O Estado de S. Paulo, São Paulo, 17 de Agosto de 1909
Euclydes da Cunha
O assassinato do ilustre escritor
A impressão no Rio
Toda a imprensa do Rio presta sentida homenagem ao nosso desventurado colaborador Euclydes da Cunha.
O Jornal do Commercio, depois de relatar alguns incidentes da vida do brilhante escritor, escreve:
“Euclydes da Cunha era uma cerebração de rara força, servida por um coração vibrátil e fragílimo. Às grandes cóleras vingadoras do seu poderoso estilo evocador, correspondia, no seu trato social e na sua existência doméstica, uma extraordinária delicadeza de sentimentos. Tinha por vezes certos melindres de uma candura verdadeiramente angélica. Dava, não raro, uma impressão de profunda timidez pessoal, revelando acanhamentos e humildades que tocavam pelo desazo, aparências curiosas que à primeira vista nos autorizavam a supô-lo um homem em contradição com a sua própria obra.
A verdade, porém, é que essas duas feições de seu espírito e de seu caráter se casavam à maravilha, imprimindo um vigoroso relevo à sua personalidade.
Homem de uma integridade moral a toda a prova, experimentado em provações de todo o gênero, com uma alta compreensão dos seus deveres cívicos, pelejador como poucos, intrépido até à temeridade, Euclydes da Cunha conservara da matemática a disciplina mental formidável, da poesia a idéia da beleza e o gosto da perfeição, da filosofia o sentimento da justiça, a vibração contínua e generosa, alguma coisa acima das misérias da terra…
E tudo isto a morte cortou ontem brutalmente, num golpe de tragédia inenarrável”.
A Gazeta de Notícias refere-se à carreira de Euclydes da Cunha e acrescenta:
“Com a sua forte educação científica e filosófica, tendo o princípio dos positivistas de que “quem não sabe matemática, não sabe nada”, desconfiava dos literatos e de fato conhecia muito pouco literatura. Seria capaz de discutir um dia inteiro abstrações matemáticas e de explicar desde as leis de filosofia primeira à sociologia. Mas desconhecia por completo a maioria dos poetas franceses e não falaria de chofre de um poeta grego, ou de um dramaturgo clássico.
O seu imenso cabedal científico, porém, fortalecendo com claras noções e muitíssimos termos um vocabulário já de si rico, pela leitura de Camillo, Castilho e de dicionários, dava-lhe ao temperamento de escritor um estilo absolutamente inédito, um estilo seu.
Foi assim, que, numa questão qualquer de política pessoal, Euclydes e um companheiro trouxeram à “Gazeta” um artigo para a seção livre. O homem do balcão achou-o de responsabilidade, pedindo o “visto” da redação. Euclydes subiu nervoso, irritado. Um dos seus fanáticos dizia dele “é um sabre com dentes”. Era um neurastênico com acalmias intermitentes. O escrúpulo do balcão excitara-o. Euclydes encontrou apenas Ferreira de Araújo e estendeu o artigo.
— Não querem aceitar. Responsabilizo-me por ele.
Ferreira de Araújo, leu-o todo, e por fim, dobrando as tiras:
— Sai amanhã na primeira coluna da primeira página. Quem escreve assim tem o direito de ser o primeiro.
Como Euclydes era muito sensível, ficou enternecido. E nunca mais esqueceu o gesto acolhedor do grande Mestre. Sempre que subia à “Gazeta” exclamava:
— Não esqueço nunca! Aquele Araújo! Era um homem!
Apesar de uma aparição tão brilhante, não foi logo a escrever sempre. Ao contrário. Parou. Nas rodas literárias conheciam-no e respeitavam-no como um escritor de raça roubado às letras pela vida militar. Euclydes era um cientista de espada. A sua coragem, era de intelectual, o seu heroísmo de nervos. [ilegível], magrinho, seco, com as [ilegível] do rosto salientes, os olhos de mameluco redondos, alisando as cerdas do bigode seguida e nervosamente, nada tinha de marcial. Mas tinha muito de inquietante. Brigar com ele, travar luta com ele, ou vê-lo frente a frente num combate, devia ser pavoroso, e muito mais para temer do que com três ou quatro valentes.”
O Paiz assim encara a individualidade do ilustre escritor:
“Varado de balas, num subúrbio distante e ermo, a que o conduzira a perturbação de uma idéia fixa e o aguilhão mordente de uma suspeita alucinadora, morreu ontem Euclydes da Cunha, o escritor poderoso que a publicação dos “Sertões”, o seu primeiro livro, deu ao Brasil a glória de um novo estilista e a segurança de uma alta capacidade de estudo e de trabalho posta ao serviço constante do país.
Hoje não há em toda a vasta extensão da nossa terra pessoa medianamente culta, que lhe não conheça o nome. O seu aparecimento nas letras fez-se sem hesitações ou tentativas. Foi como a arraiada radiosa de um sol; e desde então, aureolado de um prestigio que aumentava com o tempo, ficou sendo na vida contemporânea um vulto inconfundível e um consagrado.
Mas Euclydes da Cunha tinha já antes da sua primeira obra um perfil distinto; o escritor ainda não se havia revelado, porque ainda se não completara o estudioso. Um longo preparo científico, feito com um meticuloso rigor e uma paciente cultura literária, bebida nas fontes mais puras da língua, deviam preceder a sua aparição como autor e formar a base sólida em que havia de assentar indestrutivelmente a sua obra e o brilho do seu nome.
O seu sucesso é recente: data de uma dezena de anos, se tanto. Mas as condições desse sucesso foram criadas por ele na dedicação ao estudo e à ciência em toda uma mocidade de serena, obscura, retraída operosidade.
Adolescente ainda, abraçou a carreira das armas, não que o empolgasse a sedução da glória militar, mas porque via nela a satisfação da sua sede de saber e era ela que lhe oferecia condições mais seguras de aquisição dos materiais de que precisava para a sua completa organização intelectual.
A Escola Militar era como um arsenal em que se fundiam e se modelavam as idéias avançadas, em que crepitava a chama viva das aspirações generosas e em que ao mesmo tempo o ardor desses impulsos da mocidade se temperava no trato severo da ciência.
Para esse meio transplantou-se Euclydes da Cunha; e lá, como planta em uma estufa, se desenvolveram as suas faculdades intelectuais rápida e vigorosamente.
As abstrações empolgantes da matemática pura, os encantos das ciências físicas e naturais, enchiam-lhe as horas de trabalho, os sonhos de remodelação política do país, os devaneios de arte, as encantadoras visualidades de um futuro fecundo, tomavam-lhe o tempo que sobrava às exigências superiores do estudo.
E assim, nessa aliança entre as positividades cruas da ciência e as sedutoras perspectivas da arte, o seu espírito foi-se fortalecendo e adquirindo a feição original, que o havia de elevar mais tarde às culminâncias da intelectualidade brasileira”.
Do Jornal do Brasil:
“O sr. dr. Euclydes da Cunha, engenheiro e militar doutr’ora, não era, de fato, senão um espírito bem aparelhado e culto, ardente e inspirado, que explodira, havia pouco e agora ainda prometia mais do que já dera.
Raros homens no Brasil têm feito aquele surto incomparável.
Até “Os Sertões” Euclydes da Cunha era um poeta e era um prosador, mas não havia, senão alguns íntimos, que lhe sabiam das energias e da capacidade excepcional de produção.
Tendo acompanhado as forças enviadas para defender a remota região sertaneja da Bahia, ele, soldado, não era, entretanto, o soldado que se ia bater; era já o escritor que ia observar e estudar e recolher a emanação inspiradora da paisagem e dos costumes.
Não que lhe falhasse o sentimento do patriotismo, que tão dignificadora influência exerce no destino dos homens.
Ele tinha-o bem acentuado, e o seu patriotismo, não sendo o de ação bruta, pelas armas, era de efeito mais decisivo e eficaz, porque era o patriotismo de convicção e de orientação.
Se da jornada de Canudos não houvesse resultado nenhum proveito que até do mal e do infortúnio a sábia fatalidade que desfere as notas da vida, as boas, como as más, tira proveito, bastaria o campo de observação que se deparou ao escritor para no futuro, compensar um tão desastroso episódio da história nacional”.
O Correio da Manhã, depois de justas palavras para exprimir a dor que causa a perda desse “mestre da palavra, cuja glória não era apenas uma luz imperecível para seu nome, mas um triunfo admirável para a sua geração e para a sua pátria”, escreve:
“Euclydes da Cunha não era apenas literariamente o excepcional que com um só livro conquistou uma das mais altas e mais justas reputações que um escritor pode almejar dentro e fora de seu país. Era também um excepcional como homem íntimo. Misturavam-se nele a energia e a timidez, a violência e a doçura. Era a um tempo um lutador e uma criança. Mas o que era acima de tudo, era um bom e um puro”.
Da Imprensa:
“A individualidade literária do dr. Euclydes da Cunha tinha um forte destaque no nosso meio intelectual e essa figura impôs-se, subitamente, com um livro forte e singularmente belo – “Os Sertões” – “história da campanha de Canudos” – que ele acompanhou de perto, adido ao estado-maior do general Arthur Oscar, como correspondente d’“O Estado de S. Paulo”. Até então o dr. Euclydes da Cunha tinha apenas escrito alguns artigos políticos por ocasião da revolta, e entre eles um (na “Gazeta de Notícias”) em resposta a um violento discurso do então deputado João Cordeiro, o que lhe valeu um exílio em Campanha, no Estado de Minas, por ordem do marechal Floriano, de quem sempre foi um devotado amigo.
