Plano de uma cruzada

I

As secas do extremo Norte delatam, impressionadoramente, a nossa imprevidência, embora sejam o único fato de toda a nossa vida nacional ao qual se possa aplicar o princípio da previsão. Habituamo-nos àquelas catástrofes periódicas. Desde a lancinante odisseia de Pero Coelho, no alvorar do século XVII, até ao presente, elas vêm formando, à margem da nossa história, um tristíssimo apêndice de indescritíveis desastres. A princípio, mercê do próprio despovoamento do território, ninguém as percebeu. Notou-as, apreensivo, o primeiro sertanista que se afoitou, naquelas bandas, com o desconhecido: os flagelos revelados mal rebrilham e repontam, fogacíssimos, rompentes da linguagem perra e nebulosa dos roteiros… Depois, à medida que se povoava a terra, cresceu-lhes a influência, e desvendaram-se-lhes os aspectos, deploráveis todos.Em 1692, em 1793 e em 1903 — para apontarmos apenas as datas seculares entre as quais se inserem, inflexivelmente, como termos de uma série, outras, sucedendo-se numa razão quase invariável — o seu limbo de fogo abrangendo toda a expansão peninsular que o cabo de S. Roque extrema abriu, intermitentemente, largos hiatos nas atividades. Outrora, completavam-lhe os efeitos as depredações do tapuia — tribos errantes precipitando-se, estonteadas, para o litoral, e para o sul, refluídas pelos sóis bravios; hoje, as incursões dos jagunços destemerosos — almas varonis, que a desventura maligna, derrancando-as nas aventuras brutais dos quadrilheiros; e sobre umas e outras, em todas as quadras, o epílogo forçado das epidemias devastadoras rematando as espantosas tragédias que mal se denunciam no apagado de imperfeitas notícias ou inexpressivas memórias.

Há uma estética para as grandes desgraças coletivas. A peste negra na Europa aviventou um renascimento artístico que veio do verso triunfal de Petrarca à fantasia tenebrosa de Albert Dürer e ao pincel funéreo de Rembrandt. A dança de S. Guido, que sacudiu convulsivamente as populações ribeirinhas do Reno, criou a idealização maravilhosa da dança Macabra. A morte imortalizou os artistas definidos pelo gênio misterioso de Holbein, e perdida a aparência lutuosa, o seu espectro hilariante, arrebatado na tarântula infernal, percorreu entre os aplausos de um triunfo doloroso todos os domínios da arte, das páginas de Manzoni, às rosáceas rendilhadas das catedrais, às iluminuras dos livros de Horas dos crentes e ao caprichoso cinzelado dos copos das espadas gloriosas…

Mas entre nós estes transes tão profundamente dramáticos não deixam traços duradouros. Aparecem, devastam e torturam; extinguem-se e ficam deslembrados.

Entretanto, senão pelos seus feitos desastrosos, pela sua insistência, pela impertinência insanável com que se ajustam aos nossos destinos, eles são o mais imperioso desafio às forças do nosso espírito e do nosso sentimento.

Mas criaram sob o ponto de vista artístico raras páginas incolores de um ou outro livro, e alguns alexandrinos resplandecentes de Junqueiro; na ordem administrativa, medidas que apenas paliam os estragos; e no campo das investigações cientificas o conflito estéril da algumas teorias desfalecidas.

E que o fenômeno climático, tão prejudicial a um quinto do Brasil, só nos impressiona quando aparece; é uma eterna e monótona novidade; estudamo-lo sempre nas aperturas e nos sobressaltos dos períodos certos em que ele se desencadeia.

Então a alma nacional, de chofre comovida, ostenta o seu velho sentimentalismo incorrigível desentranhando-se em subscrição e em sonetos, em manifestos liricamente gongóricos e em telegramas alarmantes; os poderes públicos compram sacos de farinha e organizam comissões, e os cientistas apressados — os nossos adoráveis sábios à la minute — ansiando por salvarem também um pouco a pobre terra, imaginam hipóteses.

