’la destas
Noivas da tarde!… que sonoras festas
No seio fazem d’amplidão – quisera

Lhes entender os gritosinhos santos!
Mas… vês?… o grupo n’amplidão sombria
Se eleva, eleva, ’té sumir-se alfim –

Assim – ó branca virgem dos meus cantos –
As ilusões sumirem vi um dia –
No teu olhar febril – olhar sem fim!…

23 Novembro

Tiradentes… [ 2 ]

— 1 —

Meu Deus! meu Deus! quão vazios e tremendos
Oh! são vossos ditames!… quanto luto
E glórias esparzis numa só fronte…
Quantos sonhos brilhantes, vastos, fortes
Que brotam nos delírios luminosos
Dos cérebros dos gênios – como o raio
Nos delírios fatais do infinito –!
Potente aniilais, em um minuto
Quando eles, muita vez, imensos, têm
Um berço audaz, por séculos tecido!…
Ah! quanta aspiração – titânea, grande
Da velha humanidade dentre o seio
Sublime vos lançais – para depois
Quando ela medra, cresce – se alevanta
E bebe a força, a vida, a crença e a luz
Em vosso hálito imenso – que enche o espaço –
A vastidão de luz, de amor às almas,
Fatal quebrá-la, audaz, sagrado e firme
vosso braço latente!… quanto riso
Canções, auroras, sonhos, flores, glórias,
Tanta vez esparzir em treda senda
Que, hórrida, conduz – à dor, ao nada,
À treva, ao desespero, ao lodo, à morte!?

Meu Deus… meu Deus! que fins inopinados
Talhais sempre, embuçado nesse vosso
Mistério formidável e sagrado,
A essas almas bravas e arrojadas
Que irrompem divinais, viris, ardentes
Dentre o seio do mundo!…

Quantas nuvens
De dores, de descrença, de desgraças
Sobre essas frontes vastas e brilhantes,
– Viris, rubros faróis da humanidade –
Aonde, eterna, brilha a grande luz
Do pensamento – espadanando ideias –,
Atirais, afogando-lhes os brilhos!…

Quanta sombra gelada, ideias toscas,
Caliginosos sonhos, visões lívidas,
Meu Deus – arremessais dentro de crânios
Que há pouco transbordavam de clarões!…
Ah! dentro desses crânios vastos, férteis –
– Infinitos de ideias – tão gigantes
Que muita vez aninham – colossais
A esperança e a glória de cem raças!…

Quanta sangrenta lágrima de dor
Quanto fatal soluço vós lançais
Dentro de peitos onde instantes antes
Gigantes sentimentos palpitavam –
– Ah! dentro desses peitos, forjas santas,
Aonde ao quente ardor das labaredas
Sonoras das paixões – o coração
Martela, talha, funde – do porvir
As estrofes, eternas, luminosas!…

Quanto lábio, Senhor, fervente e forte
Ah! desses que c’um brado um grito heroico
Séc’los inteiros pejam de epopeias
Amordaçais – c’o a sombra atroz do túm’lo!
– Meu Deus, como sois bom e incompassível.

— 2 —

Ele ergueu-se nos ásperos sertões
Libérrimos de Minas, ínvias selvas
Onde o jaguar vagueia – livre e bravo –
Lançando às solidões frias dos ermos
Seus bramidos possantes e raivosos
Que abalam – formidáveis e tremendos
As glaucas legiões das Cabiúnas!…
Lá onde eternamente a natureza
Soergue rutilante e perfumada
A testa coroada de carvalhos
Às luzes que golfeja do infinito
A lâmpada dos mundos!…

Ah! lá onde
Como um hino – sublime – eterno, enorme –
Irrompe a esbravejar, palpita, salta
Brava arrebenta a voz da Criação
Dos lábios de granito ásperos, rudes
Das broncas catadupas!
Ah! lá onde
A grandeza de Deus – se espelha em tudo
Até na pequenina e meiga pétala
Do trêm’lo nenúfar… lá onde é livre
Tudo o que sente e vive desde a onça
Que nas brenhas vagueia a fulva cauda
Agitando febril nas convulsões –
Da cólera e da fome – até, até
Dos brejos a irerê – veloz, esquiva!…
Foi lá nesses sertões, virgens ainda
Do beijo frio e torvo do Progresso
Foi lá, onde se sente – grande e belo –
Vago – indizível – o mistério enorme
E formidável do Primeiro Dia…
Que ele a férvida e altiva fronte ergueu!…

— 3 —

Visionário da Glória!… um sonho enorme
De luz, de febre audaz, de audácia imensa,
Lhe enchia o cér’bro, o peito e o coração!…
Alma altiva, sonora – luminosa
Que um sopro do Senhor talhou p’ras lutas
E que arrojou-se à pugna titânica
Envolta na couraça de uma ideia!…
Condor soberbo e bravo que abrindo,
Num delírio indomável e terrível,
As asas, emplumadas de centelhas,
Se arremessou febril, brilhante, ardente,
Como um relampo atroz, por entre a noute
Por entre a noute má das consciências,
Noute gerada pela sombra esquálida
Do trono!… defensor – audaz e válido
Dessa ideia sagrada – Liberdade!…
Liberdade! utopia divinal
Que num soluço atroz – fraco, sublime
Brotou do lábio frio, róseo, exangue
Do Cristo agonizante!… mas, soluço
Que no seio dos séc’los retempera-se
E que há de – retumbante e grandioso
Cantar as alvoradas do porvir!…

— 4 —

Tiradentes!…

— 5 —

Meu Deus, meu Deus! lançai-me
Por momentos, no cérebro estéril,
O gênio luminoso, audaz de Byron –
Que hoje brilha fervente a vossos pés!…
Fazei com que – orvalhada inda da luz
De vosso olhar sublime, no meu peito
Tombe a alma fulgente – a alma férrea,
A alma rugidora de Spartaco!…

Oh! dai-me Senhor, dai-me, dai-me em troca
De meus audazes sonhos de futuro,
Em troca de meus róseos ideais –
Em troca, oh! dai-me em troca de minh’alma!…;
Uma estrofe, uma só – mas… oh! meu Deus
Tão grande que envolva a sombra imensa –
A sombra imensa que ergue-me, ora n’alma
U’a sede enorme, divinal de luz –
Que envolva a sombra imensa do gigante
Que tropeçando, pálido e glorioso,
Do patíb’lo na fronte lutulenta
Banhado em luzes foi cair na Glória!

Mas… não!… é impossível!… sinto-a n’alma
No cérebro febril, no coração,
Divina a sinto iluminar-me a mente,
Palpitar-me, fervente, em todo o ser
Mas não posso traçá-la, não existe
Não existe uma página p’ra ela!
Mas não posso cantá-la que o meu lábio
Se abrasaria inteiro a seu contato!…

Mas, se é certo que ardente há de se erguer
Do porvir nas latentes cumeadas
Um novo dia às brasileiras frontes
Então – assim como do Sol os raios
Do férreo peito da Tebana estátua –
Cantos imensos – dantes, arrancavam –
A liberdade o Sol – Sol sem poente –
As luzes mergulhando, rubra e forte,
No peito enorme de uma raça livre
Há de dele arrancar – a brava estrofe
Que em meu lábio não cabe… há de arrancá-la
E aos clarões sublimes da República –
Canta-la-á – em honra do herói
Nauta ousado das plagas do porvir –
Que desviado da rota – altivo – vaga –
E corta, grande – as rutilantes ondas
Da Glória – eterno mar de luz e lágrimas!

Rio – 23 Novembro 1883

Depois do combate

Finara enfim – a luta… esquálidos, cansados –
– Na febre da vitória – os bravos vencedores,
Lançavam à mudez dos frios descampados
Como um canto de Glória – o rufo dos tambores!…

Mas era atroz de ver-se o campo da batalha…
– Imensa vastidão fatal de peitos frios
Nos quais a atroz semente – ardente da metralha
Plantava a febre, a dor, a morte e os desvarios!…

Ah! era um quadro atroz, um quadro que doía
Dos vencedores ‘té nos férreos corações!
Correndo em derredor o vendaval prendia
Umas canções fatais nos lábios dos canhões.

Calaram-se os clarins – trementes, vagarosos,
Os pálidos heróis entraram para as tendas!
– Fora o tufão chorava uns cantos dolorosos
Enormes de tristeza e maldições tremendas!…

Curvou-se a solidão – nos peitos dos feridos…
Era de tarde – o Sol rolava sob os céus!…

Ah! dir-se-ia ser dos lívidos vencidos –
A lágrima sangrenta – caindo aos pés de Deus!…

Rio – 26 novembro

Depois do trabalho

Cansado – se arrimando à sua férrea enxada
Fitou o camponês a vastidão, já fria,
E cheia de mudez mas da mudez sagrada
Que canta em nosso ser dos céus a poesia!…

Olhou-a c’um olhar tranquilo, longo e calmo,
Em volta o vendaval, rolando dos outeiros,
Cantava, perfumado, um trêm’lo e santo salmo
Beijando – ásp’ro e sonoro, a fronte dos coqueiros.

Silente, frio e mudo o crepúsc’lo embuçava –
A fronte d’amplidão em seu manto cinéreo
E inteira a natureza, inteira – se calava
Num êxtase sublime – enorme de mistério…

Era um quadro divino – o sertanejo rude
A fronte – aonde nunca ardeu do mal a febre,
De suores coberta –, as pér’las da virtude, –
Erguendo caminhou ao mísero casebre…

Algum tempo depois – parou, parou, sorrindo,
– Em frente sua casa, misérrima – se erguia –
Na porta a loura filha – um anjo lindo, lindo
Lhe abria os braços – trêm’la, e ria – e ria… e ria!

26 Novembro

Dantão…

Parece-me que o vejo – iluminado –
Erguendo delirante a grande fronte
– De um povo inteiro o fúlgido horizonte
Cheio de luz, de ideias constelado!…

De seu crânio – vulcão – a rubra lava
Foi que gerou essa sublime aurora
– Noventa e três e a levantou sonora
Na fronte audaz da populaça brava!

Olhando para a história – um séc’lo é a lente
Que mostra-me o seu crânio resplandente
Do passado através o véu profundo…

Há muito que tombou – mas, inquebrável
De sua voz o eco formidável
Estruge ainda na razão do mundo!!

28 Novembro

Marat…

Foi a alma cruel das barricadas!…
Misto de luz e lama!… se ele ria
As púrpuras gelavam-se e rangia
Mais de um trono se dava gargalhadas!…

Fanático da luz… porém seguia
Do crime as torvas, lívidas pisadas –
Armava, à noute, aos corações ciladas –,
Batia o despotismo à luz do dia…

No seu cér’bro tremendo – negrejavam
Os planos mais cruéis e cintilavam
As ideias mais bravas e brilhantes

Há muito que um punhal gelou-lhe o seio…
Passou… deixou na história um rastro cheio
De lágrimas e luzes ofuscantes…

28 Novembro

Robespierre

Alma inquebrável – bravo sonhador
De um fim brilhante, de um poder ingente –
De um cérebro audaz – a luz ardente
É quem gerava a treva do Terror!…

Embuçado num lívido fulgor
Su’alma colossal – cruel – potente
Rompe as idades, lúgubre – tremente –
Cheia de glórias, maldições e dor!…

Há muito já que ela – soberba, ardida
Afogou-se – cruenta e destemida
– Num dilúvio de luz – Noventa e três…

Há muito já que emudeceu na história
Mas, ainda hoje a sua atroz memória
É o pesadelo mais cruel dos reis!…

28 Novembro

Saint-Just

Un discours de Saint-Just donna tout de
suite un caractère terrible au débat…

Raffy – Procès de Louis XVI

Quando à tribuna ele se ergueu, rugindo –
– Ao forte impulso das paixões audazes
Ardente o lábio de terríveis frases
E a luz do guiso em seu olhar fulgindo

A tirania estremeceu nas bases
De um rei na fronte ressumou – pungindo –
Um suor de morte e um terror infindo
Gelou o seio aos cortesãos, sequazes, –

Uma alma nova erguia-se em cada peito,
Brotou em cada peito uma esperança
De seu sono acordou – firme – o Direito –

E Europa – o mundo, mais que o mundo – a França
Sentiu numa hora, sob o verbo seu,
As comoções que em séc’los não sofreu!