“Os Sertões”, à parte a sua grande sinceridade de exposição, era um livro que revelava no autor uma forte erudição científica, grandes conhecimentos filosóficos, nas duas primeiras partes, principalmente, em que o dr. Euclydes da Cunha fazia a história da terra sertaneja e do jagunço e seus antecedentes, e em toda a obra, raras belezas literárias. Lembramos de memória o magnífico paralelo que estabelece entre o jagunço e o gaúcho e aquela soberba e trágica procissão noturna de enterro dos mortos, que lembra as macabras fantasias de Goya”.
*
Eis como os nossos colegas do Jornal do Commercio narraram a dolorosa tragédia:
“A má nova da trágica morte do dr. Euclydes da Cunha espalhou-se ontem logo às primeiras horas da tarde, por todos os ângulos da cidade.
A princípio, eram apenas informações vagas, inconcisas, dando margem à dúvida, aliás inspirada em todos os corações pelo que a notícia tinha de profundamente lamentável. Mais tarde, porém, os amigos do ilustre homem de letras, mais inteiramente interessados em esclarecer a triste notícia, iam aos poucos recebendo a confirmação e a narrativa pormenorizada do infausto acontecimento.
O fato passara-se em uma afastada estação dos subúrbios, Piedade, dentro de uma pequena casa, à Estrada Real de Santa Cruz n. 214, onde residiam os irmãos Dilermando Cândido de Assis, aspirante a oficial do exército e Dinorah Cândido de Assis, aspirante da marinha, ambos antigos amigos e protegidos da família do dr. Euclydes da Cunha.
Haviam estes dois moços, faz cerca de seis anos, perdido os seus progenitores; e, desde essa época encontraram sempre da parte do dr. Euclydes da Cunha e de sua esposa d. Anna Solon da Cunha a proteção e carinho que a morte de seus pais lhes tinha roubado.
Foi justamente este sentimento de amizade maternal que animava a sra. d. Anna tão paralelamente ao que nutria o seu esposo, que, em um dado momento, malevolamente desvirtuado, cruelmente envenenado, deu causa ao tremendo drama em que caiu sem vida atravessado por uma bala, o laureado homem de letras que, pode-se dizer, sem rebuços, era o maior estilista da sua geração.
Ordenemos os acontecimentos:
Há algum tempo o dr. Euclydes da Cunha teve de acolher em sua residência, à rua Nossa Senhora de Copacabana n. 23, duas senhoras contraparentes da sra. d. Anna, sua esposa. Estas moças são ainda parentes muito próximos dos aspirantes militares Dilermando e Dinorah, a quem, como já dissemos, o dr. Euclydes e sua esposa protegiam.
Estas duas senhoras, parece, não estimaram em muito o acolhimento que receberam e não tardou que se incompatibilizassem com a exma. sra. d. Anna. De pequenas intrigas que a princípio alteraram mais de uma vez a boa paz dos dois consortes, foram aos poucos surgindo acusações mais ou menos sérias e, por fim, não se trepidou em despertar no coração do chefe da casa o dissolvente ciúme.
Aventou-se-lhe no espírito a suspeita de que a sua esposa, a fidelíssima companheira de 17 anos de uma existência cheia de lutas, já não era mais a mesma; a amizade que dedicava ao aspirante Dilermando não podia ter este nome, porque era coisa muito diversa, era amor, cheio de culpa, eivado de crimes.
Tudo isto, esta tremenda acusação, está claro, não era sequer pronunciada, nunca ninguém a formulara direta ou indiretamente.
Ela foi feita com pequenos olhares, sorrisos malignos, foi levantada surdamente, com método, com uma calma fria e feroz, para que fosse adivinhada apenas, vagamente percebida.
Os seus efeitos começaram, porém, a se fazer sentir sem nenhuma demora.
O jovem Dilermando e seu irmão sentiram imediatamente que o amigo, o infatigável e digno protetor mudara completamente a maneira de tratá-los.
Chegaram a saber a causa; souberam que o dr. Euclydes da Cunha tinha já revelado o seu ciúme, a negra suspeita que o alucinava.
Dilermando retirou-se para a casa onde residia com Dinorah, numa pequena “república”, situada no interior do arrabalde da Piedade, à Estrada Real de Santa Cruz n. 214 e daí endereçou uma carta ao dr. Euclydes da Cunha, chamando sua atenção para a injustiça que fazia não só a ele senão à sua esposa.
Os conceitos e expressões desta carta tiveram o efeito mais benéfico possível e não tardou que uma resposta do dr. Euclides viesse cientificar o rapaz de que tudo passara e ele continuava a merecer a sua confiança.
Mas, em seguida a estes fatos não veio a calma desejável. Os espíritos malignos continuavam a sua obra, advinha um turbilhão de circunstâncias evidentemente desnorteadoras.
O dr. Euclydes da Cunha, em meio dos seus trabalhos científicos, das suas grandes e várias preocupações, recebia a notícia da grave enfermidade do seu pai, dr. Manuel Rodrigues Pimenta da Cunha, residente no Estado de S. Paulo.
Ao mesmo tempo d. Anna tinha notícia do grave estado de saúde, da sua velha mãe, que é a viúva do general Solon.
O que há de mais revoltante em toda esta tragédia, é que, apesar de todas estas atribulações, que feriam de chofre os dois consortes, o sobressalto do lar, a feroz intriguice não tinha intercadência, continuava sem considerações e sem tréguas.
Ao mesmo tempo para fugir a este insuportável estado de coisas e para dar à sua mãe os cuidados de que devia estar carecendo, na quinta-feira passada, à tarde, a sra. d. Anna da Cunha deixou a casa de Copacabana e foi para a casa da viúva Solon, no Campo de S. Cristóvão n. 24.
Na sexta-feira, durante o dia, d. Anna foi encontrar-se com o dr. Euclydes da Cunha do Internato do Ginásio, onde visitaram um filho, o segundo em idade, de nome Euclydes, que ali estuda o terceiro ano do curso.
Os dois esposos conversaram longamente e, a não ser o acabrunhamento doentio, em que se achava o dr. Cunha, nada se poderia prever da tempestade que se lhe revolvia no íntimo.
À tarde, ele conduziu a esposa até à casa materna, de onde voltou com o filho para a cidade.
Ao chegar em casa, porém, o dr. Euclydes da Cunha não tardou em chegar a conclusão de que a esposa fora para a casa de sua mãe para ter mais liberdade de encontrar-se com o aspirante do exército.
Esta conclusão, como ele a tirou, ninguém sabe.
No dia seguinte, sábado, foi à casa da viúva Solon, e como não encontrasse sua esposa, tornou à casa em um intenso estado de exaltação.
Receberam-no as duas senhoras que em tão pouco haviam estimado o acolhimento que haviam tido em sua casa.
O dr. Euclydes da Cunha, então cheio de viva cólera, absolutamente crente no que se lhe insinuava, cego, sem procurar sequer raciocinar a respeito, – disse-lhes: “Amanhã se acaba tudo isto, mato-os”.
Presenciou este fato o seu filho mais velho, Solon, de 17 anos, que se apressou a sair de casa, ontem, logo cedo, para levá-lo ao conhecimento de sua mãe.
O dr. Euclydes da Cunha saiu também cedo de casa, dirigindo-se para a estação Central da Estrada de Ferro, onde tomou um trem de subúrbios.
Tendo ouvido a narrativa que lhe levara seu filho Solon, a sra. d. Anna da Cunha não quis perder tempo. Acompanhada de Solon e de Luiz, de 1 ano e meio de idade, d. Anna saiu imediatamente de casa, dirigindo-se para a Estrada de Ferro, onde tomou o primeiro comboio, que partiu para os subúrbios.
Todo o seu intuito era chegar antes do marido, chegar a tempo de impedir a grande desgraça, custasse o que custasse, com o seu prestígio de mulher, de companheira de 17 anos de vida comum ou com o prestígio dos filhinhos que levara consigo.
Infelizmente, porém, d. Anna da Cunha chegou tarde.
Seu marido tinha-a precedido, chegara um comboio antes.
Dirigiu-se então para a casa dos irmãos Cândido de Assis e, quando lá entrou, já encontrou o dr. Euclydes da Cunha agonizante sobre um leito, em torno do qual Dilermando e seu irmão se quedavam comovidos.
D. Anna da Cunha penetrou no quarto justamente com seu filho Solon, que com ela ajoelhando-se ao lado do leito, procurava saber do agonizante o que se havia passado.
O dr. Euclydes da Cunha pronunciou ainda algumas palavras de perdão e de amor e rendeu a alma ao Criador.
Remontando a narrativa ao momento em que o dr. Euclydes da Cunha tomou o trem suburbano, vemo-lo saltar na estação da Piedade e perguntar ao primeiro transeunte onde demorava a Estrada Real de Santa Cruz.
Indicam-lh’a e ele segue para a frente.
Ao chegar à pequena “república” dos rapazes seus protegidos, dentro da salinha da frente, cujas paredes são cobertas de panóplias d’armas, vê Dinorah assentado à mesa tomando uma xícara de café.
Aqui principia a narrativa feita pelos dois irmãos, pois o fato se passou sem testemunha alguma.