Ora, a feição proteiforme destas últimas é expressiva. Dos fatos geométricos mais simples (a forma especial do continente norte-oriental), às circunstâncias orográficas da orientação das serras, à fatalidade astronômica da rotação das manchas solares, às considerações mais sérias relativas à constituição litológica dos terrenos — em todos estes pontos, que formam, afinal, toda a psiografia do extremo norte, tem doidejado as indagações com o efeito único de revelarem o traço característico do nosso espírito afeiçoado a um generalizar espetaculoso com o sacrifício da especialização tenaz, mais modesta, mais obscura e mais útil.

Diante da enorme fatalidade cosmológica, temos uma atitude de amadores; e fazemos física para moças. Daí a instabilidade e o baralhamento dos juízos. Acompanhamos o fenômeno escravizados à sua cadência rítmica; não lhe antepomos à intermitência a continuidade dos esforços. Entretanto, o próprio variar das causas precipitadas nos revela. a sua feição complexa, exigindo longos e pacientes estudos. É evidente que estes serão sempre estéreis, adstritos aos paroxismos estivais, desdobrando-se na plenitude das catástrofes desencadeadas com o objetivo ilusório de as debelar, quando uma intervenção realmente eficaz só pode consistir no prevenir as secas inevitáveis, do futuro.

Estabelecido de modo iniludível o fatalismo das leis físicas, que estão firmando o regime desértico em mais de um milhão de quilômetros quadrados do território e torturando cerca de três milhões de povoadores, impõe-se-nos a resistência permanente, constante, inabalável e tenaz — uma espécie de “guerra dos cem anos” contra o clima — sem mesmo a trégua dos largos períodos benignos, porque será exatamente durante eles que nos aperceberemos de elementos mais positivos para a reação.

As secas do Norte interessam a dez Estados. Irradiantes do Ceará, vão, pelo levante, ao centro do Piauí, buscando as extremas meridionais do Maranhão, de onde alcançam as do norte de Goiás; alongam-se para o ocidente abarcando com o limbo fulgurante o Rio Grande do Norte, a Paraíba, Pernambuco e Alagoas, lançando as últimas centelhas pelo mar em fora até Fernando de Noronha; e alastram-se pela Bahia e Sergipe, para o sul, até às raias setentrionais de Minas.

Sendo assim, qualquer que seja o desfalecimento econômico do país, justifica-se a formação de comissões permanentes, de profissionais — modestas embora, mas de uma estrutura inteiriça — que, demoradamente, desvendando com firmeza as leis reais dos fatos inorgânicos observados, possam esclarecer a ação ulterior e decisiva do governo.

Não há mais elevada missão à nossa engenharia. Somente ela, ao cabo de uma longa tarefa (que irá das cartas topográficas, e hipsométricas, aos dados sobre a natureza do solo, às observações meteorológicas sistemáticas e aos conhecimentos relativos à resistência e desenvolvimento da flora), poderá delinear o plano estratégico desta campanha formidável contra o deserto.

Então, poderão concorrer, reciprocamente nas suas influências variáveis, os vários recursos que em geral se sugerem isolados: a açudada largamente disseminada, já pelo abarreirar dos vales apropriados, já pela reconstrução dos lanços de montanhas que a erosão secular das torrentes escancelou em boqueirões, o que vale por uma restauração parcial da terra; a arborização em vasta escala com os tipos vegetais que, a exemplo do joazeiro, mais se afeiçoam à rudeza climática das paragens; as estradas de ferro de traçados adrede dispostos ao deslocamento rápido das gentes flageladas; os poços artesianos, nos pontos em que a estrutura granítica do solo não apresentar dificuldades insuperáveis; e até mesmo uma provável derivação das águas do S. Francisco, para os tributários superiores do Jaguaribe e do Piauí, levando perpetuamente à natureza torturada do norte os alentos e a vida da natureza maravilhosa do sul…

É, por certo, um programa estonteador; mas único, improrrogável, urgente.

