Os caucheros

Aquém da margem direita do Ucayali e das terras onduladas, onde se formam os manadeiros do Javari, do Juruá e do Purus, apareceu há cerca de cinquenta anos uma sociedade nova. Formara-se obscuramente. Perdida longo tempo no afogado das selvas, apenas a conheciam raros comerciantes do Pará, onde, desde 1862, começaram a chegar, provindas daqueles pontos remotos, as pranchas pardo-escuras de uma outra goma elástica concorrente com a seringa às exigências da indústria.

Era o caucho. E caucheros apelidaram-se para logo os aventurosos sertanistas que batiam atrevidamente aqueles rincões ignorados.

Vinham do ocidente, transpondo os Andes e suportando todos os climas da Terra, dos litorais adustos do Pacífico às punas enregeladas das cordilheiras. Entre eles e o torrão nativo ficavam duas muralhas altas de seis mil metros e um longo valo escancelado em abismos. Adiante os plainos amazônicos: um estiramento de centenares de milhas para NE, a perder-se, indefinido, na prolongação atlântica, sem a juga de um cerro balizando a imensidade.

Nunca se armou tão imponente cenário a tão pequeninos atores.

É natural que os sertanistas pervagassem largos anos, esparsos, diminutos, invisíveis, tateantes no perpétuo crepúsculo daquelas matas longínquas, onde, mais sérias que o desmedido das distâncias e os bravios da espessura, outras dificuldades lhes renteavam ou perturbavam os passos vacilantes.

Realmente, tôda a zona em que se traça, ainda pontuada, a linha limítrofe brasílio-peruana, e irradiam para os quadrantes os formadores do Purus e do Juruá, as vertentes mais setentrionais do Urubamba e os últimos esgalhos do Madre de Dios, figurava entre as mais desconhecidas da América, menos em virtude de suas condições físicas excepcionais, vencidas em 1844 por F. Castelnau, que pelo renome temeroso das tribos que a povoam e se tornaram, sob o nome genérico de “chunchos”, o máximo pavor dos mais destemerosos pioneiros.

Não há nomeá-las todas. Quem sobe o Purus, contemplando de longe em longe, até às cercanias da Cachoeira, os pamaris rarescentes, mal recordando os antigos donos daquelas várzeas; e dali para montante os ipurinãs inofensivos; ou a partir do Iaco, os tucurinas que já nascem velhos, tanto se lhes reflete na compleição tolhiça a decrepitude da raça — tem a maior das surpresas ao deparar nas cabeceiras do rio com os silvícolas singulares que as animam. Discordes nos hábitos e na procedência, lá se comprimem em ajuntamento forçado; os amahuacas mansos que se agregam aos puestos dos extratores do caucho; os coronauas indomáveis, senhores das cabeceiras do Curanja; os piros acobreados, de rebrilhantes dentes tintos de resina escura que lhes dão aos rostos, quando sorriem, indefiníveis traços de ameaças sombrias; os barbudos cashibos afeitos ao extermínio em correrías de duzentos anos sobre os destroços das missões do Pachitea; os conibos de crânios deformados e bustos espantadamente listrados de vermelho e azul; os setebos, sipibos e iurimauás; os mashcos corpulentos, do Manu, evocando no desconforme da estatura os gigantes fabulados pelos primeiros cartógrafos da Amazônia; e, sobre todos, suplantando-os na fama e no valor, os campas aguerridos do Urubamba…

A variedade das cabildas em área tão reduzida trai a pressão estranha que as constringe. O ajuntamento é forçado.

Elas estão, evidentemente, nos últimos redutos para onde refluíram no desfecho de uma campanha secular, que vem do apostolado das Maynas às expedições modernas e cujos episódios culminantes se perderam para a História.

O narrados destes dias chega no final de um drama, e contempla surpreendido o seu último quadro prestes a cerrar-se.

A civilização, barbaramente armada de rifles fulminantes, assedia completamente ali a barbaria encantoada: os peruanos pelo Ocidente e pelo Sul; os brasileiros em todo o quadrante de NE; no de SE, trancando o vale do Madre de Dios, os bolivianos.

E os caucheros aparecem como os mais avantajados batedores da sinistra catequese a ferro e fogo, que vai exterminando naqueles sertões remotíssimos os mais interessantes aborígenes sul-americanos.