Percebendo-o ao portão, o rapaz foi abri-lo.
Ele entrou e dirigiu-se direito à porta de um quarto que estava fechada, indagando se sua mulher se achava ali.
Era o quarto de Dilermando, que ainda dormia.
Ainda não eram 11 horas da manhã.
O dr. Euclydes forçou a porta e fazendo Dilermando levantar-se disse que fora ali para matar ou morrer.
E juntando a ação à palavra detonou o primeiro tiro de seu revólver.
A este tiro sucederam-se outro e mais outro.
Dilermando declarara que tomando por sua vez um revólver procurou intimidar o dr. Euclydes, disparando dois tiros contra a parede, mas como visse que ele não retrocedia e não o pudesse desarmar, alvejou-o por sua vez, em defesa própria.
Seu irmão Dinorah interveio na luta, estabelecendo-se então um verdadeiro tiroteio dentro do pequeno aposento.
Em poucos instantes, o dr. Euclydes da Cunha, baleado mortalmente procurava a saída da casa, indo cair exangue de forças no pequeno jardim à frente.
Então, contam os irmãos que apesar de se acharem ambos também bastante feridos, aproximaram-se do seu antigo protetor e recolheram-no para dentro de casa, deitando-o no leito de Dilermando.
Os ferimentos que o dr. Euclydes da Cunha apresenta são: no pulso, no braço, no flanco direito e na região infra-clavicular esquerda, que parece ter sido o que determinou a morte, provocando uma hemorragia interna.
Dilermando Cândido de Assis, de 21 anos de idade, está ferido no mamelão direito, virilha e baixo-ventre do mesmo lado.
Dinorah Cândido de Assis, de 20 anos, tem apenas um ferimento na região dorsal.
Os dois irmãos, naturais do Estado do Rio Grande do Sul, são filhos do primeiro tenente do exército João Cândido de Assis, e viviam há seis anos sob a proteção do dr. Euclydes da Cunha.
Quando a lamentável notícia foi confirmada, dirigiram-se imediatamente para a Piedade numerosos amigos do grande brasileiro que se extinguira tão desastradamente. Um dos primeiros que lá chegaram, foi o deputado Coelho Netto, que já o encontrou morto.
Depois de conversar rapidamente com a sra. d. Anna da Cunha e seu filho Solon, o sr. Coelho Netto procurou a agência dos telégrafos e dali expediu despachos aos srs. drs. Nilo Peçanha, presidente da República; barão do Rio Branco, Esmeraldino Bandeira, conselheiro Ruy Barbosa e Mário de Alencar, secretário da Academia de letras, de que o dr. Euclydes da Cunha é um dos mais belos ornamentos.
Depois disto, o deputado Coelho Netto que foi infatigável nesta triste emergência voltou à casinha da Estrada Real, e começou a dar providência para que o corpo fosse transportado para a estação.
Eram 3 horas da tarde quando o cadáver do dr. Euclydes da Cunha foi colocado sobre uma maca de guarda noturna de Inhaúma e carregado para a agência da estação da Piedade, onde ficou depositado até que chegasse o vagão fúnebre que o deveria trazer para a cidade.
A maca, da casa da Estrada Real para a agência, foi carregada pelo sr. deputado Coelho Netto, pelo delegado do vigésimo distrito dr. Oliveira Alcântara e pelos repórteres de todos os jornais.
O corpo esteve na agência da estação da Piedade até às 6 horas e 34 minutos da noite, quando foi colocado em um vagão fúnebre anexo ao trem suburbano SU 96 que o conduziu para a estação Central.
Aí, aguardavam a chegada do corpo do infortunado publicista grande número de amigos e uma massa enorme de curiosos.
O corpo do infortunado publicista ficou durante algum tempo dentro do vagão da estrada de ferro. Ao chegar o coche fúnebre que deverá conduzir o cadáver para o necrotério, foi o corpo transportado para este veículo, pegando na maca, os srs. dr. Brício Filho, Irineu Marinho, dr. Oliveira Alcântara, Felix Pacheco, José Cordeiro e Anor Margarido. Ao chegar no necrotério já aí se achavam entre outras pessoas os srs. Gastão Paranhos, sobrinho do sr. Barão do Rio Branco, e seu oficial de gabinete, dr. Muniz de Aragão, os quais de ordem do sr. ministro do exterior fizeram cobrir de flores o corpo do ilustre morto e colocaram-lhe aos pés duas palmas.
Durante a noite, o cadáver foi velado por diversas pessoas, amigos do dr. Euclydes da Cunha, entre os quais destacamos os srs. Olavo Bilac, Ernesto Senna, Júlio Barbosa, Manoel Lavrador, Muniz de Aragão, Carvolira, Felix Pacheco, Octávio Moraes, Arthur Alves, dr. Brício Filho, Tenente Odilon de Araújo, Antonio Dantas, Miguel F. Moraes, Óton do Amaral, Mário Guaraná, Ludgero Vidal, Theodoro de Oliveira, Otávio Dutra, Viriato de Araújo e Júlio de Oliveira.
O dr. Euclydes da Cunha deixa quatro filhos: Solon, de 16 anos; Euclydes, de 14 anos; Manuel Affonso, de 8 anos, e Luiz, de menos de dois anos.
Na Central da Estrada de Ferro encontrou-se também o menino Euclydes.
O cadáver foi transportado às 8 horas da noite para o necrotério público, onde será examinado hoje, pelos médicos legistas da polícia, devendo em seguida ser levado para a Academia Brasileira de Letras, de onde sairá o féretro para o cemitério de S. João Baptista.
O aspirante a oficial Dilermando Assis foi recolhido ao Hospital Central do Exército, tendo saído da Piedade às 3 horas e meia da tarde, acompanhado de um comissário.
Apesar de gravemente ferido o rapaz dirigiu-se a pé para a estação e daí para o trem, onde se sentou naturalmente em um carro de primeira classe.
Dinorah acompanhou-o até a estação de S. Francisco Xavier, seguindo por sua vez para o Posto Central de Assistência, onde foi medicado e saiu para recolher-se a um quarto particular na Santa Casa de Misericórdia.
Ao sair de sua casa, em Copacabana, ontem pela manhã, o dr. Euclydes da Cunha trajava uma roupa velhíssima, há muito tempo abandonada.
Apesar disto, quando a polícia do 20º distrito revistou as roupas do cadáver foram ainda encontrados nos seus bolsos diversos papéis particulares, um livro de cheques do London Bank e duas fotografias, sendo uma sua tirada na época em que era ainda noivo de d. Anna da Cunha.
O delegado de polícia do 20º distrito, que esteve desde cedo no local com o seu escrivão Anor Margarido, tomou por termo as declarações dos dois irmãos Assis.
O revólver do dr. Euclydes da Cunha foi apreendido; era uma arma pequena, nova, de sete balas, das quais a última não detonou.
A arma do aspirante Dilermando foi um enorme revólver de campanha, calibre 80, semelhante ao Nagant.
— O aspirante a oficial Dilermando de Assis esteve no último baile do Itamaraty. Teve há pouco um assalto de armas com o professor Jorge Occhipinti.
Seu irmão Dinorah de Assis é aluno ouvinte no segundo ano da Escola Naval.
*
Em S. Paulo
Nesta capital, onde Euclydes da Cunha passara tantos anos e onde conquistara inúmeros amigos e admiradores, foi dolorosíssima a impressão causada pela notícia do seu assassinato.
À nossa redação vieram numerosas pessoas indagar dos pormenores do fato e trazer-nos as expressões de pesar pela trágica morte do nosso desventurado colaborador.
Na mocidade das escolas que pelo autor dos “Sertões” alimenta um justificado entusiasmo, foi recebida com grande mágoa a triste notícia.
Sob a presidência do bacharelando de direito sr. Antonio Vasques, servindo de secretários os srs. Jayme Soares Chaubet e João Baptista de Abreu, reuniram-se ontem, às 9 horas da manhã, os alunos da Faculdade de Direito para resolverem sobre as homenagens que deviam prestar à memória do dr. Euclydes da Cunha.
Depois do presidente expor os motivos da reunião, falou o sr. Flor Horácio Cyrillo que, em comovido discurso, discorreu sobre a individualidade científica e literária do ilustre acadêmico.
Usaram da palavra, em seguida, os srs. Alfredo Mormano e Léo Teixeira Leite, tendo este proposto que os acadêmicos tomassem luto por sete dias.
O sr. Alcebíades Delamare propôs que se telegrafasse à Academia Brasileira de Letras, enviando-lhe pêsames.
O bacharelando sr. José de Souza Soares falou, por último, pronunciando as seguintes palavras: “Ao ler pela manhã a dolorosa notícia da morte de Euclydes da Cunha, “verdadeiro talento que brilhou como um raio de gênio em nossa literatura”, um profundo gemido de dor dominou a minha alma e, o meu coração contristou-se à vista de tanto infortúnio.
E, mais uma vez, achei verdadeira a página de um belíssimo espírito da Espanha de que, em todo doloroso pesar que experimentamos, há um profundo mistério que solicita as inesgotáveis meditações de uma filosofia sábia e sublime porque, nos terríveis contrastes em que o temor entra em luta com a esperança, a felicidade com a desgraça e a vida com a morte, nosso coração nos adverte que está aí a imagem da nossa própria existência e o indivíduo ouve em si mesmo uma voz que lhe grita, um eco que lhe exclama – choras sobre a desgraça porque a desgraça é vosso patrimônio.