Há bem pouco tempo, num artigo notável, Barbosa Rodrigues demonstrou o empobrecimento contínuo das nossas fontes, dos nossos rios e até mesmo das poderosas artérias fluviais da Amazônia.

A palavra austera do naturalista não logrou vingar o reduzido círculo de alguns estudiosos. Vibrou, inutilmente, como o grito de alarma de uma atalaia longínqua, avantajada demais. Entretanto, dela se conclui que, dada a generalidade daquele fato e o seu crescendo desconsolativo, deve engravescê-lo numa escala maior o regime excessivo dos sertões do norte. O deserto invoca o deserto. Cada aparecimento de uma seca parece atrair outra, maior e menos remorada, dando à terra crescente receptibilidade para o flagelo.

Os intervalos que as separam estreitam-se, acelerando-lhe o ritmo, agravando-lhe o grau termométrico das canículas que são a febre alta daquela sezão monstruosa da terra. O interessante paralelismo de datas, que lhes dava um movimento uniforme nos séculos anteriores, parece destruir-se a pouco e pouco; e os seus ciclos, outrora amplíssimos, reproduzem-se, cada vez mais céleres e constritos, como arrastados nos giros cada vez menores de uma espiral invertida.

Deste modo não há vacilar numa ação decisiva e, sobretudo, permanente.

Os holandeses não se limitaram a construir grande parte da Holanda: ainda hoje, quando tufam as marés e a onda ensofregada acachoa ruidosa, chofrando a antemural dos diques, escuta-a da outra banda uma legião tranquila e vigilante de engenheiros hidráulicos, os primeiros do mundo.

A França no arrancar, transfigurada, a Tunísia do Saara, reata a empresa muitas vezes secular dos romanos.

Porque para esses desastrosos desvios da natureza só vale a resistência organizada, permanente e contínua.

Além disto, para o nosso caso, trata-se de uma velha dívida a saldar.

De efeito, por um contraste impressionador, as soalheiras que requeimam o norte, são elementos benfazejos ao resto do Brasil. Por um lado os alísios, refertos da umidade captada na travessia do Atlântico, ao tocarem a superfície calcinada dos sertões superaquecem-se, conservando, no altear o ponto de saturação, as chuvas que conduzem; e repelidos pelas colunas ascensionais dos ares em fogo, que se alevantam das chapadas desnudas, refluem às alturas e vão rolando para o sudoeste, indo condensar, nas vertentes dos rios que derivam para o Amazonas e para o Prata, as águas que originam os seus cursos perenes e a fecundidade das terras.

Por outro lado, aqueles titânicos caboclos, que a desventura expulsa dos lares modestíssimos, têm levado a todos os recantos desta terra o heroísmo de uma atividade incomparável: povoaram a Amazônia; e do Paraguai ao Acre estadearam triunfalmente a sua robustez e a sua esplêndida coragem de rija sub-raça já constituída.

Assim, sob um duplo aspecto nós devemos, em parte, à sua miséria um pouco da nossa opulência relativa, e às suas desgraças a melhor parte da nossa glória.

E esta dívida tem mais de quatrocentos anos…

II
(Olhemos para nossa terra)

Delineando no artigo anterior um fugitivo esboço da reação contra o clima singular que vitima todo o norte do Brasil, vimos de relance os vários recursos que, simultaneamente aplicados, poderiam melhorá-lo; mas do mesmo passo verificamos que a ação governamental seria ilusória se não a esclarecessem os elementos e dados positivos adquiridos em um aturado estudo daquelas paragens, sistematicamente executados por um grupo permanente de profissionais que, mercê de uma longa estada sobre o território, estabelecessem com a sua natureza, ainda em grande parte desconhecida, uma estreita intimidade, facultando-lhes o conhecimento de seus variadíssimos aspectos e, ao cabo, a revelação completa dos agentes nefastos que a malignam e devastam.