*

Esta missão histórica advém-lhes da fragilidade de uma árvore. O cauchero é forçadamente um nômade votado ao combate, à destruição e a uma vida errante ou tumulturária, porque a Castilloa elastica que lhe fornece a borracha apetecida, não permite, como as heveas brasileiras, uma exploração estável, pelo renovar periodicamente o suco vital que lhe retiram. É excepcionalmente sensível. Desde que a golpeiem, morre, ou definha durante largo tempo, inútil. Assim o extrator derruba-a de uma vez para aproveitá-la toda. Atora-a, depois, de metro em metro, desde as sapopembas aos últimos galhos das frondes; e abrindo no chão, ao longo do madeiro derrubado, rasas cavidades retangulares correspondentes às secções dos toros, delas retira, ao fim de uma semana, as planchas valiosas, enquanto os restos aderidos à casca, nos rebordos dos cortes, ou esparsos a esmo pelo solo, constituem, reunidos, o sernambi de qualidade inferior.

O processo, como se vê, é rudimentar e rápido. Esgota-se em pouco tempo o cauchal mais exuberante; e como as castilloas não se distribuem regularmente pelas matas, viçando em grupos por vezes bastante separados, os exploradores deslocam-se a outros rumos, reeditando quase sem variantes todas as peripécias daquela vida aleatória de caçadores de árvores.

Deste modo o nomadismo impõe-se-lhes. É-lhes condição inviolável de êxito. Afundam temerariamente no deserto; insulam-se em sucessivos sítios e não revem nunca os caminhos percorridos. Condenados ao desconhecido, afeiçoam-se ás às paragens ínvias e inteiramente novas. Alcançam-nas: abandonam-nas. Prosseguem e não se restribam nas posições às vezes arduamente conquistadas. condição inviolável de êxito. Afundam sítios e não reveem nunca os caminhos às paragens ínvias e inteiramente novas se restribam nas posições às vezes arduamente conquistadas.

Atingindo qualquer trecho onde os pés de caucho se descubram, levantam à beira de uma quebrada o primeiro tambo de paxiúba, e atiram-se à tarefa agitadíssima. Os seus primeiros instrumentos de trabalho são a carabina Winchester — o rifle curto adrede disposto aos recontros no trançado das ramarias —, o machete cortante que lhes destrana os cipoais, e a bússola portátil, norteando-se no embaralhado das veredas. Tomam-nos e lançam-se a uma revista cautelosa das cercanias. Vão em busca do selvagem que devem combater e exterminar ou escravizar, para que do mesmo lance tenham toda a segurança no novo posto de trabalhos e braços que lhos impulsionem.

São bem poucos às vezes os que se abalançam a esta preliminar obrigatória e temerária: meia dúzia de homens, dispersando-se e mergulhando silenciosamente na espessura. E lá se vão, perquirindo e sondando todos os recessos; batendo palmo a palmo todos os recantos suspeitos; anotando de cor, num exaustivo levantamento topográfico, de memória, os mais variados acidentes; ao mesmo passo que com os olhos e ouvidos armados aos mais fugitivos aspectos e aos mais vagos rumores dos ares murmurantes da floresta, vão premunindo-se dos resguardos e ardilezas que se exigem naquele assombroso duelo sevilhano com o deserto.

Alguns não tornam mais. Outros, volvem indenes aos pousos, depois da perquirição inútil. Algum, porém, ao cabo da pesquisa fatigante, lobriga ao longe, meio indistintas nas folhagens, as primeiras cabanas do selvagem.

Mal refreia um grito de triunfo, e não volve logo a comunicar aos companheiros o achado.

Refina a sua astúcia extraordinária. Cose-se com o chão, e, de rastros, oliendo el peligro, aproxima-se quando pode do inimigo descuidado.

Há, realmente, neste lance, um traço comovente de heroísmo. O homem perdido na solidão absoluta vai procurar o bárbaro, levando a escolta única das dezoito balas de seu rifle carregado.