E esta desgraça que se não descreve na presença de um espetáculo tão acabrunhador como o da perda do glorioso escritor, enche de mágoa e pesar sinceros todos os que acompanham o movimento intelectual do país.
Sim, porque Euclydes da Cunha, para quem a literatura não foi senão “a expansão livre e espontânea da alma” era, sem dúvida, nos últimos tempos, o escritor mais extraordinário da nossa raça e o estilista mais vigoroso da nossa língua. Senhores, não é o entusiasmo pelo escritor nem a admiração pelo brasileiro ilustre que me fazem cair dos lábios essas expressões que parecem ousadas porque, em todas as suas páginas monumentais há qualquer coisa de maravilhoso, qualquer coisa de genial.
São justíssimas, pois, todas as manifestações dos moços intelectuais desta casa à memória daquele que se formou pelo trabalho e se fez pelo talento e associando-me a elas, proponho que meus colegas telegrafem ao barão do Rio Branco, pedindo-lhe representar esta Faculdade nos funerais do eminente brasileiro.”
Todas as propostas foram aclamadas.
Pela mesa foram enviados os seguintes telegramas:
“Conselheiro Ruy Barbosa. – Alunos Faculdade Direito inconsoláveis enviam v. exa. e Academia de Letras expressões sinceras profundo pesar pelo transe doloroso morte Euclydes da Cunha, brilhante imortal.”
“Barão do Rio Branco. – Acadêmicos Direito, pungidos irreparável perda eminente Euclydes Cunha, enviam v. exa. condolências pedindo representá-los funerais excelso acadêmico, glória nacional.”
— Os lentes do quinto ano, drs. Ernesto Moura e João Mendes suspenderam as aulas em sinal de pesar pela morte do dr. Euclydes da Cunha.
Na primeira aula falou o bacharelando João Baptista de Abreu que em sentidas palavras, traçou a individualidade do ilustre acadêmico.
Na segunda aula falou o bacharelando Eugênio Monteiro que pronunciou as seguintes palavras:
“Venerando Mestre – O quinto ano desta Faculdade delegou-me a palavra nesta hora presente para demonstrar a sua grande mágoa e pedir-vos a suspensão da aula como uma homenagem ao vulto extraordinário que ontem sucumbiu ferido pela fatalidade. Euclydes da Cunha foi o colaborador mais abnegado do ilustre barão do Rio Branco na obra patriótica da fixação dos limites do Brasil, com os territórios das nações vizinhas. Conjurando deste modo os perigos que ameaçavam a paz sul-americana, que, numa situação de declive, estava quase a degenerar uma luta armada, o malogrado brasileiro mereceu por sem dúvida a dilatada estima dos contemporâneos e a respeitosa consideração dos posteros. Bastava esse fato a impor-lhe a admiração de toda uma nacionalidade, se nós pudéssemos, por ventura, furtar à cintilação do seu estro incomparável nos domínios vastos da literatura brasileira.
Em homenagem, pois, à memória de quem tanto elevou a Pátria, pedimos suspendais os trabalhos de hoje.”
— O Centro Acadêmico Onze de Agosto resolveu, em sinal de pesar, transferir para dia ainda não determinado a inauguração do retrato de d. Pedro II em sua sala de honra e realizar uma sessão cívica solene no salão nobre da Faculdade de Direito.
Foi convidado para presidir a esta sessão o dr. Dino Bueno, diretor da Faculdade e para orador oficial o sr. dr. Reynaldo Porchat, lente de direito romano e advogado do centro.
— Ontem foi expedido um telegrama de condolências ao sr. barão do Rio Branco pelo infausto passamento de Euclydes da Cunha.
— No Ginásio Macedo Soares, por ordem do respectivo diretor, todos os lentes, ao finalizar as respectivas aulas, disseram algumas palavras aos seus alunos, recordando a personalidade literária do saudoso escritor.
O corpo docente do mesmo estabelecimento enviou ao dr. Ruy Barbosa, presidente da Academia Brasileira de Letras, o seguinte telegrama:
“O corpo docente do Ginásio Macedo Soares manifesta a v. exa. sentimento de profundo pesar pelo infausto passamento do dr. Euclydes da Cunha, notável membro da Academia de Letras. – Macedo Soares, diretor”.
— O acadêmico de direito Oswaldo Boaventura, presidente do Grêmio Literário e Científico “Luiz Antonio dos Santos”, com sede no Instituto de Ciências e Letras, desta capital, passou ontem os seguintes telegramas:
“Academia Brasileira de Letras. – Rio de Janeiro – Profundamente consternado, em nome Grêmio, apresento sentidíssimos pêsames perda irreparável Euclydes Cunha.”
“Barão do Rio Branco – Ministério relações exteriores – Rio de Janeiro – Sentindo imensa mágoa, nome Grêmio v. exa. pêsames sinceros passamento Euclydes Cunha”.
Hoje, às 6 horas da tarde, reúnem-se os sócios desse Grêmio, afim de deliberarem sobre as homenagens que devem ser prestadas ao ilustre morto.
— No colégio sucursal do Ginásio Nogueira da Gama foram ontem suspensas as aulas em sinal de pesar pelo falecimento do dr. Euclydes da Cunha.
O sr. Alcebíades Delamare, secretário do estabelecimento, telegrafou à Academia Brasileira de Letras e ao barão do Rio Branco, enviando pêsames em nome do corpo docente e alunos.
O Estado de S. Paulo, São Paulo, 19 de Agosto de 1909
Telegramas
O assassinato do dr. Euclydes da Cunha — O estado de Dinorah e Dilermando
RIO, 18 — O inquérito aberto sobre o assassinato do dr. Euclydes da Cunha nada adiantou hoje.
Efetua-se amanhã uma diligência importante, tendo em vista averiguar qual a co-participação de Dinorah no crime.
Este já nada sente.
Dilermando está em magníficas condições e é visitado por todos que o desejam.
A bala que penetrou no mamelão não interessou o pulmão.
Visitou-o Solon, filho do Dr. Euclydes, em nome da mãe.
A tragédia da estrada de Santa Cruz — O estado de Dilermando —
Novos depoimentos
RIO, 18 — O aspirante Dilermando de Assis tem passado irritado e demonstrado grande abatimento moral. Dilermando evita tocar no assunto que se prende à tragédia em que se envolveu. Tem tido pouca febre, mas ainda escarra sangue.
O seu ferimento mais grave é o do peito, estando a bala alojada no pulmão direito.
Os médicos só o operarão quando mostrar mais calma.
Dilermando foi hoje visitado pelo seu advogado Deocleciano Martyr, a quem disse que confirmava o seu primitivo depoimento.
— Um repórter da “Notícia” interrogou o comissário de polícia Solon, cunhado do dr. Euclydes da Cunha, o qual disse que a família Solon não conhecia nem mantinha relações com Dilermando e Dinorah de Assis e que as duas senhoras que residiam com Euclydes não eram aparentadas com a família, mas sim comadres da viúva de Euclydes.
Disse ainda o comissário Solon que d. Anna da Cunha costumava ir visitar o filho no ginásio, indo depois para a casa de sua mãe que fica próxima à casa do declarante.
Disse ainda que quase não freqüentava a casa de Euclydes, ignorando por isso o que ali se passava.
Sábado o dr. Euclydes foi buscar o filho no ginásio, indo depois à casa de sua sogra, onde pediu informação de sua mulher.
Aí lhe informaram que, na véspera, d. Anna dissera que iria para a casa de Euclydes. No domingo, Solon foi informado do fato e só ficou inteirado de tudo quanto se passara pela leitura dos jornais.
EUCLYDES DA CUNHA
Às 3 horas da madrugada de ontem o “Correio da Manhã” recebeu a seguinte carta:
“A abaixo assinada…
O Estado de S. Paulo, São Paulo, 21 de Agosto de 1909
Telegramas
Um artigo do sr. Medeiros e Albuquerque
RIO, 20 — O sr. Medeiros e Albuquerque trata, na sua “Ordem do dia”, da “Notícia” de hoje, da tragédia da Piedade, em que foi vitimado o grande escritor Euclydes da Cunha.
O jornalista da “Ordem do Dia” faz dessa tragédia um argumento em prol do divórcio, salientando o fato do filho de Euclydes da Cunha deixar o pai morto na mesa do necrotério para visitar, e assiduamente, o assassino, e, além disso, tomando partido pela esposa adúltera, que o soubera cativar e açular contra o marido.
E conclui assim o sr. Medeiros e Albuquerque: “Os que pregam a indissolubilidade do casamento dirão, diante de um exemplo desses, de que vale essa indissolubilidade! Vale para forçar os filhos a assistir às cenas mais degradantes, e ter de optar por um ou por outro dos progenitores. E é geralmente o culpado que procura obter a cumplicidade dos filhos, de que o outro não cogita tão assiduamente porque sabe que está com a boa razão.
O cadáver de Euclydes da Cunha aí está para convidar aos que se opõem ao divórcio a que meditem sobre essa terrível lição de coisas.
O assassinato de Euclydes da Cunha — Restabelece-se a verdade —
Ataque à traição
RIO, 20 — Dinorah de Assis compareceu hoje voluntariamente à delegacia da 20ª circunscrição e aí, em presença do delegado e outras pessoas, reconstituiu o crime da Piedade, segundo a versão publicada hoje pela imprensa.