Não vai nisto a teimosia impertinente de um teórico incorrigível. Esta exploração científica da terra — coisa vulgaríssima hoje em todos os países — é uma preliminar obrigatória do nosso progresso, da qual nos temos esquecido indesculpavelmente, porque neste ponto rompemos com algumas das mais belas tradições do nosso passado. Realmente, a simples contemplação dos últimos dias do regime colonial, nas vésperas da independência, revela-nos as figuras esculturais de alguns homens que hoje mal avaliamos, tão apequenadas andam as nossas energias, e tão grandes o descaso e o desamor com que nos voltamos para os interesses reais deste país. Ricardo Franco de Almeida Serra, Silva Pontes e Lacerda e Almeida são hoje uns quase anônimos. Entretanto, os estóicos astrônomos, que os grosseiros agulhões mal norteavam nas espessuras nunca percorridas, sem o arsenal suntuoso dos atuais aparelhos, determinaram as coordenadas dos mais remotos pontos e desvendaram muitos traços proeminentes da nossa natureza. Ao último não lhe bastou o perlustrar o Brasil de extremo a extremo. Transpôs o mar, e foi atravessar a África…

Não se podiam encontrar melhores mestres, nem mais empolgantes exemplos. Mas, precisamente ao adquirirmos a autonomia política — talvez porque com ela ilogicamente se deslocasse toda a vida nacional para os litorais agitados — olvidamos a terra; e os esplendores do céu, e os encantos das paisagens, e os deslumbramentos recônditos das minas, e as energias virtuais do solo, e as transfigurações fantásticas da flora, entregamo-los numa inconsciência de pródigos sem tutela, à contemplação, ao estudo, ao entusiasmo, e à glória imperecível de alguns homens de outros climas. Ao nosso nativismo nascente — e já ouriçado com os estilhaços dilaceradores da Noite das garrafadas, não escandalizaram os ww ensarilhados, os yy sibilantes, e o estalar dos kk, e o ranger emperrado dos rr de alguns nomes arrevesados e estranhos. Koster, John Mawe, Wied-Newied, Langsdorf, Aug. Saint-Hilaire… primeiros termos de uma série, onde aparecem, num constrangimento de intrusos, raros nomes brasileiros — e que veio quase interrupto até Frederico Hart, e que aí está contínua, imperecível e fecunda com Eugen Hussack, Orville Derby e Emilio Goeldi.

Ora, quaisquer que sejam os inestimáveis serviços deste grupo imortal de abnegados, são desanimadores.

Não lhes admiremos o brilho até à cegueira. Porque afinal é lastimável que ainda hoje procuremos nas velhas páginas de Saint-Hilaire… notícias do Brasil. Alheamo-nos desta terra. Criamos a extravagância de um exílio subjetivo que dela nos afasta, enquanto vagueamos como sonâmbulos pelo seu seio desconhecido.

Daí, em grande parte, os desfalecimentos da nossa atividade e do nosso espírito. O verdadeiro Brasil nos aterra; trocamo-lo de bom grado pela civilização mirrada que nos acotovela na rua do Ouvidor; sabemos dos sertões pouco mais além da sua etimologia rebarbativa, desertus; e, a exemplo dos cartógrafos medievos, ao idealizarem a África portentosa, podíamos escrever em alguns trechos dos nossos mapas a nossa ignorância e o nosso espanto: hic habent leones

Não admiram o incolor, o inexpressivo, o incaracterístico, o tolhiço e o inviável na nossa arte e das nossas iniciativas: falta-lhes a seiva materna. As nossas mesmas descrições naturais recordam artísticos decalques, em que o alpestre da Suíça se mistura, baralhado, ao distendido das landes: nada do arremessado impressionador dos itambés a prumo, do áspero rebrilhante dos cerros de quartzito, do desordenado estonteador das matas, do dilúvio tranqüilo e largamente esparso dos enormes rios, ou do misterioso quase bíblico das chapadas amplas… É que a nossa história natural ainda balbucia em seis ou sete línguas estrangeiras, e a nossa geografia física é um livro inédito.