É um rastejamento longo, tortuoso e lento, em que êle aproveita todos os acidentes, encobrindo-se por detrás dos troncos ou entaliscando-se nos ângulos das sapopembas, deslizando sem ruído sobre as camadas das ramas decompostas, ou insinuando-se entre as hastes unidas das helicônias de largas folhas protetoras, até que possa, no termo da investida surda e angustiosa, contemplar e ouvir de perto, quase à orla do terreiro claro, os adversários inexpertos, e inscientes do civilizado sinistro que os espia e os conta e lhes observa as maneiras e lhes avalia os recursos — e volta depois do exame minucioso, levando aos companheiros, que o aguardam, todos os informes necessários à “conquista”.

Conquista é o termo predileto, usado por uma espécie de reminiscência atávica das antiquíssimas algaras dos condutícios de Pizarro. Mas não a efetuam pelas armas sem esgotarem os efeitos da diplomacia rudimentar dos presentes mais apetecidos do selvagem. A um ouvimos certa vez o processo seguido: Se los atrae al tambo por medio de regalos: ropa, rifles, machetes, etc.; y sin hacerlos trabajar, se les deja que vayan al tolderio a decir a sus compañeros el como son tratados por los caucheros, que nos los obligan a trabajar, sino que les aconsejan que trabajen un poco y a voluntad, para pagar aquello que les dieron

Estes meios pacíficos, porém, são em geral falíveis. A regra é a caçada impiedosa, à bala. É o lado heroico da empresa: um grupo inapreciável arrojando-se à montaria de uma multidão.

Não se lhe pormenorizam os episódios.

Subordina-se a uma tática invariável: a máxima rapidez do tiro e a máxima temeridade. São garantias certas do triunfo. É incalculável o número de minúsculas batalhas travadas naqueles sertões onde reduzidos grupos bem armados suplantam tribos inteiras, sacrificadas a um tempo pelas suas armas grosseiras e pela afoiteza no arremeterem com as descargas rolantes das carabinas.

Citemos um exemplo único. Quando Carlos Fitzscarrald chegou em 1892 às cabeceiras do Madre de Dios, vindo do Ucayali pelo varadouro aberto no istmo que lhe conserva o nome, procurou captar do melhor modo os mashcos indomáveis que as senhoreavam. Trazia entre os piros que conquistara um intérprete inteligente e leal. Conseguiu sem dificuldades ver e conservar o curaca selvagem.

A conferência foi rápida e curiosíssima.

O notável explorador, depois de apresentar ao “infiel” os recursos que trazia e o seu pequeno exército, onde se misturavam as fisionomias díspares das tribos que subjugara, tentou demonstrar-lhe as vantagens da aliança que lhe oferecia contrapostas aos inconvenientes de uma luta desastrosa. Por única resposta o mashco perguntou-lhe pelas flechas que trazia. E Fitzscarrald entregou-lhe, sorrindo, uma cápsula de Winchester.

O selvagem examinou-a, longo tempo, absorto ante a pequenez do projétil. Procurou, debalde, ferir-se, roçando rijamente a bala contra o peito. Não o conseguindo, tomou uma de suas flechas; cravou-a, de golpe, no outro braço, varando-o. Sorriu, por sua vez, indiferente à dor, contemplando com orgulho o seu próprio sangue que esguichava… e sem dizer palavra deu as costas ao sertanista surpreendido, voltando para o seu tolderío com a ilusão de uma superioridade que a breve trecho seria inteiramente desfeita. De fato meia hora depois, cerca de cem mashcos, inclusive o chefe recalcitrante e ingênuo, jaziam trucidados sobre a margem, cujo nome, Playa Mashcos, ainda hoje relembra este sanguinolento episódio…