Dinorah confirma toda a narrativa da menina Celina Fontainha, filha do sr. Constantino Fontainha, vizinho dos irmãos Assis, a qual viu Dilermando atirar traiçoeiramente o ilustre escritor.
Causou sensação o depoimento de Dinorah.
Homenagem à memória de Euclydes da Cunha
BAHIA, 20 — O corpo docente da Faculdade de Direito desta capital realizará no dia 1 de setembro, no Paço Municipal, uma sessão solene em homenagem à memória de Euclydes da Cunha.
Presidirá a essa sessão o conselheiro Carneiro da Rocha, devendo fazer o discurso oficial o acadêmico Abelardo Vieira.
O Instituto Histórico e Geográfico suspendeu ontem a sessão em sinal de pesar pelo falecimento do dr. Euclydes da Cunha e nomeou uma comissão para assistir a missa que em seu sufrágio será celebrada hoje às 8 horas e meia, na Sé Catedral, por iniciativa do pessoal da Superintendência de Obras Públicas.
— Realiza-se hoje, às 7 horas da noite, no salão nobre do Instituto de Ciências e Letras, sede do Grêmio Literário e Científico “Luiz Antonio dos Santos”, uma sessão fúnebre em homenagem à memória de Euclydes da Cunha.
O elogio fúnebre será feito pelo coronel Raposo de Almeida, lente do Instituto de Ciências e Letras e orador honorário do Grêmio.
— O Centro Acadêmico Onze de Agosto resolveu adiar a sessão magna em homenagem à memória do dr. Euclydes da Cunha para o 30º dia do seu passamento.
Na ata da sessão de ontem do Centro foi consignado um voto de pesar pelo falecimento do eminente homem de letras.
— O “Jornal do Commercio”, que aceitara a primitiva versão sobre o assassinato de Euclydes da Cunha, segundo o qual Dilermando e Dinorah de Assis haviam assassinado o grande escritor em defesa própria, publicaram ontem o que adiante reproduzimos, e que dá outra feição aos fatos, tão tristes e lamentáveis, de domingo passado:
“A reconstrução da exata cena do assassinato do malogrado escritor Euclydes da Cunha, vai se fazendo aos poucos, e com ela começa a desvendar-se do inquérito policial toda a triste verdade dessa negra história.
Com efeito, desde o dia imediato à lamentável catástrofe, as pesquisas feitas pelo Dr. Oliveira Alcântara, induziram-no a prosseguir firmemente no inquérito, tendo por escopo esclarecer com critério, tudo quanto se passava na pequena casa da Estrada Real, antes, durante e depois do crime.
Foi o que fez e efetivamente é o que tem feito até agora essa autoridade e se algo de horripilante tem vindo à luz da publicidade nesta questão, não é que a polícia e tão pouco a imprensa andem a inventar. São fatos, provas materiais, depoimentos categóricos, documentos irrefutáveis. Essas provas, esses depoimentos, vão pondo a descoberto uma porção de miséria ignóbeis, até que por fim se demonstrará que Euclydes, longe de haver agido com precipitação, quis beber até à última gota o cálice cruel, ver por seus próprios olhos o horror de sua desgraça, convencer-se matar ou sucumbir…
Está patente que Dilermando não vivia à custa de si mesmo. Quando não podia ter dinheiro da amante ou das amantes, conseguia que lhe dessem jóias para empenhar.
D. Anna Solon estava na república no dia do assassinato do seu marido, sendo que ali chegara na sexta-feira, às 3 horas da tarde.
Sobre este ponto, já não pode haver dúvida de espécie alguma.
O resultado das pesquisas policiais efetuadas, ontem, são valiosíssimas e delas daremos conta aqui, tendo o cuidado de fazê-lo sem comentários.
Narraremos portanto, com todas as suas negras minúcias o desenrolar das pesquisas policiais.
São coisas horríveis, fatos tenebrosos os quais só nos animamos a trazer a público porque a justiça o reclama.
É preciso, é necessário que seja feita neste caso a mais completa justiça.
O Dr. Oliveira Alcântara chegou ontem, às 3 horas da tarde na casa nº 214, da Estrada Real de Santa Cruz. Acompanhado de negociantes, do professor público e pessoas conceituadas do lugar, começou a busca, lavrando autos, devidamente testemunhados, de tudo quanto ia apreendendo, assim como dos autos de abertura de portas e de malas.
Feita a primeira revista na sala de visitas, passou-se para o quarto de Dilermando. Daí as autoridades recolheram roupas de homem e de senhora, sapatos e sandálias para casal.
Um pequeno baú de folha de Flandres, encontrado aí, continha roupas do pequeno Lulu de 18 meses de idade, bem como roupas brancas e poignors reconhecidas como pertencentes à D. Anna da Cunha.
As roupas, em grande quantidade, de Dilermando achavam-se em um cabide suspenso na parede à esquerda de quem entra no quarto, todas veladas por um pano.
Entre outros objetos chamaram atenção cinco caixas de colarinho e punhos, cinco pares de botinas todas de pouco uso, diversas cautelas de jóias empenhadas com o nome de Dilermando de Assis. Estas jóias, porém, pela sua natureza, não eram por certo de seu uso: pulseiras, bichas, africanas, marquises. A soma das cautelas sobem a 688$700.
A conta de Julho do armazém é distribuída da seguinte forma:
Mercadoria, 198$000.
Diversos gêneros, 131$000.
Pedindo as autoridades ao fornecedor explicações sobre o que denominava diversos gêneros, este explicou que era dinheiro.
Na correspondência de Dilermando há uma infinidade de cartas e retratos de mulheres.
Abrindo por último um saco de roupa já servida, encontraram-nas para casal, sendo que do exame feito em algumas peças pôde averiguar-se vestígios nauseantes.
Como já dissemos de outra vez o atelier de fotografia do aspirante a oficial é otimamente aparelhado.
Na câmara escura foi encontrado e apreendido pela polícia um irrigador ainda novo.
A autoridade policial fizera fotografar, pelo funcionário respectivo da polícia, todos os aposentos da casa, inclusive a mesa de jantar, sobre a qual, circunstância importante, ainda se acham postas quatro xícaras para café, talheres e pratos para quatro pessoas.
Dentro de um livro: Como se cura um louco, por Lelma Laugerlof, no qual se lia o carimbo do Dr. Euclydes da Cunha, livro encontrado sobre a mesa de jantar, – foi ainda achada pelas autoridades uma conta da Alfaiataria Mendonça, no valor de 350$, da qual já haviam sido pagos este mês 200$000.
Em seguida a estes fatos, todos de caráter puramente oficial, todos recolhidos pela polícia, todos constantes do processo a cargo do Dr. Alcântara, do 20º Distrito, vejamos o ponto mais sério desta questão, o seu ponto capital, aquele que é o alvo em que temos fixa toda a atenção, ao atravessar esse imenso charco.
Trata-se de restabelecer o mais minuciosamente que for possível, a cena do assassinato.
Ouçamos uma testemunha de vista, a única talvez com que, por infelicidade, a justiça poderá contar.
É Celina Fontainha Cabral, uma vivíssima e inteligente menina, de nove anos de idade, filha do Sr. Constantino Fontainha, vizinho dos aspirantes Dilermando e Dinorah de Assis.
Da porta dos fundos de sua casa vêem-se o jardim e a frente da casa dos rapazes.
Celina declarou à polícia que chegara a essa porta da casa por ouvir tiros na casa dos estudantes e acreditar que eles estivessem a soltar bombas chinesas, o que faziam quase sempre, sobretudo quando lá estava D. Anna.
Mas, subitamente viu sair de dentro um homem que procurava fugir com um revólver na mão, Dilermando, que o acompanhava também, empunhando um revólver, estacou na porta, gritando assim:
— Espera cachorro! E disparou um tiro. O homem voltou-se e quis atirar também, mas a sua arma falhou.
Neste momento, Dilermando, de cima para baixo, tornou a disparar o revólver e o homem então caiu no jardim, sendo daí a pouco carregado para dentro.
O depoimento desta menina é positivamente uma peça de inestimável valor neste trama. Diante dele, desaparece por completo a legítima defesa alegada por Dilermando, e seu irmão, como já desapareceram as calúnias com que foram enxovalhadas as irmãs Angélica e Lucinda.
O exame da arma do Dr. Euclydes da Cunha parece confirmar as declarações de Celina, pois, justamente o seu último cartucho não foi detonado.
Da mesma sorte, ficou verificado que dois tiros da arma do aspirante foram detonados de dentro do quarto, por detrás da porta. Vêem-se ali dois orifícios, em frente dos quais, na parede, do lado oposto, do corredor, acham-se encravadas duas balas.
O Delegado do 20º Distrito pretendeu tomar, ontem, o depoimento de Dilermando. Tendo, porém, este se recusado a falar esta autoridade retirou-se, solicitando do Diretor do Hospital ficasse o ferido incomunicável.
O aspirante Dinorah procurou, ontem, penetrar na Casa da Estrada Real, sendo-lhe, porém, isto obstado pelas praças de polícia que lá estavam.”
— Do sr. Pimenta da Cunha, pai do nosso ilustre colaborador extinto, recebemos um telegrama pedindo-nos declarar que o malogrado escritor não tinha senão uma única irmã, que é a esposa do sr. dr. Octaviano Vieira, juiz de direito de S. Carlos do Pinhal.