28 Novembro

Na selva

— 1 —

Oh! se eu pudesse ir nas florestas ínvias
Tecer o olvido de meu pobre nome!…
Buscar nas auras estivais o bálsamo
À febre – imensa – que a meu ser consome!…

Ir lá bem longe – nos seus seios flóridos
Divinos – cheios de uma vida imensa –
Beber, tremente delirante e ávido
– Uma outra vida – inspiração e crença…

Galgar febril os levantados píncaros
Que as frontes torvas para Deus levantam
– Perto dos céus ir semear as lágrimas
Chorar as dores que o meu ser quebrantam

Ah! se eu pudesse, ó solidão intérmina,
– Poema mudo, divinal, que assombras –
As mentes todas, no teu seio místico –
Lavar – com prantos – da minh’alma as sombras

Depois – contente – nos florentes páramos
Lançar-me rindo… e arremessar meus cantos
– Filhos da luz, da mata, altivos, férvidos
Na sublimal mudez dos ermos santos!…

— 2 —

Sim! eu quisera nos desertos áridos
Sem fim, sem luz, imensos, vastos, vastos
Matar a ideia de um passado tétrico;
Lançar a poeira de meus sonhos gastos!…

Porque eu não quero da riqueza os séquitos,
Soberbas glórias, rutilantes vestes,
E quero apenas, na floresta, extático
Ouvir cantar as jurutis agrestes!…

E porque quero as rubras, quentes lágrimas,
Que dominar no peito embalde ensaio,
Jorrar alfim nas cumeadas pétreas
Onde a procela retempera o raio!

Longe dos homens, de seus vis escárnios
Oh… se eu pudesse reviver ainda
Ouvindo os cantos das esferas lúcidas,
As canções de ouro d’amplidão infinda…

O atroz delírio das cidades lúbricas
Mão –, de minh’alma, a crença, a luz consome…
Ah! se eu pudesse ir florestas ínvias –
Tecer o olvido de meu pobre nome…

29 Novembro 1883

Sonhando…

De um sonho à doce bafagem
Eu fui um dia levado,
– Que dolorosa viagem –!
Às solidões do passado!

Que triste lugar… apenas,
Por entre as urtigas – dores –
Sorriem – tristes, serenas
De morto ideal as flores…

É de lagrimas o solo
Aonde – ao pé da soidade –
Levanta o nevado colo
Uma só flor – a saudade…

Nem um riso ali esvoaça –
E por entre as trevas densas
Chora o vento da desgraça
Sobre as ruínas das crenças –

Mil noutes ali se abraçam,
Mil noutes ali deslizam
– E os choros nos ares passam
Das ilusões que agonizam

Os sonhos por terra jazem…
Além, – do mundo a ironia
E mais a dor, torvas fazem
A bacanal da agonia!…

Que triste lugar… dum lado
Cinéreo um berço se eleva
De frios prantos velado…
Em frente se estende a treva!…

Mas, essa treva rasgando
Longe, longe – trêm’lo, – eu fito –
Uma estrela cintilando,
De Deus no manto infinito…,

Como brilha – cristalina –
Do passado no horizonte –
Num beijo de luz divina,
Cingindo-me a triste fronte!…

Como é bela – assim – fulgente –
Por entre a calige’ imensa…
Como o seu brilho tremente –
Me inunda o peito de crença! –

Como o seu brilhar é lindo…
Que Aurora – nos raios seus…
Oh! ela é um elo infindo
Que liga minh’alma a Deus…

E quanta magia tem…
Oh! quanta magia exprime… –
É a alma de minha mãe
– Meu Deus!… que lugar sublime…

29 Novembro 1883

Gonçalves Dias (ao pé do mar) [ 3 ]

Se eu pudesse cantar a grande história
Que envolve ardente o teu viver brilhante!
Filho dos trópicos que – audaz, gigante –
Desceste ao túmulo subindo à Glória!…

Teu túm’lo colossal – nest’hora eu fito –
Altivo, rugidor, sonoro, extenso –
O mar!… o mar!… oh sim teu crânio imenso –
Só podia conter-se – no infinito!

E eu – sou louco talvez – mas quando, forte,
Em seu dorso resvala – ardente o Norte –
E ele espumante estruge, brada, grita

E em cada vaga uma canção estoura…
Eu – creio ser tu’alma que, sonora,
Em seu seio sem fim – brava – palpita!!

29 Novembro

Rebate (Aos padres)

Sonnez! sonnez toujours, clairons de la
pensée
” V. Hugo

Ó pálidos heróis!… ó pálidos atletas –
Que c’o’a razão sondais a profundez dos Céus –
Enquanto do existir no vasto Saara, enorme,
Embalde procurais – essa miragem – Deus!…

A postos!… é chegado o dia do combate…
– As frontes levantai do seio das soidões –
E as nossas armas vede – os cantos e as ideias
E vede os arsenais – os cér’bros, corações!

De pé!… a hora soa… esplêndida a Ciência
Com esse elo – a ideia – as mentes prende à luz
E ateia já, fatal, a rubra lavareda
Que vai – de pé heróis! – queimar a vossa Cruz…

Vos pesa sobre a fronte um passado de sangue.
– A vossa veste negra à muit’alma envolveu!…
E tendes que pagar – ah!… – dívidas tremendas
Ao mundo – João Huss – e à Ciência – Galileu.

Vós sois demais na terra! e pesa, pesa muito
O lívido bordel das almas, das razões
Sobre o dorso do globo – sabeis – é o Vaticano
Do qual a sombra faz a noute das nações!…

Depois… o séc’lo expira e… padres! precisamos
– Da Ciência c’o archote – intérmino, fatal
A vós incendiar – aos báculos e às mitras
A fim de iluminar-lhe o grande funeral!…

Já é, já vai mui longa a vossa fria noute,
– Que em frente à Consciência – soubesteis, vis, tecer!…
Oh! treva colossal – partir-te-á a luz…
Ó noute arreda-te ante o novo alvorecer…

Ó vós que a flor da Crença – esquálidos, regais
C’o as lágrimas cruéis – dos mártires letais –
Vós – que tentais abrir – um santuário à Cruz,
Da multidão no seio, a golpe de punhais!…;

– O passado trazeis de rastro a vossos pés!…
Pois bem – vai se mudar – o gemer em rugir –
E a lágrima em lava!… ó pálidos heróis –
De pé! que conquistar-vos vamos – o porvir!…

1º Dezembro 1883

Orgulho

Orgulho!… sim – só tu és grande e forte
Só tu me sanas n’alma essa dor fria
Que gela-me a razão e em cada dia
Uma célula pútrida da morte

Atira-me na artéria… no meu Norte
Q’importa-me o estender-se atroz sombria
A noute da desgraça se a ironia
Dás a meu lábio ante o negror da sorte!

Q’importa-me o sofrer em triste anseio
Se as lágrimas me secas dentre o seio
Aonde a dor a garra fria criva?…

Orgulho ergue-me a fronte… eu sou teu filho!
Sustem-me a alma… de meu olhar o brilho
Brune soberbo em tua luz altiva!…

Euclides

Reminiscência [II]

Foi um dia… fugindo – hirto, tremente
A mim mesmo… à vaga ansiedade
Da descrença – que me nubla a mente
E que envelhece a minha mocidade

Num cemitério entrei – torvo, dolente –
…Oh!… sim que é bom dos céus à claridade
Deixar-se a alma repousar silente
Entre o mistério, Deus e a soledade!…

A que tempos foi isto! eu regressava
E, pálido, em redor, tremente olhava
Quando trêm’lo parei – frio, sem calma –

Eu vira – alto o luar aos céus cingia –
Duma caveira a lívida ironia –

Nest’hora a sinto me doendo n’alma!…

Euclides

Agonia da Crença…

Meu Deus!… é já bem tarde… ah!… não traz eco a prece
Que rola de minh’alma à funda solidão…
É tarde… e já me abala o temporal das dúvidas
Aos dous polos da vida – o cér’bro e o coração!…

Jaz tudo morto em mim!… minh’alma habita um túmulo.
Envolta da descrença em a clâmide atroz!…
P’lo prisma da desgraça é que eu diviso a vida –
Pelo da dor – a Morte – e p’lo da morte – a Vós!…

Embalde – a delirar tateio no futuro
Um sonho, uma ilusão! misérrimo que eu sou
Tudo é deserto, mudo – e a minha mente chora
As lágrimas que outrora o coração chorou!…

Entretanto sou moço… – e a senda do existir
De mil Auroras veste o intérmino fulgor…
Intérmino fulgor que eu atravesso mudo
Embuçado na noute atroz de minha Dor!…

Embalde eu me procuro… eu perco-me em mim mesmo…
E se à fria soidão da alma ouso descer
Deus! um mundo de luz e de magmas – a lágrima
Arrebenta feral das trevas do meu ser!…

– Meu Deus!… A consciência, eu sei, é o vosso olhar! –
Não posso mentir pois! os arcanos fatais
De meu agro viver – desvendam-se ante vós…
Sabeis pois – é bem tarde… é tarde até demais!

Telas

No instante cruel da despedida –
Gelado o lábio, mudo – hirto, sem ar –
Eu vi su’alma – d’ilusões despida
– Tremer na luz do seu tão triste olhar!…

E não chorei!… seu seio – alva guarida
De minh’alma – chorava em crebro arfar…
E, eu não chorei… e ah! – eu sentia a vida
Das lágrimas ao peso – se dobrar!…

Saí, andei, corri… parei cansado –
Voltei-me e longe, longe eu vi asinha
– Garça do amor fugindo pr’o passado –

Branca, pura – ideal – sua casinha…
E as lágrimas do amor deixei – domado –
Constelarem da dor a noute minha!…

Lux

Desmaia a noute silente
Velha louca que devoras
As ilusões mais sonoras
Vai – cai – por aí tremente!

Que de harmonias canoras
Palpitam no ar fulgente
Quando o Sol cinge o Oriente
Em sua clâmide de auroras…

Oh! sim seus raios brilhantes
Quentes – rubros – ofuscantes
São cordas d’uma harpa imensa –

A natureza – onde ardida
Tange a terra um hino – a vida
Chora a alma um canto – a Crença!

O jaguar

Livre das selvas que trazes
Na garra – o pavor da terra,
No peito – as canções da guerra
Nos olhos – chamas audazes!…
Quando convulso tu bramas
Nas brenhas – bravo, possante –
E o Sol te arranca, ofuscante,
Do olhar – punhados de flamas!…

Quando na raiva sem termos –
Povoas – fremindo forte
Com um poema de morte
A calma mudez dos ermos!;

Lembras o meu coração!…
Livre qual tu, qual tu forte
Freme, palpita sem norte
De meu peito na soidão!…

Salta – estaca – bravo, lesto
Cheio de amor e ódio, deixa
Uma blasfêmia uma queixa
Um poema em cada esto…

Se a trevosa e fria vaga
Da desgraça nele bate
Ele blasfema ao embate
Crê Satã e ruge a praga!