Assim vai desbravando-se a região bravia. Varejadas as redondezas, mortos ou escravizados num raio de poucas léguas os aborígenes, os caucheros agitam-se febrilmente na azáfama estonteadora. Em alguns meses ao lado do primitivo tambo multiplicam-se outros; a casucha solitária transmuda-se em amplo barracón ou embarcadero ruidoso; e adensam-se por vezes as vivendas em caseríos, a exemplo de Cocama e Curanja, à margem do Purus, a espelharem, repentinamente, no deserto, a miragem de um progresso que surge, se desenvolve e acaba num decênio. Os caucheros ali estacionam até que caia o último pé de caucho. Chegam, destroem, vão-se embora. Nada pedem, em geral, à terra, à parte exíguas plantações de yucas e bananas, a que se dedicam os índios domesticados. A única agricultura regular, embora diminuta, que se observa no Alto-Purus, para lá das últimas barracas dos nossos seringueiros, e a do algodão, dos campas aldeados, que até nisto delatam a independência nativa: colhendo, cardando, fiando, tecendo e pintando as cushmas de que se revestem, e descem-lhes dos ombros até aos pés, com o feitio de longas togas grosseiras. Assim, entre os estranhos civilizados que ali chegam de arrancada para ferir e matar o homem e a árvore, estacionando apenas o tempo necessário a que ambos se extingam, seguindo a outros rumos onde renovam as mesmas tropelias, passando como uma vaga devastadora e deixando ainda mais selvagem a própria selvageria — aqueles bárbaros singulares patenteiam o único aspecto tranquilo das culturas. O contraste é empolgante. Seguindo do povoado campa de Tingoleales para o sítio peruano de Shamboyaco, perto da foz do Rio Manuel Urbano, o viajante não passa, como a princípio acredita, dos estádios mais primitivos aos mais elevados da evolução humana. Tem uma surpresa maior. Vai da barbaria franca a uma sorte de civilização caduca em que todos os estigmas daquela ressaltam, mais incisivos, dentre as próprias conquistas do progresso.

Aborda a estância peruana; e nas primeiras horas encanta-o o quadro de uma existência movimentada e ruidosa. A vivenda principal e as que se lhe subordinam, arruadas alguma vez à maneira de pequenas vilas, erigem-se sempre num ponto bem escolhido a cavaleiro do rio; e a despeito de se construírem exclusivamente com as folhas e estípites da paxiúba — que é a palmeira providencial da Amazônia — são em geral de dois andares e têm na elegância das linhas e nas varandas desafogadas, que as circuitam, uma aparência de todo contraposta ao aspecto tristonho dos chatos barracões dos nossos seringueiros.

No terreiro amplo, acabando na crista da barranca caindo em talude vivo sobre o rio, uma agitação animadora e álacre; carregadores possantes passando em longas filas sucessivas arcados sob as pranchas de caucho; administradores ativos rompendo das portas do andar térreo e correndo para toda a banda, para os armazéns refertos de conservas ou para as tendas fulgurantes, onde estridulam malhos e bigornas, reparando as hachas e machetes.

Embaixo, no embarcadero, coalhado das ubás velozes, onde as tanganas fisgam vivamente os ares, vozeia a algazarra dos práticos e proeiros, e espalmam-se nas águas as balsas feitas exclusivamente de caucho, formando-se sobre o caminho que marcha a mercadoria que conduz os condutores. E em todo o correr da ladeira que dali serpeia até em cima, as saias vermelhas e os corpinhos brancos das cholas graciosas de Iquitos, passando e entrecruzando-se, num embandeiramento festivo…

O viajante atravessa os grupos agitados e as surpresas não cessam. Galga a escada que o leva à varanda da frente, para onde dão os principais repartimentos da vivenda. No alto o cauchero — um triunfador jovial e desempenado sobre os rijos tacões das suas botas de mateiro — recebe-o ruidosamente, abrindo-lhe de par em par as portas numa hospitalidade espetaculosa e franca. E completa-se o encanto. Extinta a noção do tempo, ou do longo espaço de milhares de quilômetros gastos no sulcar os rios solitários para atingir aquela estância longínqua, o forasteiro insensivelmente se imagina em algum entreposto comercial de qualquer cidade da costa. Nada lhe falta ao engano: o longo balcão de pinho abarreirando a sala principal e cerrando o recinto, onde se aprumam as prateleiras atestadas de mercadorias; os empregados solícitos obedientes às ordens do guarda-livros corretíssimo, que o cumprimentou ao entrar e volveu logo à sua escrita, acurvado sobre a secretária inclinada; o copo de cerveja que lhe oferecem, ao invés da chicha tradicional; a folhinha artística a um lado, marcando o dia certo do ano; os jornais de Manaus e de Lima; e até — o que é inverossímil — a tortura requintada e culta de um fonógrafo, gaguejando, emperradamente, naquele fundo de desertos, uma ária predileta de tenor famoso…

*

Mas toda esta exterioridade surpreendente desaparece ante uma observação permitindo ao visitante ver o que lhe não mostra o seu garboso hospedeiro. A desilusão assalta-o então de chofre; e é impressionadora. Aquele reflexo de vida superior não vai além da escassa nesga de chão, de menos de um hectare, constrita entre a mata ameaçadora e próxima, ao fundo, e a barranca despenhada rio adiante.