— À última hora recebemos o telegrama que vai publicado na seção correspondente, pelo qual se verifica que a última versão publicada pelo “Jornal do Commercio” e acima reproduzida, é a verdadeira.
O Estado de S. Paulo, São Paulo, 25 de Agosto de 1909
Telegramas
O substituto do sr. Euclydes da Cunha no externato D. Pedro II
RIO, 24 — Foi nomeado interinamente para o cargo de professor de lógica do externato D. Pedro II o sr. Farias Brito.
Homenagem a Euclydes da Cunha
BELÉM, 24 — Os alunos do Ginásio Paes de Carvalho realizarão no dia 28 deste mês uma sessão cívica em homenagem ao dr. Euclydes da Cunha.
Euclydes da Cunha
Sobre o bárbaro crime de que foi vítima o dr. Euclydes da Cunha encontramos no “Jornal do Commercio” mais as seguintes informações:
“Avolumam-se dia a dia os autos do processo relativo ao assassinato do Dr. Euclydes da Cunha. Ao mesmo tempo, crescem também, cada vez mais nítidas e mais esmagadoras as provas contra o aspirante Dilermando de Assis.
Nada menos de quatro depoimentos, solidamente encadeados entre si, acordes na forma e na essência, já destruíram completamente a alegação de legítima defesa com que Dilermando procurara justificar o seu ato.
As declarações de D. Henriqueta de Araújo Medeiros, reunidas, ontem, ao inquérito, pelo Dr. Oliveira Alcântara, são de uma simplicidade iniludível:
– Estava dentro de sua casa, que fica frente a frente com a república, quando ouviu tiros.
Dirigiu-se para a varanda a fim de recolher os filhos. Daí presenciou toda a cena. Um homem, de costas para sua casa, em pé, no jardim, voltado para Dilermando, que do alto do acimentado “aprumou” um grande revólver negro, para ele e disparou um tiro. Viu o homem imediatamente cambalear e cair.
Neste momento, emocionada com a horrorosa cena, sentiu a vista se lhe turvar e caiu sem sentidos.
Este depoimento confirma ainda uma vez as declarações de Celina e completa as do Sr. Joaquim Vaz de Araújo, bem como as do próprio irmão de Dilermando de Assis.
O Dr. Oliveira Alcântara procurará ainda o testemunho de uma outra pessoa, cujo nome não podemos obter, mas sabemos tratar-se de um empregado da Repartição Geral dos Correios.
O Diretor do Hospital Central do Exército enviou, ontem, um ofício ao Dr. Oliveira Alcântara, avisando-o de que o aspirante Dilermando de Assis já pode ser inquerido.
Dilermando tem se levantado do leito diariamente. Não parece preocupar-se muito com a sua situação; a respeito da qual fala sempre com visível indiferença.
São os seguintes os quesitos apresentados pela autoridade policial aos peritos, Srs. Engenheiro Manoel do Amaral Segurado e Capitão João Vieira, comandante da guarda noturna de Inhaúma:
Exame do local:
1º Existem nas paredes do corredor e da sala de visitas da casa nº 214 da Estrada Real de Santa Cruz e na porta do 1º quarto desse corredor, à esquerda de quem se dirige da sala de visitas para a sala de jantar, vestígios por projétil de arma de fogo?
2º Quantos e quais são?
3º Por esses vestígios podem os peritos determinar o calibre das armas usadas?
4º Podem determinar por qual das armas apresentadas a exame foram feitos esses vestígios?
5º Por estes vestígios podem determinar o ponto de partida dos projéteis?
6º Pelo ponto de partida dos projetos e pela sucessão dos vestígios encontrados, podem determinar a direção tomada pelos contendores?
– Exame de armas:
1º Qual a natureza das armas apresentadas a exame?
2º Quais as suas dimensões?
3º No estado em que se acham podiam ser utilizadas eficazmente para a perpetração do crime?
4º As armas submetidas a exame estão ou não carregadas?
5º Qual a natureza da carga?
6º As balas foram expelidas por deflagração das cápsulas?
7º O exame do interior do cano indica que os disparos tenham sido recentes?
– Exame diferencial de nível:
1º Qual a diferença do nível a soleira da porta de entrada da sala de visitas e o do solo do jardim da casa da Estrada Real de Santa Cruz nº 214?”
O Estado de S. Paulo, São Paulo, 27 de Agosto de 1909
Telegramas
A tragédia da Estrada Real de Santa Cruz — O depoimento de Dilermando
RIO, 26 — Foi ouvido hoje o depoimento de Dilermando de Assis sobre a tragédia da Estrada Real de Santa Cruz.
Dilermando narrou a cena do assassínio como referiram as outras testemunhas dizendo, no entanto, não acreditar que motivos de honra tivessem levado Euclydes da Cunha a proceder como procedeu porquanto quando fazia viagens costumava deixar sua senhora em uma casa de pensão de péssima reputação.
Dilermando atribui-se qualidades que o fazem rivalizar com Euclydes da Cunha, pois que é, na sua opinião, um dos oficiais mais distintos do exército.
O Estado de S. Paulo, São Paulo, 12 de Setembro de 1909
Euclydes da Cunha
Encerramento do inquérito — O relatório do delegado — As conclusões
Ficou anteontem concluído o relatório aberto pelo sr. dr. Oliveira Alcântara, delegado do vigésimo distrito do Rio de Janeiro, sobre o covarde assassinato do nosso inesquecível colaborador dr. Euclydes da Cunha.
Do longo e minucioso relatório do delegado, a que acompanha uma planta da casa em que se deu o crime, transcrevemos o seguinte:
“Às doze horas mais ou menos, do dia quinze de Agosto, próximo passado, chegou ao conhecimento desta Delegacia que, na casa número duzentos e quatorze da Estrada Real de Santa Cruz, havia sido assassinado o Dr. Euclydes da Cunha pelos aspirantes a oficiais do Exército e da Marinha, respectivamente, Dilermando Cândido de Assis e Dinorah Cândido de Assis.
Sobre tão lamentável notícia foi imediatamente instaurado o presente inquérito para que se apurassem as responsabilidades criminais que no caso coubessem e elucidadas as peripécias dessa lutuosa ocorrência.
Atendendo às providências que urgiam ser tomadas, fiz-me acompanhar do escrivão e diversos funcionários da delegacia ao local do crime, onde encontrei o cadáver do Dr. Euclydes da Cunha sobre uma cama, cuja fotografia foi junta a estes autos.
Na mesma casa já referida achavam-se D. Anna Solon da Cunha, o menor Solon da Cunha, a doméstica Anna de Almeida Lima e os aspirantes Dilermando e Dinorah Cândido de Assis que, interrogados, prestaram as declarações de fls. 3 a 6 v.
Perfunctoriamente analisadas essas declarações, vi que Dilermando nelas procurou insinuar que agira em legítima defesa, mas tendo afirmado que “motivos íntimos” tinham determinado o conflito e impondo-se ao meu espírito a coincidência de encontrar-se no local do crime a mulher do morto, logo se me afigurou que tais “motivos íntimos” e a “estadia ali da referida senhora” constituíam um só dos elos causais dos antecedentes, e procurando averiguar estes antecedentes encontrei a primeira das falsidades contidas nas declarações do agente direto do crime, isto é: que a esposa do morto não tinha chegado no momento, mas – ao contrário – já ali estava quando teve início a luta.
Esta primeira falsidade foi o fio para reconstrução da cena criminosa e verificação dos antecedentes que a determinaram. Busquei então, calmamente, indagar desde quando e porque D. Anna Cunha encontrava-se em casa do aspirante Dilermando e apurei que – já tendo relações amorosas anteriores com este – que determinavam a desordem no lar do extinto homem de letras – na quinta-feira, doze, saíra do seu domicílio conjugal pelas três horas da tarde em companhia de Dinorah, dizendo ir procurar casa maior para mudar-se com a família afim de hospedar seu sogro que vinha enfermo do interior. No entanto, fora à casa de Dilermando, de onde só pelas dez horas da noite se retirou, indo para casa de sua mãe no Campo de S. Cristóvão, onde pernoitou. Na sexta-feira, treze, D. Anna saiu de casa de sua mãe sem chapéu, tendo ido ao Ginásio Nacional visitar o menino Euclydes, de onde voltou pelas duas horas da tarde à casa de sua mãe. Aí tomou o chapéu e levando o menino Lulu disse a D. Augusta Solon que ia para o domicílio conjugal em Copacabana, o que, no entanto não fez, pois conforme se verificou no inquérito, na sexta-feira de manhã tendo ela prometido a seu marido ir para Copacabana, este, no sábado foi à casa da viúva Solon procurá-la, sendo informado que – na véspera pelas duas horas, D. Anna saíra dizendo ir para casa. Entretanto ela se havia logo dirigido para casa de Dilermando, onde pernoitou de sexta – treze – para sábado – quatorze – e de sábado – quatorze – para domingo – quinze – em companhia de Lulu, desde treze e de Solon desde quatorze.