Jaguar! ida a raiva tua
Imóvel, calmo tu lavas
Do sangrento olhar as lavas
No argênteo clarão da Lua…

Meu coração – ida a dor
Chora e canta – entre a soidade –
– No saltério da saudade
A Eterna harmonia: – o amor!…

Catequese (Soneto velho)

“Vamos… a tarde é bela… e a soledade
O frio altar dos mártires do amor…
– Trago no seio um poema – é a saudade!…
Tu – prantos!… chora, eu cantarei, ó flor!…

Tristes de nós – a frígida orfandade
Em seu manto de névoa, aterrador
A ambos envolveu… oh! céus!… quem há de
Arrancar-nos da fronte o atroz palor

Onde se espelha a morte?… eu sei – Ninguém!… “Deus!…”
“Criança não há Deus!… mas o que tens?…
Ah!… choras, choras em febril anseio!…

Oh! Como és bela assim!… mas! ah!… espera –
Espera!… sim! de Deus a image’inteira
Eu vejo, de uma lágrima no seio!…

Os grandes enjeitados [ 4 ]

Ô jongleurs, noirs par l’âme et par la servitude!…
Victor Hugo

Servis!… dançai, folgai – na régia bacanália…
Quadra-vos essa luz que nos raios espalha
A treva e o crime atrai!…
Valsai – nesse delírio atroz, brutal que assombra –
Folgai… a grande Luz espia-vos na sombra!
Folgai, cantai – valsai!…

Que vos importa – ó vis, caricatos atletas –
Se o povo dorme nu – nas lôbregas sarjetas –
Entre o pântano e os Céus!…
Q’importa se essa luz – faz as noutes da História!
Q’importa se os heróis ’stão entre a lama e a Glória
Entre a miséria e Deus!…

Q’importa-vos a dor; – a lágrima brilhante
Do seio dos heróis –, estrela palpitante
Que ao céu do porvir vai…
Q’ importa-vos a honra, a consciência, a crença,
A justiça, o dever!?… ah! vossa febre é imensa! –
Folgai, folgai, folgai!…

Q’importa-vos a Pátria… a pátria – é-vos um nome!…
Q’importa-vos o povo – esse galé da fome –
Ó cortesãos, ó rei!?
Se o olhar das barregãs, de amor e febre aceso
Vos ferve dentro d’alma – e se o direito é preso
Nessa grilheta – Lei!

Fazeis bem em vos rir – ó pequeninos seres…
O crime, o vício e o mal são os vossos deveres –
Avante pois – gozai…
Atufai-vos – rolai ó almas sem guarida –
No abismo fundo e frio – o seio da perdida!…
– Cantai… cantai, cantai!…

Gritai com força! assim… não percebeis agora
O eco de vossa voz?… – de vossa voz sonora –
Tremer na vastidão!?
Não ouvis as canções que o seu frêmito espalha?…
Ele desce de Deus – ó dourada canalha –
Ele é – Revolução!…

1884

O pescador (Canção)

Refresca a brisa… o valente
O rude, audaz pescador
Lança a canoa tremente
Do mar ao ásp’ro furor!…

Nas asas alvas da vela
Reza a brisa… e cai dos Céus
O raio de sua estrela
Que prende su’alma a Deus!…

A noute desce… q’importa
Na praia uma aurora brilha,
De seu Céu: – seu lar, na porta
Ela fulge – é sua filha…

Ao largo!… a procela atroa
Aos pés da noute que desce…
Su’alma para Deus voa
Na asa ideal da prece…

Ao largo… ao largo!… fantásticas
Sombras – dum frio tufão
Nas crinas voam – e elásticas
Se enroscam na vastidão!…

Q’importa!… freme a procela
Na sanha torva e tigrina…
Desses Céus cada uma estrela
É-lhe uma âncora divina…

Bravo Ser – que a alma a Deus atas
Dos rijos tufões c’o o grito
Homem que o pão arrebatas
Das entranhas do infinito!…

Só tu és grande!… tremeram
A teus pés mil ondas frias!…
São teus suores que geram
As argênteas ardentias!…

A eterna luta

A fome

Vem criança, tu sofres – tua fronte
Gelei com meu bafejo… essa revolta
É jogral!…

A desgraça

De teu fúlgido horizonte
Eu apaguei os astros!…

O Vício

Vem!…

O crime

Vem!…

A consciência

Volta!…

A fome

Olha além… quanta luz!… oh!… que harmonia
Das harpas de ouro e de marfim se eleva…
Ah!… compara isto à tua alcova fria!…

A donzela

Sim!… quanta luz…

A Razão

Aquela luz é treva!…

A Fome

Oh!… vem depressa, o frio te congela!…

O frio

Ó fome, irmã… os meus cinéreos véus
Ressumam dor – do lamaçal à estrela
Porejam fel – da podridão aos céus!…

Caminha, irmã… além – o Vício em meio
Da luz – disseca uma consciência morta!
– Eu tenho de gelar ainda um seio… –

A fome

Do Vício eu vou somente até a porta!…

O túmulo

Criança – estaca – aquela luz é bela
Mas tecem noutes os lampejos seus…
Vem a meu seio – oh! ele é negro e gela
Mas o seu fundo é uma aurora – Deus!…

A Cruz

Não vai… te ampararei – tua dor é imensa!…
Pois bem semeia nos meus pés teu pranto
E nascerá a calma, a fé e a Crença!…

A estrela

Se és nua faz com meus raios um manto!

A fome

Vem! não ouvis do estômago o atroz grito

O estômago

Oh!… Sim, sim sofro muito!…

A carne

– E eu, irmão!…

O túmulo

Vem!…

A carne

Bah!… túmulo!… ou cala-te ou vomito!…

A consciência

Volta!…

A fome

… segue!…

O vício

vem!…

A consciência

… não!…

A fome

sim!…

O desespero

sim! não!

O vício

Ei-la que chega – oh!… dar-te-ei brilhantes

A orgia

De meu olhar te dou a áurea centelha!…

O vício – contin.

Dar-te-ei Ouro!… gemas coruscantes!…

A Honra

Foge!… eu dou-te a minha capa velha!…

Ruínas

Eras meu ideal – a imagem q’rida
Que em meus sonhos fatais divina eu via!…
– No atroz altar duma paixão sombria
Sagrei-te a alma, o coração e a vida…

Minha crença fugiu quando invadida
Minh’alma foi por esta luz tão fria
Que o teu olhar goteja e – agra agonia –
– Tu és mulher, tu és uma Perdida!…

E tu’alma é sagrada, é pura… é santa!
Forte – venceu tanta miséria, tanta
De teu negro viver no rubro drama!…

Ó alma divinal ninguém condena
Teu exílio na terra… ouve serena:
– Deus deixa a estrela se espelhar na lama!…

Rio Abril 1884

Fenômenos da Lua

Foi um sonho?… nem sei!… entre a soidão feral
– Que a noute fria eleva –
Eu procurava calmo o meu róseo ideal
Pelos seios da treva!…

Quando,… – Meu Deus, nem sei se foram choques rígidos
Duma vertigem louca,
Dous beijos sepulcrais oh! me gelaram frígidos
A um tempo a fronte e a boca

Tremi… surgiu a Lua e o seu lampejo baço
Rasgou da terra a venda…
E eu vi… duas visões – erguiam-se no espaço
Pela dourada senda…

E eu sei… sinto no cér’bro em forte, ardente anseio
Que uma aurora se alteia
Mas pressinto uma noute – atroz, fria no seio!…
Um gelo atroz – na veia…

1884

Ridendo…

Sarcasmo!… d’alma os pálidos lampejos
Embuçai-me na tua luz sombria!…
Ironia!… a meu lábio – ermo de beijos –
Gelai, rugai com tua garra fria!…

Escárnio! esmaga os lacrimais arpejos
Que gemem-me no peito… ó agonia
Ó febre, ó dor – ó mórbidos desejos
Ontem p’ra vós do pranto a luz havia

Hoje vos traga a gargalhada rígida
Onte’ a fronte, onde a dor velara frígida
C’o a palidez – o seu feral ressábio

Pendia triste a tanto sofrer… tanto!…
Hoje – meu riso procurai no pranto…
Hoje – meu pranto estrugirá no lábio

1884

Despedida [I]

Mulher!… teu rir me ergueu – de meu sofrer nas vascas
A lágrima me abate e me erguem as borrascas!

Hoje eu sei – de minh’alma a noute lutulenta
Vinha de teu olhar na centelha sangrenta.

Tudo me arrebataste, a fé, o bem, a Crença
E o pranto!… ah! mas deixaste a gargalhada imensa!

Deste à alma da Dor a tempestade fria
Mas nela é que se gera esse raio – ironia!…

Meu peito é mui pequeno – o teu amor profundo
Escuta – um amante há que o conter pode – o mundo!

Escuta ainda, ó bela – anjo pálido e louro
Eu – dava-te a canção – ele – a moeda de ouro!

O choro da inocência é o rir da bacanalia
E tu gostas de rir – abre o seio à canalha!

Eu bendirei teu riso – essa aurora fulgente
Que ao pego de teu seio arrebatou-me a mente…

Num ângulo da rua [ 5 ]

Revolta, em febre, delirante, lassa
Pejado o olhar de uma sangrenta chama
Triste e jogral, cheia de seda e lama
A bronca multidão ante mim passa…

E grita, brada, chora, ri e clama…
Nos céus a lua o argênteo ciclo traça
E aclara trêm’la, fraca, fria e baça
A terra – um palco, a multidão – um drama!…

E a vozeria estoura, estala, brama…
– Fria uma mulher sai da populaça, –
Sombria luz o seu olhar derrama,

Chora uma lágrima – no seio a amassa
Faz u’a moeda d’ouro… e a turba clama
Revolta, em febre, delirante, passa!…

Num minuto de calma

’Stou farto de ideais…
Ó róseas utopias
Que ergui nas névoas frias
Dos ermos areais…

– Astros que cintilais
Em meio das sombrias
Procelas de agonias –
– Eu vos não quero mais…

Auroras, ilusões
Ide… que das paixões
Se rompa o férreo dique…

Da dor, trave-se a lide
Na treva – ó astros – ide…

A lágrima que fique!…

A cruz da estrada [I]

(A meu amigo D.L.R.)

Se vagares um dia nos sertões,
Como hei vagado – pálido, dolente –
À procura de Deus, da Fé ardente
Em meio às solidões…

Se fores, como eu fui, lá onde a flor
Tem do perfume a alma inebriante
Lá onde brilha mais que o diamante
A lágrima da dor…

Se romperes da selva a entranha fria –
Aonde dos cipós na rama imensa
Nossa alma embala a crença…
Se nos sertões vagares algum dia…;

Companheiro! hás de vê-la…
– Hás de sentir a Dor que ela derrama –
Tendo o mistério, aos pés, dum torvo drama,
Tendo na fronte o raio de uma estrela!