*

Aí está para o demonstrar esta questão gravíssima das secas. Nenhuma outra reclama mais imperativamente conhecimentos positivos acerca da estrutura dos terrenos.

Entre os recursos sugeridos, que se não excluem e cuja simultaneidade é indispensável a uma solução definitiva, aponta-se, preeminente, a açudada em vasta escala.

As mais ligeiras noções climatológicas denotam-lhe o valor: os numerosos e minúsculos lagos largamente espalhados na região terão o efeito moderador de um mediterrâneo subdividido; desaparecerão as colunas ascencionais dos ares adustos, que por ali repulsam vivamente os alísios, e com eles a umidade recolhida nos mares; as irrigações fecundarão a terra e, a breve trecho, despertas as suas energias adormecidas, a renascença da flora ultimará a intervenção humana. Mas este meio, tão decisivo pelos efeitos prefigurados, será ilusório sem a preliminar de investigações complexas, desdobrando-se dos simples trabalhos de nivelamento, aos exames relativos à permeabilidade ou inclinação dos extratos, até aos estudos mais sérios e delicados da fisiologia vegetal. Porque mesmo na passividade inorgânica dos fatos naturais se entrelaçam solidários. Vai para meio século que Elie de Beaumont o demonstrou, num dos lances de sua intuição genial. É uma aliança indestrutível em que os incidentes mais díspares se acolchetam, e os vários aspectos naturais se desenrolam numa seqüência impecável, lembrando um enredo firme de onde ressaltam as grandes vicissitudes e, diríamos melhor, o drama comovedor da existência indefinida da terra. Jamais o apreenderemos no afogadilho das empreitadas científicas, de todo inaptas a nos facilitarem, numa síntese final, a imagem aproximada desses misteriosos passados geológicos, que tanto esclarecem, às vezes, a nossa situação presente.

Ainda hoje quem contempla, na plenitude do estio, a natureza estranha do norte, sobretudo nos trechos em que se desatam as chapadas intermitentemente cindidas de serros aspérrimos e abruptos — não sabe bem se está sobre o chão recém-emergido de algum mar terciário, ou se pisa um velhíssimo afloramento do globo, brutalmente trabalhado pelos elementos; se tudo aquilo é a desordem de um cenário em preparativos para novas maravilhas da criação, ou um país que está morrendo; uma construção prodigiosa, em começo, ou o desabar de uma ruinaria imensa…

A drenagem de águas selvagens, que por ali se exercita nas quadras tempestuosas, os seus rios que quando transitoriamente cheios volvem as águas num ímpeto de torrentes colossais, tão céleres que mesmo quando eles cansam, no falar dos matutos, prestes a secarem, não dão vau; e o desmantelo das encostas e os pendores arruinados; e aqueles singulares boqueirões, tão lucidamente vistos por I. Joffili, que as águas rasgaram nas montanhas — tudo isto denuncia a segunda hipótese. E para logo nos empolga a imagem retrospectiva de uma terra admirável e farta e feracíssima — um vastíssimo jardim à margem dos grandes lagos — nos velhíssimos tempos fora da órbita da nossa história, antes que estourassem os seus diques de montanhas e a natureza viesse lentamente definhando — roída pelas torrentes e calcinada pelos sóis, até ao melancólico aspecto que hoje patenteia…

Ora, se uma série suficiente de realidades observadas desse algum valor a esta demasiado imaginosa conjectura e pudéssemos reconstruir este episódio assombrosamente dramático dos nossos fastos geológicos, bastaria, certo, à nossa intervenção o acompanhar, numa marcha invertida, os rastos indeléveis dos estragos. Encadeadas as torrentes e os rios, e restauradas as velhas represas naturais, ligando-se, mesmo sem a primitiva imponência, os muramentos arruinados das terras — todo aquele território volveria à fisionomia antiga, pelo simples jogo equilibrado dos mesmos agentes físicos que hoje tumultuariamente o devastam.