Certo destes antecedentes, tive a evidência de que D. Anna, Dilermando, Dinorah e Solon estavam na intimidade das relações adulterinas entre Dilermando e D. Anna Cunha, e formavam em torno do esposo ultrajado um cordão vigilante e protetor que o isolasse e impedisse de defender sua honra, tanto que sua esposa, Dinorah, Solon e o cúmplice adulterino iam em concurso e a pretexto de rendez-vouz com D.D. Angélica e Lucinda Ratto saber do estado d’alma do Dr. Euclydes, tendo Dinorah chegado mesmo a ir para esse fim até Copacabana, de onde voltou dizendo a Dilermando e D. Anna que o “Euclydes estava muito exaltado e disposto a resolver a questão pondo tudo em pratos limpos”.
Desta certeza à de que, estando todos em segura solidariedade no ataque à honra do malogrado Dr. Euclydes da Cunha, decorria a convicção ou pelo menos forte presunção de que – dado um previsto conflito entre o sedutor e o ultrajado – todos se reuniriam e entre si se auxiliariam contra ele. Nesse sentido aprofundei as minhas pesquisas, esclarecendo a parte que cada qual dos personagens tomara no fato criminoso, e apurei então que a luta se teria travado conseqüente à certeza súbita que tivera o Dr. Euclydes de que sua mulher adulterava e à selvagem brutalidade de Dilermando e Dinorah que não quiseram evitar o conflito.
De que Dilermando era de há muito o cúmplice adulterino de D. Anna Cunha há no inquérito farta prova: é ele Dilermando quem diz que “motivos íntimos” determinaram a luta; que D. Anna pernoitara em sua casa desde sexta-feira até o domingo em que se travou a luta e declara ainda que não obstante ser o Dr. Euclydes seu desafeto, queria recebê-lo em casa para expor-lhe a “verdade”; é D. Anna quem declara que “sendo maltratada por seu marido e sendo Dilermando o único responsável por esse estado de coisas fora para casa deste, deliberada a ficar lá com ele, pois era ele quem devia assumir as conseqüências de seus atos” e lá ficara definitivamente com ele que, “sempre lhe correspondia com grande afeto e carinho”; é D. Angélica que revela ter lido uma carta em que Dilermando pede o pagamento de uma conta atrasada, confessando nesse momento D. Anna a paixão que tinha por Dilermando; é Solon quem afirma que vindo de casa de seu pai, onde houvera forte discussão, encontrou sua mãe em casa de Dilermando, só com este, na sala; é Anna de Almeida Lima ex-criada do Dr. Euclydes e de D. Anna Cunha, e por esta retirada da Santa Casa e dada a Dilermando, quem diz que de sexta-feira a domingo D. Anna Cunha estava em casa de Dilermando e que há muito tempo era hábito de D. Anna passar dias com seus sobrinhos Dilermando e Dinorah; são D. Anna de Almeida e Dinorah que narram a viagem feita por Dilermando e D. Anna a São Paulo, juntos, com dinheiro do morto; e outros indícios veementes, irrecusáveis, seguros, como a apreensão de roupas pertencentes a D. Anna, na casa de Dilermando, os autos de reconhecimento e entrega que deixam evidentes que D. Anna e Dilermando eram amantes de data remota. De que ela e seu amante sabiam que para o Dr. Euclydes Cunha a suspeita ia gradativamente encontrando os elementos da prova circunstancial que no espírito do emérito professor de lógica se iam concatenando, de ordem a formar a certeza, não resta o menor resquício de dúvida: – dada a constante desinteligência entre o extinto e D. Anna, tinham eles discutido com a desusada veemência de que dão notícia os amplos de dizeres de D. D. Angélica e Lucinda Ratto, Solon, Dinorah e D. Anna; a irritação de que tinham todos notícia era no espírito do Dr. Euclydes tanta que Dinorah tendo ido espreitar, como sentinela avançada do adultério, a casa do desonrado, de lá voltou desaconselhando D. Anna a regressar – “tal o estado de exaltação em que estava o extinto”. Tal era o sobressalto, que estavam prevenidos de portas fechadas, quando Dinorah levanta-se da mesa, onde a adúltera e seu filho tomavam café com o cúmplice adulterino e “sem nada dizer” ia verificar a porta, donde voltava dizendo que o Dr. Euclydes aí estava; eles o esperavam, tal a certeza de que ele procuraria os filhos e a esposa e de que só ali procuraria, já que só contra Dilermando lhe eram as suspeitas. Tudo nos autos revela que arreceiados esperavam ali o Dr. Euclydes e sabiam que ele dissera no sábado que no domingo “punha tudo em pratos limpos”.
Esperavam-no, portanto, os sinistros personagens que figuram no crime de assassinato da Estrada Real de Santa Cruz. De que eles temiam da chegada do Dr. Euclydes; que estavam prevenidos de que ele viria fatalmente, há forte indicação nos autos, mas a vigilância de Dinorah textifica-a completamente.
Chegado ele, a comparticipação solidária de todos na tragédia que se vinha desenrolando se evidencia: – Dilermando, maneiroso e galante, insinuando o que se ia passar, não lhe vai ao encontro logo e nem o evita; ordena a Dinorah que o faça entrar para a sala de visitas e vai vestir uma túnica… vêde este traço característico: – Dilermando está com D. Anna à mesa – íntimo, sem túnica, em mangas de camisa, mas para receber o marido desta vai vestir-se… é que ele sabia que a cena seguinte seria solene.
Dinorah vai ao encontro do Dr. Euclydes, fá-lo entrar para a sala; vendo-o exacerbado, discutem, mas cauteloso vai impelindo a vítima para o fundo da sala, próximo à porta do corredor à vista do quarto de Dilermando, ficando ele Dinorah ao centro da sala, tendo a vítima entre ele e o irmão. Aí culmina a tragédia, Dinorah e Euclydes dialogam em frases lacônicas, e aí, diz Dilermando, o Dr. Euclydes avança para a porta do quarto em que ele estava fechado, arromba-a e alveja-o. Esta declaração é falsa: como ia o Dr. Euclydes adivinhar que aquele aposento era um quarto – se ele não sabia da distribuição dos aposentos da casa, nem qual o quarto de Dilermando e nem mesmo, momentos antes, em que casa este morava? Como, por que percepção milagrosa, sem ciência anterior, iria ele acertar com o quarto do sedutor e com tanta certeza e segurança que fosse logo arrombando a porta e alvejando?
É evidente que qualquer fato bastante impressivo manifestou ao Dr. Euclydes que ali estava o seu ultrajador e este fato sai claro das circunstâncias: Dilermando de dentro do quarto que tinha fechado com o trinco, logo que percebeu que o trabalho de Dinorah estava feito, deu o primeiro tiro que é figurado no esquema junto pela seta 3-3’, ferindo o Dr. Euclydes no “dorso à direita na parte inferior da região costal” (auto de autópsia), tendo a bala anteriormente varado a porta, conforme a figura que foi levantada paralelamente ao exame de corpo de delito.
De que este foi o primeiro tiro e que foi disparado por Dilermando fazem certeza: a) que Solon depõe que o primeiro tiro ouvido foi “o de uma detonação mais forte”. Ora, o revólver de Dilermando era um “Smith and Wesson” de campanha, calibre 38 – ao passo que o do Dr. Euclydes era de calibre 22, de muito menor sonoridade – conforme o laudo dos peritos; b) a direção em que a bala do revólver calibre 38, de dentro para fora, atravessou a porta do quarto de Dilermando deixando o vestígio na parede da sala – justamente no local em que Dinorah previamente colocara Euclydes; c) a forma do ferimento descrito no auto de autópsia “dorso à direita” justamente o lado oferecido a Dilermando, quando Euclydes e Dinorah monologavam na sala.
Deste modo ao Dr. Euclydes, o que indicou o ponto em que estava Dilermando, foi o disparo da arma deste que o veio ferir, mostrando-lhe de onde partia e impondo-lhe a precisão de rapidamente entrar no aposento para não continuar a ser alvejado por trás da antepara.
O que sai, no entanto, dos monumenta delicti, e que, conforme diz Solon, o primeiro tiro foi o de grosso calibre e detonação mais forte do revólver de Dilermando. Alvejada a vítima – já aberta a porta do quarto o Dr. Euclydes tendo tirado do bolso o revólver disparou duas vezes conforme diz Solon que ouviu depois da detonação forte duas fracas. Neste ponto Dinorah acomete ao Dr. Euclydes, cujos movimentos confessa ter procurado tolher, prendendo-o por um braço junto ao ombro e pelo outro no antebraço.
Era a continuação do tramado pelos dois homicidas: enquanto Dinorah prenderia os movimentos ao Dr. Euclydes o irmão impunemente o alvejaria em ordem a pô-lo fora de combate; mas, o destino não quis que assim fosse totalmente, pois, Dinorah, tendo ficado entre o Dr. Euclydes e Dilermando este não pôde alvejar convenientemente a vítima.
Ao contrário, esta, mal segura por Dinorah, com o braço direito meio livre, deu-lhe um tiro que, passando pela parte superior do braço esquerdo de Dinorah, chamuscou-lhe a manga do dólman, e não tendo acertado este tiro, um outro veio, em seguida, passando na parte inferior do mesmo dólman, junto ao bolso, chamuscando-lhe também a fazenda.
Dinorah, então, apavorado, foge pelo corredor, indo procurar um revólver.
A este tempo, tendo Dinorah impelido na luta ao Dr. Euclydes para a posição 1’ – do esquema, Dilermando, sempre de dentro do quarto e por trás da porta, dá-lhe o tiro –
1-1’ – que parece não ter atingido o Dr. Euclydes, mas a bala foi encontrada na parede, no ponto – 1’ – entre a porta do quarto de Dilermando e a sala de jantar, em que Dinorah tinha deixado o Dr. Euclydes.