Que vezes a encontrei!… mostrando calma
A Deus – entre os espaços,
Do desgraçado ali tombado – a alma
Que tirita, talvez, entre os seus braços!…

Se a onça a vê – lhe oculta a ásp’ra, ferrenha
Garra – e pára – estremece, fita-a, roja-se,
Recua trêm’la e fascinada arroja-se
Entre as sombras da brenha…

E quando a noute das montanhas desce
Velando gélida as campinas belas
Em sua fronte tece
Uma auréola c’os raios das estrelas!…

Nos divinos lugares
Em que ela se ergue – nunca o raio estala
Nem pragueja o tufão… hás de encontrá-la
Se acaso, um dia nos sertões vagares…

Ferrea vox…

Nem tudo é morto, não!… ainda vibra
O olhar de Deus no coração do mundo!…
Inda da Glória o brado audaz, profundo,
Nos seios tem – um eco em cada fibra…

A flor da crença ainda tem o orvalho
Puro da lágrima – e se ainda freme
Na sombra a voz do despotismo, – o preme
A mão calosa – a guante do trabalho!…

De cada lágrima – sangrenta e triste –
Que hirto, convulso, insano o povo chora
O fanal do porvir gera uma aurora…
– Ah!… no pranto do povo um lema existe!…

Eu creio ainda… esses ferais negrumes
– Sombra do trono – onde a Razão tateia –
Hão de ruir ao cintilar da ideia –
Hão de afogar-se em turbilhões de lumes!…

Ah!… creio no porvir – nas minhas veias
Da glória a febre sublimal revolve-se…
E brava, férvida minh’alma envolve-se
Na couraça estrelenta das ideias!…

Não!… essa Noute sepulcral que enluta
A nossa Pátria há de fugir tremente
Quando em seu seio palpitar fremente
A convulsão titânica da luta!…

Não!… desse Sol que aos pés de Deus esplende
Não mancha à luz a fronte dum cobarde!
– E uma só chama em nossas almas arde,
– E uma só senda p’ra o porvir se estende,

Ergamos a procela, pois, da História
Sobre a treva fatal que nos rodeia –
Relampo – o pensamento!… o raio – a ideia
E na atroz tênebra um Santelmo – a Glória

Essa procela esbravejante e cálida
– Onde de Deus um gesto enorme vaga –!
Que as c’roas vis lacera, parte, esmaga
Dos reis na fronte desvairada e pálida!

Lancemos, rubra, em meio dessa treva
Em louca, ardente, divinal vertigem
Que sobre nós – os pés sobre a caligem –
O céu brilhante do porvir se eleva!…

Nem tudo é morto, não!… inda nos bate
Um coração no peito – em nosso peito
Firme – talhado às lutas do Direito –
E onde chameja a febre do combate!…

Companheiros! de pé! – além se espalha
Do futuro a sonora claridade…
– C’roemos nossa noiva – a Liberdade
Com as rosas flamejantes da metralha!

1884

Sobre um seio

De ti – divino vulcão –
Onde a lava do amor vibra
Me veio o gelo que a fibra
Me gela do coração…

Róseo abismo – onde a paixão
Num beijo a alma equilibra…
Céu de amor – onde se libra
A águia da inspiração…

Do coração que em ti freme
Ouvindo os frêmitos lestos
A vacilar de ansiedade

Que vezes minh’alma treme…
– É que escuta nos seus estos
As horas da Eternidade…

Sub umbra…

— I —

Meditemos… a noute sobre as penhas
Estende os frios véus
E a triste, frígida, mudez das brenhas
Aninha a voz de Deus!…

Flameja o Céu… a túnica prateada
Enorme do luar
Envolve a imensidade e esmeraldada
Roçando sobre o mar

Levanta o argênteo pó das ardentias!…
Rolando d’amplidão,
C’roada de astros, sobre as penedias
Debruça-se à soidão

A sonorosa solidão do Oceano!…
Oh!… como é bom cismar
Quando nossa alma em delirar insano
Num raio do luar

Cintila, treme, vibra – aos céus se evola!…
E há tanta luz no céu!
Tanta pérola fulge, pende, rola
Desta noute no véu!…

— II —

Meu Deus!… eis-nos bem sós!… a noute passa
Sobre a fronte, feral,
Do mar que, longe, do infinito traça
– O ciclo colossal!…

A imensidade muda que se embuça
Nas tênebras cruéis;
A vaga fria que eternal soluça
No dorso dos parcéis;

Das cadentes estrelas os mil traços
Que correm n’amplidão;
A soidão rutilante dos espaços;
O fremente tufão

Que estruge nos fraguedos – ásp’ro, rudo; –
O rígido fragor
Da noitada longínqua; tudo, tudo
Me fala em vós Senhor!

Ah!… sinto-vos meu Deus… meu pensamento
Em ímpetos viris
Tateia-vos nos céus… nesse momento
Creio – vós existis!…

— III —

Pois bem, meu Deus – eu que sem mácula ergo
Audaz, bravo – febril –
Minh’alma a vosso olhar — tremente a vergo —
Da turba ao riso vil!…

Meu pensamento que o infinito rompe
E em vosso seio cai
Que de vezes o voo alto irrompe
E trêmulo se esvai

Sob a ironia vil!… sou forte e ai!… ela-me
A dor ao coração —
E cada lágrima que a face gela-me
Me afaga uma ilusão!…

Sinto entre as flamas de u’a lascívia louca
Meu coração bater
E nunca e nunca iluminou-me a boca
Um beijo de mulher!…

X

Oh!… Meu Deus, nada há que quebre
Em meu cér’bro essa atra ideia
Nem que apague-me na veia
Esta extraordinária febre!?

Nem sei o que tenho… triste
— Sem luz, sem crenças, sem calma —
pressinto que na minh’alma
Um grande mistério existe…

Às vezes — sublime — cresce
— De meu peito na negrura —
A luz da Crença, e murmura
Meu lábio as dulias da prece…

Às vejas — rija, titânica —
Me verga a vertige’ e rouca
Ri e chora-me na boca
A gargalhada satânica

Ás vezes da soledade
Nas frias névoas se embuça —
Minh’alma e flébil soluça
— Sobre o seio da saudade —

Às vezes — a sombra fria
Da Dor em meu ser se alarga;
E atroz em meu lábio amarga
A cicuta da ironia…

Outras vezes — rio e choro —
Ao mesmo tempo, — praguejo
E rezo — lacero e beijo…
Convulso — desprezo e adoro!

Eu, então, meu Deus, funéreo
— Sem luz, sem crença, sem calma —
Pressinto que na minh’alma
Existe um grande mistério!…

Rio Janeiro 1884

Viajando

Oh!… Quanta ardente poesia nesta
Rosada tarde vibra… doce, ameno
Murmura o vento como um santo treno
Que se evola do seio da floresta…

Tremem nos ares mil canções estranhas
— Cheias de amor, cheias de mágoas, – e umas
Coifas tecidas de opalinas brumas
Cingem sutis a fronte das montanhas…

Soluça e rola na florida veiga…
Além da brenha solitária e umbrosa
Suspira a voz da juriti saudosa
— Dolente, terna, apaixonada e meiga…

Meu Deus!… que doce e mágica ebriedade
Me revigora a mente agonizante!…
Deixai que na harpa do crepúsc’lo eu cante
Cante as dulias sagradas da saudade!…

Oh!… preciso chorar!… no peito me arde
De infausto amor o atroz doer sem termos!…
Deixai que eu chore — na soidão dos ermos —
Que enxugue o pranto — no áureo céu da tarde!…

Deixai que eu erga da razão a flama
— que o bafo impuro das paixões quebrante —
Desta tarde co’a luz que tanta, tanta
Tanta magia sobre mim derrama…

Longe dos homens e de vós bem perto
Oh! como é doce a dor!… como a saudade
É suave e santa nessa soledade
— que se embuça nas névoas do deserto!…

Quanta ilusão palpita nesses ares
Quanto íris róseo — quanta azul miragem
— quanta canção de amor dedilha a aragem
— Na harpa — divina e virgem — dos palmares —

Meu pobre coração!… neste minuto
— No qual sinto vibrar a Eternidade! —
Veste os teus dias que a atra feridade
Dos homens vis cobriu de lama e luto!

Canta os meus sonhos que se atufam lestos
Na tênebra sinistra da descrença
Canta que eu ouço — ó febre, ó magia imensa —
A fala d’Ela em meio dos teus estos!…

— 2 —

Mas preciso seguir… triste, calado
Tomo das rédeas… fúlgido, altaneiro —
De minha ásp’ra jornada companheiro
— Rutilante o luar marcha a meu lado

Caminho da Ponte Nova, Março 1884

Eu sou republicano… [ 6 ]

República!… Voo ousado
Do homem feito condor!

Castro Alves
J’appele un chat un chat
Boileau

— I —

Eu sou republicano… no meu peito
O coração que bate foi talhado
Às lutas do Porvir e destinado
A se brunir nas flamas do Direito!…

Eu sou republicano… hirto se meche
A meu olhar da tirania o foco
E… por Catão!… o meu castor não troco
Pela ridíc’la c’roa de um Boheche!…

Eu sou republicano — e não consomem
As febres vis do ouro a minha veia,
Porque a moeda do futuro — é a ideia
E um rei… é um rei!… — o democrata — um homem!

— II —

Que o neguem muito embora os que se curvam
— Os que vivem dos paços nas soleiras —
Mentes trevosas — almas que as poeiras
Das régias botas lutulentas turvam!…

Que o neguem muito embora os vis Narcisos
— Hipócritas jograis e tantos, tantos
Que têm o coração de cheio de prantos
E o róseo lábio e desfazer-se em risos!…

Que o neguem muito embora… altivo, ufano
Eu me ergo audaz sobre os seus vis protestos,
Ouço do coração os bravios estos
E eu me convenço — sou republicano!…

— III —

E o serei, e o serei! que se alevante
Em minha frente a legião sombria
Dos dourados vilões da tirania
Numa febre infernal e delirante…

Que se me erguem em cólera inflamadas
Essas almas sem luz — ermas de esp’ranças…
Sibilem-me em redor as frias lanças
Rebente-me na frente a metralhada…

Que os brilhos dos punhais — lívidos, lestos —
Tinjam-me o olhar!… eu o serei ainda
Porque eu ouço melhor na luta infinda
— A voz de Deus do coração nos estos!

— IV —

Ah!… brado altivo em frente dos hilotas:
— A cáfila dos reis — sangrenta, fria —
Estúpida — cruel — letal — sombria
É muito indina p’ra engraixar-me as botas…

Estoicismo

O desespero em gélidas bafagens
Do vácuo de um ser sinto se erguer…
Ó sonhos!… ilusões – tristes miragens
Ferais – pobres roupagens
Que incendiou-me o olhar de uma mulher!…

Duma esp’rança sequer o azul lampejo
Cinge-me a mente c’o letal fulgir…
Ai!… afoguei, nas febres do desejo… –
Minhas crenças – num beijo!
Num seio palpitante o meu porvir!…

E essa ideia fatal! – nada há que sagre-me
Essa ideia de morte – negra fez
Da taça do existir – … nada há que apague-ma
E o sangue d’alma – a lágrima
Tinge-me a face em funda palidez…

E eu sei que morro!… um funeral inverno
Faz já a noute sobre os dias meus…
Ó mulheres que amei – ardente e terno,
Róseas filhas do Inferno,
Vós me lançastes – infernais – a Deus!