Mas para que isto suceda, para que nos aparelhemos de uma série completa de elementos garantidores de uma ação decisiva, faz-se mister que este problema urgentíssimo das secas seja um motivo para que demos maior impulso a uma tarefa, que é o mais belo ideal da nossa engenharia neste século: a definição exata e o domínio franco da grande base física da nossa nacionalidade.

Aí está a nossa verdadeira missão.

A outros destinos talvez mais altos: a organização das atividades e do regime geral da riqueza, o doutrinamento filosófico e a direção política, a remoção das dificuldades presentes e o alevantamento das tradições históricas; mas todos esses grandes atos exigem antes de tudo um cenário amplíssimo que os abranja e não se reduza como até hoje às bordas alteadas dos planaltos e à estreita faixa de uma costa desmedida. Tudo quanto fizermos fora deste traçado será vão ou efêmero. Será o eterno tatear entre as miragens de um progresso falaz e duvidoso, até agora medido pelos stocks das sacas de café, pelas levas de imigrantes e por umas combinações políticas que ninguém entende.

III
(Um contraste)

A expansão imperialista das grandes potências é um fato de crescimento, o transbordar naturalíssimo de um excesso de vidas e de uma sobra de riquezas em que a conquista dos povos se torna simples variante da conquista de mercados. As lutas armadas que daí resultam, perdido o encanto antigo, transformam-se, paradoxalmente, na feição ruidosa e acidental da energia pacífica e formidável das indústrias. Nada dos velhos atributos românticos do passado ou da preocupação retrógrada do heroísmo. As próprias vitórias perderam o significado antigo. São até dispensáveis. A Inglaterra suplantou o Transvaal ao cabo de sucessivas derrotas; amanhã a Rússia, constantemente batida, talvez esmague o Japão. Estão fora dos lances de gênio dos generais felizes e do fortuito dos combates. Vagas humanas desencadeadas pelas forças acumuladas de longas culturas e do próprio gênio de raça, podem golpeá-las à vontade os adversários que as combatem e batem debatendo-se, e que se afogam. Não param. Não podem parar. Impele-as o fatalismo da própria força. Diante da fragilidade dos países fracos, ou das raças incompetentes, elas recordam, na história, aquele horror ao vácuo, com que os velhos naturalistas explicavam os movimentos irresistíveis da matéria.

Revelam quase um fenômeno físico.

Por isso mesmo nesta expansão irreprimível, não é do direito, nem da Moral com as mais imponentes maiúsculas, nem de alguma das maravilhas metafísicas de outrora que lhes despontam obstáculos.

E da própria ordem física.

Realmente, à parte a Rússia, seguindo para o levante entre os mesmos paralelos, a Europa e os Estados Unidos abandonaram as latitudes onde se formaram; e como, qualquer que seja a flexibilidade do homem para o clima, os limites históricos dos povos se traçam pelas zonas terrestres onde surgiram, o problema capital do imperialismo está menos no adquirir um pedaço de território que na adaptação do território adquirido. Trata-se de inquirir se a raça branca afeiçoada às zonas temperadas, que são as das civilizações duradouras, poderá viver e crescer fora do seu deslumbrante habitat.

Porque as disposições geográficas imutáveis lhe oferecem os maiores cenários precisamente na África adusta, na Ásia meridional ardentíssima ou na Austrália desértica, deixando-lhe como únicas paragens, próprias a uma aclimação rápida, um trecho do Brasil do Sul, a Argentina, o Chile, uma faixa do Canadá, a ponta da África e algumas ilhas do Pacífico.

Daí, seguindo de par com a marcha expansionista, industrial e guerreira, das potências, um movimento científico adrede disposto a facilitar estas mudanças de povos.