A vítima, já tendo detonado ineficazmente quase todas as balas de seu revólver (exame de corpo de delito), procurou retirar-se para a sala de visitas, na direção – 1-1’ – ao longo do corredor; mas, Dilermando, sempre de dentro do quarto, dá-lhe o tiro assinalado pelas marcas – 2-2’ – (mesma fig.), que fere ao Dr. Euclydes no punho e na mão direita (autópsia), tendo ficado a bala na parede do corredor, à altura de 50 centímetros, a medir de baixo para cima, o que se evidencia pela autópsia que descreve esse ferimento de cima para baixo e produzindo a ruptura dos tecidos do pulso para a face palmar da mão.
O Dr. Euclydes Cunha, já com esse ferimento, com o punho direito dilacerado, impossibilitado de agir, procurou retirar-se definitivamente da luta, em direção à sala de visitas, quando recebeu ainda outro tiro, cuja bala, fraturando-lhe o húmero e fragmentando-lhe os ossos, foi encravar-se na fechadura da porta da sala de visitas (esquema, linha 4-4’).
A vítima foge, para, atravessando a sala, sair para o jardim; mas Dilermando persegue-a. Conseguindo, no entanto, o Dr. Euclydes sair no jardim, cerca de 3 metros, Dilermando, chegando à porta da sala que dá para esse jardim, dirigiu-se ao Dr. Euclydes, que se retirava, e dizendo-lhe “Espera, cachorro”, alvejou-o, e disparando o revólver, foi o tiro ferir a vítima na “região infra-clavicular direita”. O auto de autópsia confirma esta hipótese, pois, mostrando a direção desse tiro, de cima para baixo, combina plenamente com a vistoria reveladora da diferença de nível entre o ponto em que estava Dilermando – B – (no esquema) e Euclydes – A – na mesma figura que mostra que havendo entre o ponto em que estava o homicida – uma diferença de 0,75 acima do que estava a vítima – a inclinação é justamente uma linha com o declive de 30% que corresponde à linha formada pelo orifício de entrada do tiro e sua trajetória, no corpo da vítima (auto de autópsia).
Estes dois elementos estáveis de certeza vêm deixar indubitáveis os contestes de depoimentos de Henriqueta Medeiros de Araújo e Celina Fontainha Cabral, que viram Dilermando, da porta da sala de visitas alvejar e atirar contra o Dr. Euclydes Cunha que inerme caiu ferido de morte.
É ainda incisiva prova as incontestes declarações de Joaquim Vaz de Araújo, de Solon e Dinorah, que “viram Dilermando com o revólver a fumegar na soleira da porta da sala” e o Dr. Euclydes Cunha caído no solo do jardim.
Não se pode provar com os elementos fartamente acumulados nestes autos que tivesse havido um conluio anterior entre os irmãos Dinorah e Dilermando, para perpetrarem em conjunto, como premeditação caracterizada e dolo de propósito, o assassínio do desventurado Dr. Euclydes Cunha, mas, dos autos sai a indubitável certeza de que os dois estavam certos de que a hora havia soado em que o marido de D. Anna, certo de que esta abandonara o lar, para entregar-se com mais assiduidade e permanência aos carinhos de Dilermando, viria à casa deste senão disputar a posse da esposa, ao menos buscar seus filhos e longe de quererem evitar a cena dolorosa que podia degenerar, tomaram todas as precauções para que ela não tomasse feitio desfavorável ao aspirante Dilermando. Para isto, precavidamente, estando D. Anna na intimidade com Dilermando na sala de jantar, Dinorah levanta-se “sem nada dizer” e ia espreitar se algo de anormal havia, até que de uma feita, tendo ido à janela e vendo que o Dr. Euclydes se achava no portão veio avisar a Dilermando o que ocorria.
Mas o diligente avançada de Dilermando, que sabia que o Dr. Euclydes estava em grande exacerbação; que os filhos e a mulher roubada ao lar ali estavam, longe de evitar a pugna, dizendo que o irmão não estava ou conservando fechada a casa, resolveu facilitá-la, indo abrir o portão.
Dinorah é o cúmplice que cientemente dá o aviso ao irmão celerado, introduz por ordem de Dilermando, a vítima do guet-à-pens no lugar onde devia ser morta; leva-a para o ponto visível da porta do quarto em que está Dilermando – auguet; procura prender e tolher os movimentos de Euclydes da Cunha: – Dinorah incide, pelo menos, na sanção do art. 21, parágrafo 1º, do Código Penal, combinado com o art. 294, parágrafo 1º do mesmo Código, e como tal não pode deixar de ser responsabilizado.
Dilermando não quis também por forma alguma evitar o encontro. Feita a provocação ultrajante pela posse tida acintemente da mulher de seu ex-amigo, protetor e superior hierárquico, em cuja casa e sob o mesmo teto morou – manteve-a e argumentou-a – resolvendo defrontar o ofendido e “dizer-lhe a verdade”. Como quer, pois alegar derimente do art. 32 do Código Penal, se lhe falecem aos atos selvagens evitáveis todos os requisitos do artigo 34 – ns. 1, 2, 3 e 4?
Falha o segundo requisito, pois Dilermando podia ter facilmente impedido a ação, já que ele sabia da desonra que humilhava o Dr. Euclydes; não lhe era fácil conservar a casa fechada? Não lhe era azado retirar-se pelos fundos da casa, enquanto o Dr. Euclydes batia?
Não existe o do n. 1: – a agressão já não era atual, quando Dilermando matou o Dr. Euclydes. É o réu quem diz que – já quando o Dr. fugia pelo corredor e sala – tendo ele se irritado porque o Dr. alvejara Dinorah, “perseguiu-o na fuga a tiros de revólver”; e a autópsia revela que a causa-mortis foi o tiro intercostal que Dilermando confessa ter dado quando já não havia agressão, pois o Dr. Euclydes, com o pulso direito varado por uma bala e outro braço partido por outra bala, já era inofensivo e fugia pelo jardim; não era já atual a agressão, pois as duas testemunhas de vista narram que o Dr. Euclydes fugia pelo jardim, mas, ferido, quando Dilermando, com propósito homicida caracterizado, chegou à porta, injuriou-o – “Espera, cachorro” – e alvejou-o com o tiro que lhe levou a morte.
Foi ato desnecessário a defesa, ferocia inútil, que classifica o cruel matador entre os grandes criminosos de sangue que humilham a espécie.
Também não se completa o quarto requisito, pois Dilermando não só foi o provocador com o ultraje de seduzir a esposa à vítima, mas ainda o iniciador brutal e material da luta, conforme diz Solon, que o primeiro tiro, a detonação mais forte, partiu de Dilermando, que tudo havia disposto para matar o Dr. Euclydes Cunha.
Também não se cumpre o terceiro requisito, pois o tiro que enviou o matador já não era adequado meio para evitar mal maior, porquanto o assassinado “fugia pelo jardim” quando o assassino matou-o inutilmente. Incidiu inegavelmente na classificação penal do art. 294, parágrafo 1º, do Código Penal, pois praticou o assassinato com as agravantes dos parágrafos 4º, pelo reprovado motivo do crime; 5º, pela superioridade do seu revólver regulamentar, calibre 38, de campanha, sobre o de calibre 22, do adversário, superioridade procurada, porque Dilermando, possuindo dois revólveres – o de calibre 32, – que acompanha este inquérito, procurou o de calibre 38 por lhe ser maior o poder eficiente; 6º, o delinqüente, fraudulenta e estrategicamente, atirava o adversário por trás da porta, sempre oculto (corpo de delito); 7º, deu o primeiro tiro de dentro do quarto, quando o Dr. Euclydes não podia saber ainda que Dilermando estava naquele quarto; 8º, finalmente, o morto era superior hierárquico, como capitão do Exército.
Certo de que deixei a instrução criminal completa, reconstruindo o crime em todos os seus aspectos já pelo depoimento de testemunhas de vista já pelas provas diretas dos exames, plantas topográficas, fotografias e mais elementos que levam ao julgador a certeza natural, as provas monumentais e miúdas do delito, penso que ficou edificada a certeza do fato e a evidência da autoria dos indiciados e cuido cumprir um dever representando sobre a necessidade da prisão preventiva, pois, apesar de serem os indiciados aspirantes militares, revelaram em todo esse crime tal ausência de senso moral, que é de presumir se furtem à ação da Justiça.
Para documentar a insensibilidade moral, a ausência dos elementos que disciplinam os homens normais e lhes moderem a ação, basta lembrar que Dilermando, ao dar as suas primeiras declarações, procurou construir a hipótese de que o Dr. Euclydes Cunha, homem próximo da genialidade, era quase um demente, impulsivo e insano; e Dinorah, poucos dias após o evento, que abalou de surpresa e dor e piedade a cidade do Rio de Janeiro, ousava – insensível e risonho – comparecer a uma partida pública de foot-ball, de maillot e calção, jogando vivaz e alegre, com afronta aos sentimentos de piedade de uma sociedade inteira.
O meritíssimo Juiz da 13ª Pretoria, a quem mandou sejam remetidos estes autos, no entanto, resolverá em seu alto critério o que julgar legal e conveniente.
Rio de Janeiro, 10 de setembro de 1909 – Joaquim Pedro de Oliveira Alcântara”.