[A igreja abandonada] [ 7 ]

Seria bom morrer… seria a morte bela…
Me fecharia o lábio o beijo duma estrela
Seria o meu sudário áureo e vasto – o luar!…

Mas, não! sou moço e o livro é o elo cintilante
Que me escraviza ao mundo — eu devo delirante
Rasgar c’um raio — a ideia à noute do existir…
Oh!… sim devo viver — q’em louca ebriedade
Sagrei meu coração — à pátria e à Humanidade —
Meu canto — ao infeliz; meu cérebro — ao porvir…

Adeus… sagrada ruína — as estrelas palejam
Obumbram-me nos céus, de mil centelhas pejam
Os arrebóis do dia à eterna vastidão —
Adeus! adeus… ai — possa eu vir, glorioso, um dia
Ao mármor’ glacial dessa nave tão fria
— Em que ora escrevo — ler — minha triste canção!…

Ilha das Salinas, 1884

Do cais

(E.A)

“Adeus…” inda uma vez, a fronte fria,
Opresso o peito, o lábio soluçante —
Eu murmurei fitando o alvejante
Lenço — que em suas trêm’las mãos tremia…

Adeus… eu murmurei — cruel fervia
Não sei que febre ardente calcinante
Na minha veia… a um lado o mar vibrante
Lançava aos céus chorosa monodia…

Que mágoa atroz, então — eu curti — quando
O longínquo vapor, triste fitando —
Sumir-se o vi no véus da imensidade…

Ah! eu senti, meu Deus — pobre precito —
— Entre meu peito e o dela — o infinito
Entre minh’alma e a sua — a eternidade!…

Meia hora de descrença…

Ah! sinto agora, triste e soluçante
O inferno – o teu olhar – queimando iriante
Meu pobre coração…
E choro e choro… e a lágrima sentida
Que a minha face orvalhada, dolorida
— Rolou-me da razão! —

Mulher, tu sabes que um dia, doudo,
Ri-me de Deus, do Bem, do mundo todo
Da desgraça, da Dor,
Do olhar das virgens, do cismar dos sábios
Bebendo, vil, nas taças de teus lábios
— O absinto do amor…

O teu olhar cegou-me e, escuta, um dia
Após a febre sensual da orgia
– Vulcânica e feroz –
Tentei a prece erguer à rósea boca
E apenas nela achei – cética e rouca
A gargalhada atroz…

Um dia – após um beijo delirante
No teu lábio – purpúreo e palpitante –
– Em doloroso afã –
Ah!… nesse dia – em soluçante anseio –
Nesse dia – meu céu – era o teu seio
Meu Deus – era Satã!…

Nesse dia o vulcânico ressábio
De teus beijos elou-me o escárnio ao lábio —
A febre — ao coração…
E eu senti do destino a noute ingente
Vir sobre mim — de teu olhar ardente
— Brotando no clarão!…

Um dia após cingir-te ao peito insano
D’alma esmaguei no mais sagrado arcano
Meu mais puro ideal…
E o morto coração lancei, divino
À sanha má de teu olhar tigrino
De teu amor — chacal!

E desde então a crença me empalece…
Ergui no lábio frio um túm’lo à prece
– O rir de D. Juan –
Doudo arrojei das dúvidas na poeira
A minh’’alma e com o Cristo à cabeceira
– Eu sonho com Satã!…

Eu não posso fugir-te — e nesse anseio
Se agita a minha vida de teu seio
No apaixonado arfar
E minh’alma infeliz — erma de esp’rança
— Mariposa do amor — louca se lança —
Se perde — em teu olhar! —

E tudo me tiraste — doudo, cego —
Tudo arrojei de teu seio no pego:
— Os pobres sonhos meus —
A prece, a calma, as ilusões — a crença —

E — ó mágoa — ó pranto — ó febre — ó febre imensa
O próprio — o próprio Deus!…

A queda da Bastilha (14 de julho de 1789) [ 8 ]

[…] a tomada e a demolição da Bastilha, que era para o
povo a imagem material da queda do antigo governo e da destruição do poder arbitrário.

Bailli, Mémoires.

Era um quadro grandioso — que se erguia,
Sonoro, do futuro, ao céu fulgente;
Tela vibrante que belaz rompia
Da palheta de Deus — férrea e potente:
’Stava a um lado da Bartilha — torva e fria —
Onde rugia o despotismo ingente
E doutro a barricada — brava, ufana
Onde vibrava a Consciência humana!…

Era um quadro grandioso… palpitava,
Da multidão na comburente veia,
Essa febre vulcânica, ígnea e brava,
Essa febre de Glórias — giganteia
Que em cada lábio uma epopeia crava…
Essa febre que gera-se, se alteia
De um bafejo de Deus — divina e audaz;
— Essa febre que mata os imortais…

Abrindo o peito à férvida centelha
Do ignoto Gênio, que as nações arrasta
No eterno evoluir — firme aparelha
A multidão à ideia a fronte vasta,
E fita a fortaleza — áspera e velha —
— Onde o passado entre canhões se engasta…
E fita a sua entranha atroz de pedra
Onde da tirania — o aborto medra!…

Depois ouvindo a férvida linguagem
De Voltaire e Rousseau — gênios que cismam —
Sobre as nações, ruídas à voragem,
Dos reis — homens — que a lei de Deus sofismam
— Se arroja a ela, bélica, selvagem —
E num’hora — em que séculos se abismam
Do incêndio c’oa a garra ásp’ra, convulsa —
A noute atroz que n’ela habita — expulsa —!

E era um quadro sublime — formidável
Num delírio flamívomo de balas
A pétrea torre erguia-se indomável
Dos hórridos canhões nas broncas alas…
Enquanto o incêndio indômito, inquebrável
Aos céus erguendo as labaredas — fá-las
Traçar da noute sobre o seio escuro
A História flamejante do futuro…

Era um quadro sublime — ásp’ro, fervente —
Para lavava nesse mar de flamas
Do despotismo a nódoa corroente…
Em meio às convulsões dos grandes dramas
— Num dilúvio de peitos — refervente —
A tirania se obumbrava — em chamas!…
E o mundo via confundir-se lá
A voz de Deus com o riso de Marat!…

Gólgota enorme de Cristo — a França —
A Bastilha ruiu!… Época brava
Tempo de Glórias; febres, esperança
Em que ao futuro a multidão se elava
Com os brilhos de uma ideia em que a lança
Do pensamento, rubra, lacerava
— Ao gotejar relâmpagos — a treva
Que da ossada dos Cômodos se eleva!…

De bruços nas pirâmides a História
— Sonora e bela — radiante e brava
Ergueu com o olhar os túmulos da Doria,
As sombras gigantescas levantava
De Sócrates, tirteu — e ao Sol da Glória
Paris enorme a delirar mostrava
Paris sangrento onde a razão fervia
Naquele incêndio — que um porvir fundia…

Ó França — ó berço estrelejante e puro
Do poeta e do herói — berço talhado
Pela razão sobre o sepulcro impuro
Dos Richelieus cruéis, — solo fadado
A todos os dilúvios p’ro futuro —
E a todos entusiasmos p’ro passado…
A ti pátria de tanto vate — tanto.
A ti meu pobre mas valente canto!…

14 de Julho de 1884

A estátua equestre

— 1 —

Homem de bronze — imagem de monarca,
Simulacro fatal!…

Fagundes Varela

Há de fundir-te O Sol de um dia novo
— Brônzea sombra de rei – que ásp’ra, cinérea
– Na eternidade fria da matéria –
Te ergues – calcando os ideais de um povo!…

Filho cruel do servilismo e do erro
A Liberdade – brava, audaz – titânica
Há de abater-te, esplêndida, vulcânica
– Fazendo em pó teu coração de ferro!…

De crenças, glórias — em fatal regalo
Tua boca torva locupleta-se ávida
E a nossa História se lacera pávida
Nas patas infernais de teu cavalo…

Pois bem!… há de ruir ao rijo açoute
Das rajadas indômitas da história
Teu peito ermo de vida – ermo de Glória
e teu olhar — petrificada noute…

— 2 —

…Vergonha imensa!…
……………………….
o Brasil, cruzando os braços,
Dobra os joelhos contrito
Ante a massa de granito
Do primeiro Imperador!

Pedro Luiz

Negro espectro — atro amálgama
– De bronze, de treva e pus –
Que – com o séc’lo na garupa
Galopas da História à luz!…
Homem de ferro — maldito —
Das consciências proscrito
Que te alojas do infinito
Nas antecâm’ras azuis!…

Tu que com o braço estendido
Varando do espaço os véus,
Mendigas um canto à Glória
Mendigas – um astro aos Céus…
Tu hás de tombar – quebrado
Pela ideia esfacelado
Bandido!… que ergues-te ousado
— Entre a multidão e Deus!…

Maldito!… pr’a alimentar
O teu brônzeo coração
Se rouba, se arranca a vida,
A alma de uma nação…
Enquanto a fronte gelada
De Tiradentes, sangrada
Se alevanta magoada
Entre ti e a multidão!…

Bem sei teu peito é de bronze
Mas nele há de penetrar
– A espada do pensamento
Brunida de Deus no olhar…
E ao brado das populaças
– Cheio de glória e desgraças
Ao pó, á lama das praças,
Por Brutus! — hás de rolar!

Eu creio… para arrojar
Ao nada os destinos teus
Brotarão Marats da terra
Rolarão Rolands dos céus!…
E de Deus a um gesto ingente
Romperão do seio ardente
Do povo — bravo e potente
— Mários, Scévolas, Tirteus!

E tu levantas no espaço —
— N’um gesto eterno e feroz —
Teu braço aonde se agita
De um povo o futuro… é atroz!…
Enquanto restam esquecidos
Os Briáreos atrevidos
Na luz de uma ideia ergudidos
À forca — o altar dos heróis!…

Triste ironia… te cercam —
Na inércia de um bronze vil
Dos livres de nossas matas
A legião – brava e viril…
Escárnio!… ó raiva – desgraça!…
Ah! maldita seja a raça
Que ergueu-se sobre esta praça…
— Raça cobarde e servil!…

Sou moço — ainda hei de ver-te
Da Rev’lução ao fremir
– Tremer – ranger – oscilar
Estalar – quebrar… ruir!…
Hei de ver-te… ah! não me engano –
– Que nesse deliar insano
Me alevanta — sobre-humano
— E eu sinto n’alma o porvir!

— 3 —

Um povo em Revolução é invencível.
Isnard

Não!… não me curvo a ti — bendigo a sorte
Que deu-me este altaneiro e nobre aspeito…
— Trago mais vida do que tu no peito,
Tu vives mais — porém — vives a morte!…

E sou mais do que tu… na minha veia
Um sangue ardente, palpitante gira
Que ferve audaz e no meu cér’bro atira
A febre, a audácia, a inspiração — a ideia…

Basta — cerquem-te embora — ilegais leis —
A Liberdade – bela e aterradora
Há de pairar por sobre ti – sonora –
E tu – hás de morrer segunda vez!…

1884

Álgebra lírica

Acabo de estudar… da ciência fria e vã,
O gelo, o gelo atroz me gela ainda a mente
Acabo de arrancar a fronte minha ardente
Das páginas cruéis de um livro de Bertrand.

Bem triste e bem cruel decerto foi o ente
Que este Saara atroz sem auras, sem manhã
— A álgebra — criou; a mente, a alma mais sã
Nela vacila e cai — sem um sonho virente…

Acabo de estudar e pálido, cansado
De umas dez equações os véus hei arrancado,
— Estou cheio de spleen, cheio de tédio e giz…

É tempo, é tempo pois de — trêmulo, amoroso —
Ir — dela descansar no seio venturoso
E achar de seu olhar — o rutilante X.