Fora deste falso cenário, o drama real que se desenrola é quase inconcebível para o nosso tempo.

Abaixo do cauchero opulento, numa escala deplorável, do mestiço loretano que ali vai em busca de fortuna ao quíchua deprimido trazido das cordilheiras, há uma série indefinida de espoliados. Para vê-los tem-se que varar os obscuros recessos da mata sem caminhos e buscá-los nas hurmas solitárias, onde assistem completamente sós, acompanhados apenas do rifle inseparável, que lhes garante a existência com os recursos aleatórios das caçadas. Ali mourejam improficuamente longos anos; enfermam, devorados das moléstias; e extinguem-se no absoluto abandono. Quatrocentos homens às vezes, que ninguém vê, dispersos por aquelas quebradas, e mal aparecendo de longe em longe no castelo de palha do acalcanhado barão que os escraviza. O “conquistador” não os vigia. Sabe que lhe não fogem. Em roda, num raio de seis léguas, que é todo o seu domínio, a região, inçada de outros infieles, é intransponível. O deserto é um feitor perpetuamente vigilante. Guarda-lhe a escravatura numerosa. Os mesmos campas altanados, que ele captou esgrimindo uma perfídia magistral contra a bravura ingênua do bárbaro, não o deixam mais, temendo os próprios irmãos bravios, que nunca lhes perdoam a submissão transitória.

Desta sorte o aventureiro feliz que dois anos antes, em Lima ou Arequipa, exercitava o trato mais gentil — sente-se inteiramente livre da pressão e dos infinitos corretivos da vida social, e adquirindo a consciência do mando ilimitado, ao mesmo tempo que o invade o sentimento da impunidade para todos os caprichos e delitos, cai, de um salto, numa selvageria originalíssima, em que entra sem ter tempo de perder os atributos superiores do meio onde nasceu.

Realmente, o caucheiro não é apenas um tipo inédito na História. É, sobretudo, antinômico e paradoxal. No mais pormenorizado quadro etnográfico não há um lugar para ele. A princípio figura-se-nos um caso vulgar de civilizado que se barbariza, num recuo espantoso em que se lhe apagam os caracteres superiores nas formas primitivas da atividade.

E é um engano. Estes estádios contrapostos ele não os combina criando uma atividade híbrida embora, mas definida e estável. Junta-os apenas sem os caldear. É um caso de mimetismo psíquico de homem que se finge bárbaro para vencer o bárbaro. É caballero e selvagem, consoante as circunstâncias. O dualismo curioso de quem procura manter intactos os melhores ensinamentos morais ao lado de uma moral fundada especialmente para o deserto — reponta em todos os atos da sua existência revolta. O mesmo homem que com invejável retitude esforça-se por satisfazer os seus compromissos, que às vezes sobem a milhares de contos, com os exportadores de Iquitos ou Manaus, não vacila em iludir o peón miserável que o serve, em alguns quilos de sernambi ordinário; [ 1 ] ou passa por vezes da mais refinada galanteria à máxima brutalidade, deixando em meio um sorriso cativante e uma mesura impecável, para saltar com um rugido, de cuchillo rebrilhante em punho, sobre o cholo desobediente que o afronta.

A selvageria é uma máscara que ele põe e retira à vontade.

Não há ajustá-la ao molde incomparável dos nossos bandeirantes. Antônio Raposo, por exemplo, tem um destaque admirável entre todos os conquistadores sul-americanos. O seu heroísmo é brutal, maciço, sem frinchas, sem dobras, sem disfarces. Avança ininteligentemente, mecanicamente, inflexivelmente, como uma força natural desencadeada. A diagonal de mil e quinhentas léguas que traçou de São Paulo até ao Pacífico, cortando toda a América do Sul, por cima de rios, de chapadões, de pantanais, de corixas estagnadas, de desertos, de cordilheiras, de páramos nevados e de litorais aspérrimos, entre o espanto e as ruínas de cem trilhos suplantadas, é um lance apavorante, de epopeia. Mas sente-se bem naquela ousadia individual a concentração maravilhosa de todas as ousadias de uma época.

O bandeirante foi brutal, inexorável, mas lógico.