Desbravados os caminhos pelos exércitos, estabelecidas as primeiras levas de colonos e delineados os primeiros entrepostos — os governos entregam aos cientistas de todos os matizes a campanha maior e mais longa contra o clima, e toda a responsabilidade deste transplante das civilizações sem prejuízo do organismo das raças que as representam. Felizmente a empresa coincide com a época em que, dominando a máxima especialidade de ofícios, se entrelaçam, em generalizações admiráveis, todos os resultados das ciências. Profissões ontem distintas, fundem-se, vinculadas. A engenharia não lhe bastam os recursos que vão da matemática à química. As próprias exigências da tecnologia sanitária dilatam-se à biologia e às mais altas indagações sobre a vida; enquanto a medicina, deparando na radiologia nascente inesperados elementos, se alonga pela física, ou vai, pela bacteriologia, para a amplitude das ciências naturais.

Médicos ou geômetras, ou geógrafos, todos por igual naturalistas, confundem-se, indistintos, numa tarefa inteiramente nova, a do saneamento da terra. Passam, sem um desvio na profissão complexa, da geologia maciça à física quase espiritualizada, do radium, ou às indagações biológicas; e inscrita de todo no quadro dos agentes exteriores, a existência humana vai aparecendo-lhes feita um índice abreviado de toda a vida universal.

Pelo menos hoje a amparam leis naturais tão rigorosas, que já não se considera vã a tentativa de bater-se vantajosamente a fatalidade cosmológica dos climas.

Esta empresa belíssima, porém, realiza-se obscuramente. As linhas telegráficas não a espalham, são poucas a irradiarem as notícias e os mínimos pormenores das batalhas. Mal se adivinham no rastro dos exércitos os agrupamentos pacíficos, armados de inofensivos aparelhos, dos que observam, e experimentam, e compram, e induzem; profissionais e operários, estudando as modalidades climáticas ou corrigindo-as, lucidamente teóricos e maciçamente práticos, passando da análise dos extratos do solos à dinâmica das correntes atmosféricas; aqui, redimindo pelas drenagens uma superfície condenada, mais longe fazendo ressurgir, transfigurado pela irrigação, um trato morto, de deserto — e por toda a parte polindo ou afeiçoando o chão maninho, ou os ares perniciosos, às novas vidas que os procuram.

Obedecem a um programa prescrito e inviolável. Na Franca e na Inglaterra as escolas de “Medicina Colonial”, onde se matriculam engenheiros oficiais de marinha, denunciam, pelo simples título, a carreira nova destinada a sistematizar todos os dados e a balancear todos os recursos decisivos para esta luta contra os novos meios, desdobrada dos mais simples trabalhos de campo à mais difícil profilaxia das moléstias que lhes são imanentes, de modo a auxiliar a adaptação compensadora do organismo europeu a ambientes tão díspares dos que lhe são habituais.

E assim se transfiguram a Tunísia e o Egito à ourela dos desertos, a ilha de Cuba, recentemente; e vão-se transfigurando o Sudão, a Índia e as Filipinas…

Ora, inegavelmente, um tal objetivo basta a nobilitar as invasões modernas. Redime-lhe todas as culpas e as grandes brutalidades da força esta empresa maravilhosa, que é urna espécie de reconstrução da terra, aparecendo cada dia maior e oferecendo à história novos cenários no seio das paragens mortas que ressurgem…

*

Mas para nós brasileiros, tudo isto é um desapontamento.

Realmente, nesta agitação utilíssima, que fazemos nós?

A parte os Estados do Sul, estamos num país que a aclimação, apenas favorecida pela mestiçagem, condena às formas medíocres da humanidade.

A faixa da zona tórrida que entra no litoral do Pacífico ao norte do Peru inflete para o sul, abrange Mato Grosso e vem sair perto de Santos, deixando-se interferir e cortar pela linha tropical. Deste modo o Brasil, na sua maior área, está vinculado pelas condições físicas mais videntes à África Central, à Índia, às ilhas que se salteiam de Madagascar a Bornéu e à Nova Guiné, e ao extremo norte calcinado da Austrália — em plena regio adusta fechada à aristocracia dos povos. É um fato plenamente sabido. Ressalta ao mais breve olhar sobre um mapa. Não há fantasias patrióticas que no-lo escondam.