1884

Canção (ao pé do mar)

Quando, fulgente, acende as rubras ardentias
– O beijo do luar –
Como é sublime ouvir-se – em pé nas penedias
As tristes monodias
Das ondas glaucas, frias,
Frias ondas do mar…

Quantos trenos então sublimes grandes – quantos
Da noute instila o véu…
E o mar, o mar envolto cintilante mantos
A Deus ergue os seus cantos
Nos reflexos dos nossos santos
Santos astros do céu…

Então é bom sentir numa canção velada
A alma os céus galgar…
Enquanto o luar se ergue à vastidão calada
Como uma harpa dourada
Onde a dulia sagrada
Desfere, ardente, o mar…

Meu Deus é bom então — quando o luar alaga
De luz da noute o véu
Sofrer-se a dor que se abate, o amor a dor que embriaga
Na solitária plaga,
— Entre o chorar da vaga
E o cintilar do céu…

1884

Um soneto

A vez primeira que eu te vi — em meio
Das harmonias de uma valsa — elado
O lábio trêm’lo, esplêndido, rosado
Num riso — um riso de alvoradas cheio…

Cheio de febres — em febril anseio
O meu olhar fervente, desvairado
Como um condor de flamas emplumado
Vingou-se a espádua e devorou-te o seio…

Depois — delírio atroz — loucura imensa!
— A alma, o bem, a consciência — a crença
Lancei no incêndio dos olhares teus…

Hoje estou pronto à lívida jornada
Da descrença sem luz, da dor do nada…
Já disse — ontem à noite — adeus — a Deus!

1884

Choques

No pobre peito meu
Sarcástica dor mora
Ninguém mais do que eu chora –
– Ninguém ri mais do que eu!… —

Das dúvidas no véu
Se a mágoa me devora
— Meu rir — no Inferno estoura —
— Meu pranto sobre o céu!… —

Sim!.. quando a dor se eleva
E rígida — gelada
No meu peito se ceva

Eu ergo a alma abalada
E, o olhar cheio de treva, —
— Soluço a gargalhada!…

Comparação

“Eu sou fraca e pequena…”
Tu me disseste um dia
E em teu lábio sorria
Uma dor tão serena

Que a tua doce pena
Em minh’alma sentia…
— Áspera, funda, fria
Atroz — sublime e amena!…

Mas esta mágoa — ó bela —
De doer tão profundo.
Oh!… faz por esquecê-la…

Do infinito no fundo
É bem pequena a estrela —

E no entretanto — é um mundo!…

O Cólera [ 9 ]

Deixando em cada rastro um cemitério
Ele vaga na intérmina romagem
Da eternidade, na fatal passagem
Esmagando cidades, multidões…
E ele vaga, ele vaga – em meio os séculos –
Velho, sombrio, lutulento ele passa…
Com os secos braços – o universo abraça,
Liberta as almas – prende os corações…

Já viu Nínive, já domou Persépolis
— Tebas, Atenas – Roma – Alexandria
E já agitou na garra – eterna e fria –
Egípcios, Jônios, Trácios e Caldeus!…
E vaga e vaga – conduzindo – esquálido,
A eterna luz na fronte entenebrada…
— Fez do túm’lo letal dos céus a entrada…
— Vem do Nada sem luz e vai p’ra – Deus!…

Torvo, boêmio – ora distante, na África,
Nos ásp’ros braços do Simum arqueja…
Ora, em Paris, nos boulevards – flameja –
O seu olhar cheio de morte e dor!
E passa e passa e passa… as tumbas pálidas
Só tem uma guarida – a Eternidade –
E deliram e morrem na ebriedade
Da loucura – da febre e do pavor!…

Não há romper-lhe o fúnebre mistério…
Cheio de mortes – vive eternamente
Febril torcendo ao tropear dolente
Da ciência a luz, da multidão a voz…
— Emboscado na tênebra dos túmulos
E remordido pela eterna fome
Num bote tétrico e fatal consome
— Reis e lacaios – multidões e heróis!…

Debalde velhos, corcovados sábios
Lançam a ideia nos bulcões da morte
E – incerto – o bisturi – a alma – sem norte –
Sondam a treva mendigando – luz…
Ele passa e ele vaga – frio, fúnebre
— Latente – abrindo a boca lutulenta
Torva, feral, famélica – escurenta –
— Numa orgia de lágrimas e pus!…

Cruento, mau – mas – justo – igualitário
Espalha a dor, a maldição e a febre
Desde o frio e paupérrimo casebre
Às Bastilhas da luz – as catedrais!
E caminha, caminha – ora nos trópicos
O sinistro sudário desenrola…
Ora – de um polo a outro polo – rola
Na asa célere – atroz dos vendavais…

Ora – nas tredas brenhas da Calábria
Ao crime – esquálido – e ao punhal se alia,
Ora – nos becos da Albion sombria
Liga-se à fome – abraça-se ao spleen!…
E vaga e vaga e vaga, — torvo, tétrico
— Latente e mau – fatal como a desgraça
— Frio como as ossadas… passa e passa –
Fetal – vivendo – o seu morrer – sem fim!…

Rio 1884

Ao clarão das forjas

Ó fronte varonil – brônzea, dominadora
Que a palpitante luz das fornalhas aclara….
– Alma – altiva e viril, como o bronze – sonora,
Tão rija como o aço e como as forjas – clara!…

Combatente da paz nas lutas do trabalho,
Tu – que ani’las com o olhar – a fome tenebrosa;
E fazes teu porvir – com o ferro, o fogo e o malho
– Dá-me esta áspera mão, dá-me esta mão calosa!…

Esta ásp’ra mão robusta, ardente, válida – esta
Mão – que os malhos levanta e, esplêndida à vibrá-los
– Férrea e grande – produz do progredir a orquestra!
– Dá-me esta mão que veste – uma luva de calos!…

E deixa te dizer em cálida linguagem
Ígnea – como o suor – com o qual a fronte adornas –
Como tu’alma – brava, intérmina, selvagem –
– Ásp’ra como a canção sonora das bigornas…

Não invejes – jamais – aos que a sorte fagueira
As frontes osculou descendo um áureo traço –
Eles têm o futuro e a crença – na algibeira –
Tu – tens a crença n’alma – e o futuro – em teu braço.

84

Cenas da escravidão [ 10 ]

— I —

Acabara o castigo… áspero, cavo —
Cheio de angústia um grito lancinante
Estala atroz na boca hirta, arquejante
Na boca negra, esquálida do escravo…

O seu algoz… oh! não — íntimo travo
O seu olhar espelha — rubro, iriante…
É um escravo também, brônzeo, possante
Arfa-lhe em dor o peito largo e bravo!

Cumprira as ordens do Senhor… tremente,
Fita o infeliz, calcado ao chão, dolente,
Velado o olhar num dolorido brilho…

Fita-o… depois, num ímpeto sublime
Ergue-o; no peito cálido o comprime,
Cinge-o a chorar — Meu filho! pobre filho!…

— II —

Vai meu canto… tu que ardente
— Cheio de crenças e luz —
Brotaste-me n’alma – vai –
Pousa de povo na cruz…
Rasga as sombras da desgraça
Que o passado envolvem, passa
E entre a noute de uma raça
Sonora estrela — reluz…

Ergue-te audaz — ergue o voo
Vinga os céus, doma a amplidão,
Brune-te bravo, libérrimo
Das esferas no clarão…
Arroja-te à imensidade
— Nos grifos da tempestade —
E — vai — canta a Liberdade
Entre Deus e a vastidão…

Desce à terra onde são círios
Da Glória os rubros fanais,
Lá onde dorme a soidão
No leito dos areais…

Lá onde o Suão possante
Tange a Deus — bravo, gigante
um hino eterno e vibrante
Nas harpas dos coqueirais…

— III —

— 1 —

Enorme, plano, torvo — silencioso —
Ei-lo — o Saara que gigante cinge
Como um brial — o beijo luminoso
Do Sol — que morre — e os horizontes tinge…

Ei-lo — onde embalde o olhar — voa, ressalta —
E a dela fronte de um palmar espera…
antro infinito onde se acouta, salta,
Treme — O Simum — essa indomável fera…

Ei-lo — titâneo, aspérrimo, selvagem —
Na bronca espádua sopesando os céus…
Onde — só vibra o canto da voragem —
Onde — só passam — só — a luz e Deus…

Vazio e mudo — enorme se derrama
Se estira sobre o mundo… estranha mó…
Acervo atroz de areias e de chama
Mistura colossal de — céu e pó…

Área — abrasada, vasta — descampada
Não há procelas, nem tufões que a domem
Ei-lo sinistro — o Círculo do Nada
Tendo — oh! meu Deus — tendo por centro — um homem!…

— 2 —

Frio estirado, no areal fervente,
Negro, sombrio, agonizante – exangue
Arqueja um homem, estertora, enquanto
Rubro, lhe flui do brônzeo peito — sangue…

Cansado de embater nos horizontes
O seu olhar sombreia-se, enfraquece…
E é tarde… o sol nas brumas do poente
Frio, sangrento, lentamente desce…

E… contraste sublime!… o Sol e um homem
Ambos sangrentos — sob a imensidade
Ambos expiram… um fervente busca
Busca — o Infinito, o outro — a Eternidade!…

Tão breve é sua história! filho da África
Ele era forte, altivo, ardente e bravo;
um dia à sombra da gentil palmeira
Livre — deitou-se e despertou — escravo!

Depois… uns homens pálidos… a algema —
A febre, a dor… o desespero… um dono!
O deserto… a saudade, a raiva — a lágrima
A revolta… os castigos, o abandono!…

— 3 —

E expira ali — em ímpetos selvagens —
— Sonora a boca de cruéis rumores —
— Cheia a fronte de febre — a alma de dores,
E o grande olhar repleto de miragens!…

O grande olhar oh! sim — pois que o Universo
Deve conter-se todo — no profundo
E vasto e santo olhar de um moribundo…
— Enorme olhar na Eternidade imerso

E agoniza… fitando a vasta linha
Dos horizontes rubros, arquejante…
…Longe, mui longe — no areal — errante
A torpe caravana — audaz — caminha…

E estatelado no areal — padece
Colando ao pó os lábios ressequidos
Cheios de sede, pragas e gemidos…
Mas… silencia súbito — estremece…

Cavo — soturno, e áspero e abafado
Horrísono um rugido no ar ecoa
E longo e longe — lúgubre — reboa
Pelas soidões ferais do descampado…

— 4 —

Era um leão — era um leão sangrento
Que conseguira — bravo, familento —
Do ásp’ro deserto a vastidão domar…
Grande, forte — veloz como a tormenta
Flameja-lhe na testa pardacenta
Como um relampo — o olhar!…

Revolta a juba — a testa túrbida e alta,
Convulso, rábido se arroja salta
Para o infeliz — prostrado de terror…
O fita, para… e em seus olhos ressuma
Em vez da raiva atroz o brilho de uma
— Misteriosa dor…

E fita o infeliz que treme, anseia
e sua vista enorme se sombreia
Na fria sombra de um estranho dó…
Depois — sombria a caravana fita
Que além, além confunde-se, maldita —
Longe — com a treva e o pó…

A noute desce — enorme, luminosa,
Sublime envolta a fronte Grandiosa
Dos tírios astros nos brilhantes véus…
E a noute desce — clara, resplandente…
— Como se o olhar de Deus — grande, fulgente
— Vibrasse pelos céus…