Foi o super-homem do deserto.

O cauchero é irritantemente absurdo na sua brutalidade elegante, na sua galanteria sanguinolenta e no seu heroísmo à gandaia. É o homúnculo da civilização.

Mas compreende-se esta antilogia. O aventureiro ali vai com a preocupação exclusiva de enriquecer e voltar; voltar quanto antes, fugindo àquela terra melancólica e empantanada que parece não ter solidez para aguentar o próprio peso material de uma sociedade. Acompanha-o, em todas as conjunturas da sua atividade nervosa e precipitada, o espetáculo das cidades vastas, onde brilhará um dia, transformado em esterlinos o oro negro do caucho. Dominado de todo pela nostalgia incurável da paragem nativa, que ele deixou precisamente para a rever apercebido de recursos que lhe facultem maiores somas de felicidades — atira-se às florestas: enterreira e subjuga os selvagens; resiste ao impaludismo e às fadigas; agita-se, adoidadamente, durante quatro, cinco, seis anos; acumula algumas centenas de milhares de soles e desaparece, de repente…

Surge em Paris. Atravessa em pleno esplendor dos teatros ruidosos e dos salões, seis meses de vida delirante, sem que lhe descubram, destoando da correção impecável das vestes e das maneiras, o mais leve resquício do nomadismo profissional. Arruína-se galhardamente; e volta… Reata a faina antiga: novos quatro ou seis anos de trabalhos forçados; nova fortuna prestes adquirida; nôvo volver ansioso em busca da fortuna perdidiça, numa oscilação estupenda das avenidas fulgurantes para as florestas solitárias.

A este propósito correm as mais curiosas versões, em que se destacam famosos caucheros conhecidíssimos em Manaus.

Neste viver oscilante ele dá a tudo quanto pratica, na terra que devasta e desama, um caráter provisório — desde a casa que constrói em dez dias para durar cinco anos, às mais afetuosas ligações que às vezes duram anos e ele destrói num dia. Neste ponto, sobretudo, desenha-se-lhe a inconstância irrivalizável. Um deles, como lhe perguntássemos, em Curanja, onde desposara a amahuaca gentilíssima que lhe assistia há dez anos com os desvelos de uma esposa exemplar, retorquiu-nos, levemente irônico:

— Me la han hecho regalo en Pachitea.

Um regalo, um presente, um traste que ele abandonaria à primeira eventualidade, sem cuidados.

Reportado negociante daquele vilarejo decaído, que em Lima ou Iquitos seria um belo molde de burguês pacífico e abstêmio, ali hambriento de mujeres, apresenta aos amigos e ao forasteiro adventício, o seu harém escandaloso, onde se estremam a interessante Mercedes, de ojillos de venado, que custou uma batalha contra os coronauas e a encantadora Facunda, de grandes olhos selvagens e cismadores, que lhe custou cem soles. E narra o tráfico criminoso, a rir, absolutamente impune, e sem temores.

Não há leis. Cada um traz o código penal no rifle que sobraça, e exercita a justiça a seu alvedrio, sem que o chamem a contas. Num dia de julho de 1905, quando chegava ao último puesto caucheiro do Purus, uma comissão mista de reconhecimento, todos os que a compunham, brasileiros e peruanos, viram um corpo desnudo e atrozmente mutilado, lançado à margem esquerda do rio, num claro entre as frecheiras. Era o cadáver de uma amahuaca. Fora morta por vingança, explicou-se vagamente depois. E não se tratou mais do incidente — coisa de nonada e trivialíssima na paragem revolvida pelas gentes que a atravessam e não povoam, e passam deixando-a ainda mais triste com os escombros das estâncias abandonadas…

*

Estas lá estão em todas as voltas do Alto-Purus, aparecendo, entristecedoras, sob os vários aspectos que vão das hurmas humildes dos peões às vivendas outrora senhoris dos caucheros.

Pouco acima do Shamboyaco, uma, sobre todas, nos impressionou, quando descíamos.

