Prefácio

Aconteceu em agosto: casos e causos das Semanas Euclidianas

Gato Félix. Ilustração: Luiz Carlos Capellano

A Semana do Euclidão

Eu achava que sabia o que era uma Semana Euclidiana. Claro que sabia. Eu era um rio-pardense, nascido e embalado no berço d’Os Sertões, que muito antes da puberdade já sacolejava em cima de carros alegóricos improvisados nos desfiles inaugurais de 9 de agosto, diante das autoridades e dos meus pais que davam tchauzinho na multidão. Agora no ensino médio, eu já tinha lido a “Bíblia da nacionalidade”, podia recitar de cor o parágrafo começado com “Canudos não se rendeu” e colecionava medalhas pelas minhas participações nas Maratonas Intelectuais. Só aí eu descobri que não sabia nada sobre a verdadeira Semana Euclidiana.

Nem eu, nem a maioria dos estudantes nascidos às margens do Rio Pardo. Os alunos ribeirinhos, que passavam o dia ouvindo sobre os oxímoros da linguagem euclidiana, almoçavam na casa dos pais e iam dormir na mesma cama de todas as noites, viam apenas a cara sisuda da Semana Euclidiana: o desfile de abertura com seu jeitão de parada militar, os eventos que emendavam o Hino Nacional com longos discursos destacando o amor à Pátria e os professores que reverenciavam Euclides da Cunha com a fé de Antônio Beatinho no seu bom Conselheiro.

Fui conhecer a outra cara da Semana Euclidiana no ano em que resolvi me juntar à legião dos “estrangeiros”: os alunos que vinham de outras cidades e viviam aqueles sete dias como uma aventura. Eram adolescentes que, em muitos casos, estavam pela primeira vez passando uma semana longe da casa de seus pais e de tudo o que conheciam. Meninas e moleques que viviam a fome de conhecer a terra ignota que esperava por eles fora dos quartos da sua infância. Fome de saber, fome de experenciar, fome de amar e de sofrer por amar. Parecida com a fome euclidiana pelo desconhecido, na Amazônia ou na caatinga. E eu, que vivia a mesma fome, também me reuni aos outros maratonistas nas cantorias sobre o túmulo de Euclides, nas peregrinações para ver o sol nascer debaixo dos sovacos de Cristo, nas noites de sono curto sobre os colchonetes amontoados nos alojamentos e nas choradeiras de 15 de agosto na rodoviária, cantando “volta, volta para as cavernas, se tranca e engole a chave” para os ônibus Nasser que iam embora, deixando a cidade mais vazia.

Na Semana Euclidiana eu me apaixonei, na Semana Euclidiana eu sofri — tanto a dor das minhas paixões como a dor por tabela das paixões de outros maratonistas. Na Semana Euclidiana eu fiz grandes amigos, alguns para a vida toda. Amigos de quem a gente anotava os endereços, com número da rua e CEP, para se dedicar ao pré-histórico costume de trocar cartas: pedaços de nosso cotidiano e dos nossos sonhos na forma de folhas de papel rabiscadas, que a gente espalhava pelo país durante o longo ano entre dois agostos.

A Semana Euclidiana foi o nosso Quarup. Um rito de passagem travestido de maratona escolar para alunos aplicados. É claro que deve rolar algo parecido com adolescentes em outros tipos de acontecimentos: excursões, acampamentos, festivais de rock. Algo que fazia a Semana Euclidiana diferente era o fato de as escolas geralmente escolherem os maratonistas entre os estudantes que gostavam de escrever. O que gerava uma alta concentração por metro quadrado de uma molecada que compartilhava da mesma paixão por literatura, poesia, música. Vários eram CDFs (o termo nerd, bem como o glamour torto que passou a acompanhá-lo, viriam depois). Uma gente com um outro jeito de olhar à volta, que não costumava ter muitos amigos com quem falar sobre isso nas suas cidades de origem. A Semana Euclidiana serviu para nos mostrar que não estávamos sozinhos.

Muitos antes que Zé Celso resolvesse encenar “Os Sertões”, os maratonistas já faziam sua versão antropofágica da cultura euclidiana. Tínhamos o nosso Euclides da Cunha, diferente da figura sagrada dos discursos à beira da Herma. O nosso Euclides era humano, como todos nós. Era o Euclidão, um cara gente boa, nosso parceiro. Euclidão oferecia seu mausoléu para a gente beber, cantar e namorar sobre seus restos mortais. Em seu busto de bronze, Euclidão ria das canções obscenas em que celebrávamos sua história de amor infeliz, depois se oferecia para ser enfeitado com flores e receber os beijos das nossas meninas. E eu sentia que, de algum jeito, essa celebração combinava com a epopeia cheia de vida, plena de sangue e contradições, que Euclidão havia escrito logo ali, na casinha a poucos metros de nós.

Escrevo no passado porque nunca mais voltei a participar das Semanas Euclidianas. Ler as crônicas coletadas aqui pela Rachel me fez mergulhar de novo nesse passado, e agradeço a ela por isso. Conheci Rachel quando já era professora da Maratona Euclidiana, e o que me encanta nela é como consegue levar às aulas o mesmo coração jovem de maratonista. Suas aulas não são transmissão de dogmas, são momentos de descoberta e questionamento. Rachel é daquelas que conseguem ensinar Euclides da Cunha sem esquecer do Euclidão. E é o que ela está fazendo agora, ao reunir histórias que são uma parte da história da Semana Euclidiana, tão fundamental quanto qualquer conferência de encerramento. Obrigado, Rachel. Volta, Euclidão! Ô, fudega!

Fausto Salvadori Filho
Jornalista

SALVADORI FILHO, Fausto. A Semana do Euclidão. In: SILVA, Rachel Aparecida Bueno da. Aconteceu em agosto: casos e causos das Semanas Euclidianas. São Paulo: Casa do Novo Autor, 2012. pp. 11-4. E-book. Disponível em: https://euclidesite.com.br/aconteceu-em-agosto. Acesso em: [data]. Reprodução permitida somente para fins educacionais e desde que citada a fonte.