E longe, longe — tétrica, maldita
A caravana lúgubre se agita
Marcha no extremo plúmbeo da amplidão…

Enquanto do ásp’ro seio do deserto
— Nobre e grande — lhe segue o giro incerto
Um olhar de leão!…

1884

Uma tela do passado

Que sítio ameno e belo! envolto de mangueiras
Aonde a toda hora
Chorava o sabiá suas canções fagueiras,
Sempre era ele o primeiro a se envolver nos beijos
Flamíveros da aurora…
Erguido na montanha — aspérrima, sem termos —
Os primeiros lampejos
Do sol tombavam nele; intérmina sonora
Entre o mistério e Deus — ’través os céus e os ermos
Uma soidão sublime ali acalentava
As mentes fatigadas…
…Coberta de sapé
Bela e branca a cabana ao longe assemelhava,
Ao cansado viajor, de longínquas jornadas
Que, da montanha ao pé,
Calcasse o chão do vale, uma garça nitente
Voando para os céus…
Sentia-se, ali, – Deus…
E a noute após cingir – lutuosa e silente
Os desertos sem fim e as mil campinas belas
Com seus cinéreos véus,
No ombro daquela serra
A fronte descansava a flamejar de estrelas…
Esquecidos da terra
Habitavam ali três entes – bem felizes –

– Sim o honrado e bom velho
Tinha no doce olhar da honesta e pura esposa
Um luminoso espelho
Aonde entre os matizes
Do amor via sorrir-lhe o seu passado inteiro…
E quando prazenteiro
Osculava da filha a face cor-de-rosa
Dos negros olhos seus – no áureo clarão – tão puro
Via ele – luminosa
Brilhar – rósea, sublime – a aurora do futuro!…

Ia lá tanta vez… quando pelas florestas
Cansava-me debalde atrás das araquãs
E maritacas lestas
Era ali que eu chegava – e que quadras louçãs
Eram essas então – os rostos se expandiam
Num riso, – claro e franco os lábios se entreabriam
Em animada prosa as horas se escoavam
E muitas vezes quando
Para casa tornava os caborés saltando
Pelas cercas piavam…
E as frontes se velavam
Nas névoas da saudade e do sofrer ao ir-me…

Um dia – soluçando
Oh! viram-me chegar – fui deles despedir-me….

Passaram-se dous anos
Quando por fim voltei da insípida cidade
Senti –, triste – se erguer dos sagrados arcanos
De minh’alma – a saudade…
Senti no coração uma agonia estranha…
– Marchei para a montanha, –
O passo trêm’lo, incerto
– Trazendo o abismo aos pés, na fronte a imensidade –
Cheguei… tudo deserto!…

Um rígido desmaio
Torceu-me a alma ao ruir de todos sonhos meus…
Ó santa habitação – ‘stavas perto de Deus –
‘Stavas perto do raio!…

Luiza Michel (1882)

Das férvidas paixões – na sonora procela
Que das turbas agita a alma brava, feérica
Ela banhou febril a face cadavérica
– Sublimemente feia, horrivelmente bela…

Devia ser sublime – audaz – erguida pela
Febre brava e fatal da multidão colérica
Aquela alma tão grande – em feia forma histérica
– A noute é negra, é feia e – tem no seio – a estrela!…

E nessa insânia – à qual – nada há que dome ou quebre
Enlameada e nua a populaça em volta
Bebendo-lhe no olhar os incêndios da febre!…

Devia ser grandiosa – ela – entre a glória e o crime
Erguendo ao lábio murcho os cantos da revolta
Pálida, magra, feia, hedionda, hirta… sublime!…

1884

Madame Roland (1793) [ 11 ]

Esta – foi santa e formosa…
Trazia na luta extrema,
Na fronte uma aurora – e um poema
Na alma ardente e radiosa…

Da rev’lução na pocema
Com cada olhar, gloriosa,
– Vestia uma alma andrajosa –
– E destacava uma algema…

E quando à noute do crime
Lançou-se a turba, ferina –
Em sangrenta ebriedade…

Ela – antítese sublime –
Conquistou – na guilhotina –
– A morte e a imortalidade!…

Conto

Voltando da caçada – Ali – ardente –
Filho das africanas vastidões –
Que trazia no peito comburente
A alma sonorosa dos suões,
Ali deitou-se e adormeceu à sombra
De um palmar viridente, em leda alfombra
Da mata virgem entre as solidões…

Um sonho então lhe vem turbar a calma…
Um sonho então levanta-se, em fatais
Delírios, torvo, – em frente de su’alma
E diz ao bravo Ali – “Tu matarás
Teu maior inimigo co’essa lança…”
Ali – treme, forceja a erguer-se, cansa –
– Por fim levanta-se – febril, belaz –

Toma da férrea lança… o passo incerto
Galga o corcel – veloz como o jaguar…
Retinem as esporas… no deserto
Braveja a voz de um ásp’ro tropear…
É Ali que marcha, em busca do combate!…
Mas ninguém, ninguém vê… debalde abate,
Rasga os espaços seu fervente olhar…

E o seu corcel fraqueia – cansa, cansa
Por fim em queda atroz se abate ao chão; –
Ali ruiu também por sobre a lança…
Pálido e mudo a funda vastidão
Granje e febril o seu olhar percorre.
E arqueja – lívido – estertora… e morre…

A lança lhe varara – o coração…

Obscurii lucis (Os Farrapos) [ 12 ]

— [1]—

Sublime, rugidora, ardente e brava
Ela ergueu-se do Sul nas esplanadas;
Soberbo e altivo o olhar – como uma lava
Onde ferviam cantos e alvoradas…
Em frente à tirania torva e ignava
Ela se ergueu – num círculo de espadas…
Ela se ergueu no Sul – brava e sonora –
Cingindo a espádua nua numa aurora!…

Fantástica legião… soberba e pálida
Cheia de pó, de sangue e luzes tinta,
A entranha fria – a fronte altiva e cálida,
A prece n’alma e o bacamarte à cinta
Ela saiu das sombras – grande e válida
Titânica e faminta… oh! sim – faminta
Pedindo à Deus – das lutas na ebriedade
P’ra ao lábio – pão e p’ra alma – Liberdade!…

E marchou e lutou – as frias peias
Do despotismo diluindo brava
Ante o clarão sonoro das ideias…
Dir-se-ia em vez de sangue ela guardava
Relâmpagos febris nas quentes veias…
– O olhar de Deus naquele caos vibrava…
Negra – trazia a aurora do futuro
Como o astro a treva traz no seio escuro…

E ela saiu das sombras – como sai
A eternidade do negror das campas…
Saiu, lutou, caiu! alguma cousa atrai
Estes olímpicos do Nada às rampas…
Caiu – mas como a tempestade cai
Sangrando raios sobre o pó dos pampas
Como o fuzil que rasga o espaço, estala
E – inda a morrer – as trevas apunhala!…

— 2 —

Estômagos sem pão, famintos, fracos
Corações túmidos de auroras, cantos
Os ombros seminus – cingindo trapos,
Magros e altivos – a rugir em prantos,
Eles – os vis os lívidos Farrapos
Cingiram da metralha os rubros mantos!…
– A miséria expulsara-os do casebre
Ao Capitólio arremessou-os a febre!…

A febre, sim! oh!… quando a febre adere
No peito audaz das multidões se espalha,
E em cada fibra uma canção desfere
E em cada artéria uma epopéia talha
E ferve, e queima e abate e eleva e fere…
Ah!… esse peito então – é uma fornalha
Aonde arde de Deus o olhar profundo
E ígnea palpita a ebulição de um mundo…

E a febre os embriagou… tremendo aos frios
Rotos e nus – o olhar idiota e escuro
Sem pão, sem crença – a febre ergueu seus brios
Da desgraça por sobre o lodo impuro –
E eles sublimes, bravos e sombrios
…Passaram – entre os Andes e o futuro
– Nem onde a águia o voo enorme alteia
Outro – onde se ergue, freme, ruge – a ideia.

Fantástica legião… legião sublime –
Ela passou esfarrapada e brava
Como um trapo de sombra que comprime
Uma alvorada ao seio!… estríd’la e cava
Trazendo a luz e o sangue – a glória e o crime,
O raio e a estrela, a claridade e a lava
Ela se ergueu, se ergueu – para morrer,
Ela morreu, morreu – para viver!
E a ti – ó rei – que lhes negaste a vida
E o túmulo (miséria!) a ti meu grito.

Tu a deixaste, a legião vencida.
Exposta à lama, aos corvos – mas, maldito
Tu deixaste-a também – fria, despida
Ante o Sol, ante o Céu, ante o infinito.

Só lhe deste um sudário – a noute fria:
– Nos olhos das estrelas – Deus espia!…

Noutes azuis

— I —

Nós íamos sem termos
Sequer uma só pena,
– Em meio à luz amena
De uma ilusão sem termos –

Pela várzea serena…
Quanta canção nos ermos!…
Vibrava – ali – sem vermos –
Uma sidérea avena!…

Da lua o raio erguia,
Atava, prateado –
Um canto em cada ramo!…

Foi quando – branca e fria –
Num esto apaixonado –
Ela me disse: – eu te amo!…

— II —

Daquela choça de palha –
Escuta – de uma viola
O canto ascende, se espalha
Soluça e vibra e… se evola!…

E chora e palpita e rola
Do luar na argêntea malha
– De uma alma sem luz – que estiola,
De um olhar na áurea mortalha,

Talvez seja a dulia extrema…
Talvez ela erga-se agora
A Deus – desfeita num poema!…

Ah!… criança – é assim que chora
O sonhador que descora
– De um lábio na rubra algema…

1884

Último canto

— [1] —

Amigo! estas canções estas filhas selvagens
Das montanhas, da luz, dos céus e das miragens
Sem arte e sem fulgor são um sonoro caos
De lágrimas e luz de plectros bons e maus…
Que ruge no meu peito e no meu peito chora
Sem um fiat de amor sem a divina aurora
De um olhar de mulher…
…perfeitamente o vês
Não sei metrificar, medir, separar pés…
— Pois — um beijo tem leis? — a um canto um núm’ro guia
Pode moldar-se uma alma às leis da geometria?