Fora um posto de primeira ordem. Saltamos para o examinar; e vingando a custo a barranca malgradada, descobrindo em cima o velho caminho invadido de vassouras bravas, chegamos ao terreiro onde o matagal inextricável ia peneirando e cobrindo os acervos de vasilhas velhas, farragens repugnantes, restos de ferramentas, e ciscalhos em montes deixados pelos prófugos habitantes. A casa principal, defronte, meio estruída, tetos abatidos, paredes encombentes e a tombarem despegando-se dos esteios desaprumados, figurava-se sustida apenas pelas lianas que lhe irrompiam de todos os pontos, furando-lhe a cobertura, enleando-se-lhe nas vigas vacilantes, amarrando-lhas, e estirando-se à feição de cabos até as árvores mais próximas, onde se enlaçavam impedindo-lhe o desabamento completo; e as vivendas menores, anexas, cobertas de trepadeiras exuberando floração ridente, apagavam-se, desaparecendo a pouco e pouco na constrição irresistível da mata que reconquistava o seu terreno primitivo.

Mal atentamos, porém, no magnífico lance regenerador, da flora, juncando de corolas e festões garridos aquela ruinaria deplorável. Não estava inteiramente desabitada a tapera.

Num dos casebres mais conservados aguardava-nos o último habitante. Piro, amahuaca ou campa, não se lhe distinguia a origem. Os próprios traços da espécie humana, transmudava-lhos a aparência repulsiva: um tronco desconforme, inchado pelo impaludismo, tomando-lhe a figura toda, em pleno contraste com os braços finos e as pernas esmirradas e tolhiças como as de um feto monstruoso.

Acocorado a um canto, contemplava-nos impassível. Tinha a um lado todos os seus haveres: um cacho de bananas verdes.

Esta coisa indefinível que por analogia cruel sugerida pelas circunstâncias se nos figurou menos um homem que uma bola de caucho ali jogada a esmo, esquecida pelos extratores — respondeu-nos às perguntas num regougo quase extinto e numa língua de todo incompreensível. Por fim, com enorme esforço levantou um braço; estirou-o, lento, para a frente, como a indicar alguma coisa que houvesse seguido para muito longe, para além de todos aqueles matos e rios; e balbuciou, deixando-o cair pesadamente, como se tivesse erguido um grande peso:

Amigos.”

Compreendia-se: amigos, companheiros, sócios dos dias agitados das safras, que tinham partido para aquelas bandas, abandonando-o ali, na solidão absoluta.

Das palavras castelhanas que aprendera restava-lhe aquela única; e o desventurado murmurando-a, como um tocante gesto de saudade, fulminava sem o saber — com um sarcasmo pungentíssimo — os desmandados aventureiros que àquela hora prosseguiam na faina devastadora: abrindo a tiros de carabinas e a golpes de machetes novas veredas a seus itinerários revoltos, e desvendando outras paragens ignoradas, onde deixariam, como ali haviam deixado, no desabamento dos casebres ou na figura lastimável do aborígene sacrificado, os únicos frutos de suas lides tumultuárias, de construtores de ruínas…

[ 1 ] Por exemplo, são vulgares casos deste teor, contados pelos próprios peruanos.
Sai um batelão de Iquitos carregado de mercadorias mais apetecidas dos habitantes ribeirinhos. Chega a um tambo do Ucayali, de infieles ou de cholos. Salta o patrão e trava para logo com o proprietário do sítio este diálogo invariável:
— Tienes caucho?
Sí, tengo; pero es del comerciante F… a quien debo por la habilitación que me dio hace cuatro meses. Según sé, su lancha debe venir a recogerlo dentro de pocos días…
¡No seas cándido, hombre! contravém o cauchero, e acrescenta mentindo imperturbavelmente: F… no puede mandar por el caucho porque su lancha está descompuesta…
No importa, recalcitra o selvagem, yo cumpliré con esperar las órdenes que me mande. E o civilizado, insistente:
Y mientras tanto te perjudicas porque Fnunca te pagará más de 12 soles por arroba, y yo te daré en el acto 16 soles
O peão, ávido do lucro inesperado, abala-se; o cauchero aproveita-se habilmente da vacilação:
Vamos a la lancha que te voy a convidar  una buena copa
Lá se vão. E em pouco, o peão embriagado cede ao cauchero o melhor da sua fazenda pelos mais diminutos preços.
CUNHA, Euclides da. Os caucheros. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. À margem da história. Parte I, Terra sem história (Amazônia). São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/a-margem-da-historia/os-caucheros. Acesso em: [data]. Publicado originalmente em Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 2 fev. 1907.