E quaisquer que sejam as teorias e hipóteses e imaginosas teses que desde Montesquieu se degladiam, irreconciliáveis, acerca do valor das influências extremas — não há desconhecer-se que temos aquele perpétuo coeficiente de redução do nosso desenvolvimento, atirando-nos em plano inferior ao da Argentina e do Chile.

Entretanto, não nos impressionamos. Num tempo em que se demonstra a eficácia da ação do homem sobre o meio, capaz de deslocar os climas, quedamos numa indiferença muçulmana sob o clima que nos fulmina. Não o estudamos mesmo rudimentarmente, pela rama, e com objetivo de o transfigurar. Não temos mesmo esparso, mesmo reduzido nos pontos principais dos Estados, um serviço meteorológico sistemático e plenamente generalizado de modo a permitir uma comparação permanente e contínua das modalidades climáticas. Da terra, sob os infinitos aspectos que vão da rocha à flor, sabemos apenas o que se colhe em vários livros estrangeiros e raras monografias nacionais; e ainda hoje, quando se nos antolha uma bacia de carvão de pedra, ou um veieiro farto de ouro, faz-se-nos mister a importação de um sábio.

Deslumbrados pelo litoral opulento e pelas miragens de uma civilização, que recebemos emalada dentro dos transatlânticos, esquecemo-nos do interior amplíssimo onde se desata a base física real da nossa nacionalidade. Ali se patenteiam dois casos invariáveis: ou as populações, sobre o solo estéril, vegetam miseravelmente decaídas pelo impaludismo, tão característico das regiões incultas, e vão formando, pela hereditariedade dos estigmas, uma raça de mestiços lastimáveis, agitantes num quase deserto; ou as populações, sobre o solo exuberante, atacam-no ferozmente, a ferro e fogo, nas derribadas e nas queimadas das largas culturas extensivas, e vão fazendo o deserto.

Este caso é notável no refletir o círculo vicioso da atividade nacional. Numa época em que dominam os milagres da engenharia e da biologia industrial — tão grandes os ianques em três anos transformaram num prado o deserto clássico de Colorado — a nossa cultura tem como efeito final o barbarizar a terra.

Malignamo-la, desnudamo-la rudemente, sem a mínima lei repressiva refreando estas brutalidades — e a pouco e pouco, nesta abertura contínua de sucessivas áreas de insolação, vamos ampliando em S. Paulo, em Minas, em todos os trechos, mais apropriados à vida, a faixa tropical que nos malsina.

Não há exemplo mais típico de um progresso às recuadas. Vamos para o futuro sacrificando o futuro, como se andássemos nas vésperas do dilúvio.

Não nos contentamos em resolver a golpes de subscrições intermitentes a fatalidade das secas, que vitimam o norte; vamos além: alargamo-las criando no sul, sobre as vastas áreas insoladas, continuadamente crescentes, todas as mínimas barométricas que no-las atrairão mais tarde…

E tudo isto — esta indiferença ou esta intervenção, ambas prejudiciais, se observa numa época em que o único significado verdadeiramente civilizador do movimento expansionista das raças vigorosas sobre a terra, está todo em afeiçoar os novos cenários naturais a uma vida maior e mais alta — compensando-se o duro esmagamento das raças incompetentes com a redenção maravilhosa dos territórios…

CUNHA, Euclides da. Plano de uma cruzada. In: EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Contrastes e confrontos. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/contrastes-e-confrontos/plano-de-uma-cruzada. Acesso em: [data]. Publicado originalmente em O País, Rio de Janeiro, 8 de maio, 14 maio e 17 jun. 1904. Transcrito de: CUNHA, Euclides da. Contrastes e confrontos. In: Obra completa. org. Paulo Roberto Pereira. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1. pp. 33-45.