Não tenho ainda vinte anos.
E sou um velho poeta… a dor e os desenganos
Sagraram-me mui cedo, a minha juventude
É como uma manhã de Londres — fria e rude…

Filho lá dos sertões nas múrmuras florestas
Nesses berços de luz, de aromas de giestas –
Onde a poesia dorme ao canto das cachoeiras
Eu me embrenhava só… as auras forasteiras
Me segredavam baixo os cantos do mistério
E a floresta sombria era como um saltério
Em cujas vibrações minh’alma — ébria — bebia
Esse licor de luz e cantos — a Poesia…

Mui cedo como um elo atroz de luz e pó
Um sepulcro ligara a Deus minh’alma… só
Selvagem, triste e altivo eu enfrentei o mundo
Fitei-o então senti de meu cér’bro no fundo
Rolar iluminando a alma e o coração
C’o a lágrima primeira a primeira canção…
Cantei — porque sofria — e, amigo, no entretanto
Sofro hoje — porque canto…
Já vês, portanto, em mim esta arte de cantar
É um modo de sofrer , é um meio de gozar…
Quem há que meça aí de uma lágrima o brilho
Pois erra-se sofrendo?…
Eu nunca li Castilho.
Detesto francamente esses mestres cruéis
Que esmagam uma ideia sob quebrados pés…
Que vestem c’um soneto esplêndido, sem erro
Um pensamento torto, encarquilhado e perro
Como um correto frac no dorso de um corcunda
Oh sim! quando a paixão o nosso ser inunda
E ferve-nos na artéria, e canta-nos no peito
Como dos ribeirões, o borbulhoso leito
Parar — é sublevar
Medir — é deformar!
Por isso amo a Musset e jamais li Boileau

— 2 —

Esse arquiteto audaz do pensamento — Hugo
Jamais sói refrear o seu verso, terrível
Veloce como a luz, como o raio incoercível!…
Se a lima o toca, ardente, audaz como um corcel
Às esporas revel
Na página palpita e ferve e freme e estoura
Como um raio a vibrar no seio de uma aurora…

Que lime-se num verso uma cadência má!
Que p’los dedos se contem as sílabas — vá lá!
Mas que um tipão qualquer — como muitos que eu vejo —
Espiche, estique e encolha a tod’hora sem pejo
Um desgraçado verso e após tanto medir
Torcer, brunir, sovar, limar, polir… polir
No-lo venha a trazer às pobres das orelhas
Monótono, sem cor, cheio de regras velhas,
Como um casto bijou, feito de sons e luz,
Isto revolta e amola…

Mas, veja ao que conduz
O vago rabiscar de uma pena sem norte
Falava-te de Deus, de mim, da estranha sorte
Que aniila a poesia e acaba num jogral…
Num lorpa, num boçal
Que nos recebe — a pés — e faz do amor uma arte
Deixemo-lo de parte…

— 3 —

Escuta-me, eu teria um imenso prazer
Se podendo domar, curvar, forçar, vencer
O cér’bro e o coração fosse este último canto
O fim de meu sonhar, de meu cantar porquanto

[ 1 ] Possa esta pobre poesia brilhar na noute injusta e má – que alguns seres inclassificáveis – ergueram sobre o túmulo desse grande cérebro, desse enorme coração e desse imenso infeliz – Varela.
[ 2 ] Escrevi esta poesia (?) num momento de febre extraordinária, não a pude cingir à rima – era célere demais a minha inspiração então –, tracei-a ao acaso, repentinamente no primeiro papel que encontrei – e por um encontro extraordinário concluí-a sobre uma poesia dos Vôos Icários – poesia calorosamente apologética do Sr. Pedro 2 E… foi o que forçou-me a guardá-la, pareceu-me e parece-me que o mais tosco verso de um livre à memória de um herói esmaga o mais brilhante poema que se atira aos pés de um rei…
[ 3 ] Sei; está mui longe de ser digno do grande poeta este soneto – sem inspiração – e, o que é mais para os Castilhos – e sem […] – mas, emendá-lo seria aniilá-lo; deixo-o tal qual irrompeu-me do peito, tal qual tracei-o, pode-se dizer – no intervalo de uma vaga à outra.
[ 4 ] Uma noute – passávamos, eu e um amigo, em frente o Cassino – em noute de grande baile –, envolta nas harmonias vibrantes duma orquestra se agitava a aristocracia dourada e ruidosa –; paramos – o meu amigo embevecido pela música e pelas luzes – em pé no lajedo lamacento devorava com o olhar aquele mundo luminoso, sonoro; eu, contudo alheio ao que arrastava-o, fitava não o baile, a festa, mas a massa esfarrapada, sublimemente asquerosa da multidão que imóvel em frente, ao relento, quedava-se ante aquele espetáculo que era uma gargalhada horrível, irônica à sua fome, à sua nudez e fitando o povo – esse grande anônimo –, que por isso não deixa de ser o maior colaborador da História – tirei a minha carteira e ali – quase que à luz que cintilava no crachat de sua majestade (!), que lá estava, tracei esses versos enquanto brilhava-me no cérebro esse alexandrino – férreo e incisivo de Victor Hugo: O jongleurs! noirs par l’âme et par la servitude!
[ 5 ] Este fraco e insignificante soneto envolve a tragédia de uma existência… Ah… ninguém sabe o que é o ângulo de uma rua; postai-vos nele – quedai-vos enquanto a turba revolve-se e vereis o eterno e multiforme choque da mentira e da desgraça, da gargalhada e da lágrima; – oh! vereis muitas e muitas e muitas cousas mais a principal – vereis a virgem de ontem vacilar lacrimosa entre a fome e a moeda: entre o hospital e o bordel!
[ 6 ] Eu o sou. E declaro em frente do futuro e de Consciência: esta declaração será válida em todos os tempos. Embora, como se fosse uma injúria, chamem-me de criança – eu tenho orgulho em sentir, pelo menos a esse respeito, no peito, no coração e no cérebro uma […] antiga e brava que tolera o rei-divino, se o republicano for – quase Deus!… É, desgraçadamente, comum nesta terra vender-se a consciência; mas, eu terei asco de mim mesmo se um dia (estou plenamente seguro que nunca me achanará) calcar as mais sagradas ilusões de meu cérebro para satisfazer as exigências do estômago.
[ 7 ] — A Igreja Abandonada —
Quem não comove-se ante o vulto solitário e frio de um templo em ruínas?… Principalmente se é numa dessas tardes melancólicas, cheias de morbideza, se é numa dessas tardes de Junho em que tudo fala na natureza – o voo das pombas-rolas, a vaga que quebra-se – indolente e soluçante na praia deserta e a folha que cai – pois numa dessas tardes, que o vemos, bem, bem longe, mudo, misterioso, sublime [não] resiste… o coração bate opresso e o cérebro lateja – e se quem o fita chama-se Hugo gera um poema… O próprio Rot[h]schild faria – a única [cousa] que é-lhe impossível… uma quadra.
[ 8 ] A Tomada da Bastilha — Se eu fosse poeta — não faria umas oitavas mas, sim um poema; O Gólgota e a Bastilha foram — por séculos — os extremos insuperáveis e morais — de todas as aspirações da Humanidade; no primeiro, O Cristo sacrificou-se pelas ideias do povo — no segundo, o povo ergueu-se pelas ideias de Cristo — vou até mais longe ainda — Cristo não ressuscitou nos três dias bíblicos — mas, sim após dezoito séculos, na forma imponente, nobre e altiva daquele povo. O primeiro gérmen da Revolução não foram as loucuras de Luiz XIV —, o primeiro gérmen da Revolução foi a lágrima de sangue de Cristo a se estorcer nas extremas convulsões de sua agonia; eu não declamo; — se seguirmos analiticamente, se aprofundarmos os grandes fatos da História veremos neles outras tantas revoluções, que preparam a Revolução de 93 . As Cruzadas foram uma revolução que na essência, não na forma, ergueu muitíssimo o povo — , as raças tendo à frente os seus reis — procuraram, naturalmente conhecer o homem cujo túmulo iam defender: abriram-se a suas ideias, entusiasmaram-se com suas glórias — e estremeceram colérica e surdamente antes os seus martírios; A espada flamejante de d[…]a tirania em França, digamo-lo ousadamente, foi amolada no mármore sublime do Santo Sepulcro!… Contudo — dirão — o sangue de um inocente maculava esta grande revolução…
Quem é esse inocente?
Luiz XVI!… engano, patente engano, não é inocente, não justo e não é nobre o homem que bandeia-se com os inimigos de sua pátria —; o homem que esperava a toda hora as lanças austríacas que deviam, lacerando o seio da França — facilitar-lhe uma fuga vergonhosa; o homem que negava-se a a uma monarquia constitucional e que batido por todos os lados apresentava diante do país um ministério — in nomine enquanto impunha as suas ideias despóticas a um verdadeiro ministério — um ministério latente… de alcova, o homem que no dia seguinte à sua carta lamuriosamente amistosa a seu cunhado — o imperador Leopoldo — ia declará-los representantes do povo [sancionando] a declaração de guerra ao mesmo — inocente?… este homem?… Nunca!… Não somos cobardes nesse antagonismo a um homem morto — e há tanto tempo — que talvez o seu pó contribuísse para formar a página em que agora escrevo —; não o somos, a justiça — é que é um bem — bem mau…
[ 9 ] — O Cólera —
Torvo vivendo o seu morrer sem fim!
Um oficioso, pretenso literato, que teve – nem sei de que modo – a[…] deste humilde verso, com que termino algumas rimas sobre o Cholera-morbus —, apostrofou-me veementemente e entre outras inconveniências irritantes e parvas — vociferou-me, com amplos gestos acadêmicos (?) que versos que verso como este é que iriam mui breve servir de epitáfio ao túmulo da poesia!… que eu não era — senão um dos muitos coveiros do belo (sic)… que — em nome de Musset e Espronceda — empregasse o meu talento notas […] e etc. etc…
Muito bem… cabe-me a vez de declarar convicta e francamente a esse quem quer que seja representante de uma crítica de sentimentalismo de amizade — que —, não enterrarei a poesia porque até para isso sou muito pe[…]
[ 10 ] — Cenas da Escravidão —
Há pensamentos que não […] bicos de pena… Ao traçar esses versos ebulia-me no cérebro um poema formidável — onde fremiam os soluços de cem raças — onde palpitava sangrento o clarão dos sóis do deserto, onde enfim — desenrolava-se a agonia sombria e dolorosa dessa tétrica hecatombe moral da escravidão… e no entanto nada fiz… e nada fiz porque um sentimento enervador quebrava-me as forças da inteligência e custa dizê-lo — este sentimento […] e é — a vergonha!…
Pobre Pátria!… tu, tão grande, nobre [forte] só tu — só tu vives dos [miseráveis] — só tu mendigas aos mendigos. [Só] tu roubas aos desgraçados — o que […] tens de mais sublime — a lberdade — […] que têm de mais triste — a lágrima […]a tu não és culpada de que a tua alma — o povo — guie-se pela alma de um homem…
[ 11 ] [Foi] esta mulher decididamente, o anjo bom da revolução francesa – […] dos sentimentos sublimes e [delicados] da mulher às audácias e ao pensamento grandioso dos heróis. Ergueu-se–; entre aquela ebulição titânica de cóleras e luzes, serena e calma, como o Santelmo entre as sombras das procelas.
[ 12 ] Os Farrapos – Este título era o de uma ideia arrojada que eu acalentei num quarto de hora de febre: quis fazer um poema!… Em breve reconheci a minha fraqueza, então bastante sensível pela magnanimidade do assunto – abandonei a minha ideia – e fiz bem… Se um dia porém – puder arcar com tal assunto – hei de sacrificar-me inteiramente a esses revolucionários audazes e obscuros, a esses miseráveis sublimes que esqueceram a própria fome e arrojaram-se impávidos à goela famulenta do despotismo para que ele não lhes devorasse a pátria. Resta-me a satisfação de ter […] minhas humílimas rimas exaradas plenamente todo o meu sentimento respeito a esses heróis sem nome.
CUNHA, Euclides da. Ondas. EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Poesias. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/poesias/ondas/. Acesso em: [data]. Reprod. CUNHA, Euclides da. Ondas e outros poemas esparsos. In: Obra completa. ed. org. por Afrânio Coutinho. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. v. 1. pp. 697-730. Cotejado em 2020 com Poesia reunida. org., estabel. de texto, introd., notas e índices por Leopoldo M. Bernucci e Francisco Foot Hardman. São Paulo: Editora UNESP, 2009. pp. 47-207. Caderno de poesias escritas de 1883 a 1884.