Notas à 2ª edição

Este livro, secamante atirado à publicidade, sem amparo de qualquer natureza, para que os protestos contra as falsidades que acaso encerrasse se exercitassem perfeitamente desafogados, conquistou — franca e espontânea — expressa pelos seus melhores órgãos, a grande simpatia nobilitadora da minha terra, que não solicitei e que me desvanece. Os únicos deslizes apontados pela crítica são, pela própria desvalia, bastante eloquentes no delatarem a segurança das ideias e proposições aventadas. É o que demonstra esta resenha rápida:


Mercenários inconscientes

Estranhou-se a expressão. Mas devo mantê-la: mantenho-a. Não tive o intuito de defender os sertanejos, porque este livro não é um livro de defesa; é, infelizmente, de ataque.

Ataque franco e, devo dizê-lo, involuntário. Nesse investir, aparentemente desafiador, com os singularíssimos civilizados que nos sertões, diante de semibárbaros, estadearam tão lastimáveis selvatiguezas, obedeci ao rigor incoercível da verdade. Ninguém o negará.

E se não temesse envaidar-me em paralelo que não mereço, gravaria na primeira página a frase nobremente sincera de Tucídides, ao escrever a história da guerra do Peloponeso — porque eu também embora sem a mesma visão aquilina, escrevi

sem dar crédito às primeiras testemunhas que encontrei, nem às minhas próprias impressões, mas narrando apenas os acontecimentos de que fui espectador ou sobre os quais tive informações seguras.

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desabrigadas de todo ante e acidez corrosiva dos aguaceiros tempestuosos

Viu-se nesta frase uma inexatidão e um dos imaginosos traços do meu apedrejado nefelibatismo científico.[ 92 ]

Ora, escasseando-me o tempo para citar autores, limito-me a apontar a página 168 da Geologia de Contejean sobre a erosão das rochas: des actions physiques et chimiques par les eaux pluviales plus ou moins chargées d’acide carbonique — principalement sur les roches les plus attaquables aux acides, comme les calcaires etc.

Para o caso especial do Brasil, encontra-se ainda à página 151 do livro de Emmanuel Liais, sobre a nossa conformação geológica, a caracterização do fenômeno que se montre en très grande échelle, sans doute à cause de ia fréquence et de l’ acidité des pluies d’orage.

No entanto o crítico leciona: “Nem as chuvas causam erosões por conterem algumas moléculas a mais de nitro ou de amoníaco , senão pela rijeza da camada horizontal superior em relação às camadas moles inferiores etc.”

Extraordinária geologia, esta…

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as favelas têm, nas folhas, de estômatos expandidos em vilosidades

Apresso-me em corrigir evidentíssimo engano, tratando-se de noção tão simples.

Leia-se: nas folhas, de células expandidas em vilosidades.

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É que a morfologia da terra viola as leis gerais dos climas.

Outro dizer malsinado. Impugna-o respeitável cientista:

Penso que se a natureza combate os desertos, apenas o facies geográfico modifica as condições extrínsecas do meio. E se violência importa modificação, violar é desobedecer ao preestabelecido.
Assim, não há violação contra as leis gerais dos climas, eis o que não padece dúvida. [ 93 ]

Inexplicável contradita, esta, que investe com todas as conclusões da meteorologia moderna! Basta saber-se que sendo as leis gerais de um clima as que se derivam das relações astronômicas — as próprias ondulações dos isotermos, indisciplinadamente recurvos, mas que seguiriam os paralelos se respeitassem aquelas leis, são um atestado da violação.

Nem precisávamos exemplificar o predomínio permanente das causas particulares ou secundárias na constituição climática de qualquer país. De Santos, cujo clima equatorial é uma anomalia em latitude superior à do trópico, à Groelândia coberta de gelos fronteira às paragens benignas da Noruega, encontraríamos esplêndidos exemplos.

Ainda recentemente, no belo livro sobre a psicologia dos ingleses, Boutmy assinala o fato de ter a Inglaterra, no paralelo de 52º, temperatura igual a 32º de latitude, dos Estados Unidos.

Quem quer que acompanhe num mapa o isotermo de 0º, partirá da frigidíssima Islândia, avançará para o sul, numa curva caprichosa, para a Inglaterra, que não tocará; torcerá depois para o extremo norte da Noruega, e volverá de novo ao sul e se aproximará, nos meses frios, de Paris e de Viena — que assim se ligam malgrado latitudes muito mais baixas, à enregelada terra polar.

E o viajante que perlonga a nossa costa, do Rio à Bahia, demandando o Equador, não vai também, por uma linha quase inalterável, traduzindo geometricamente um regime constante, espelhado na uniforme opulência das matas que ajardinam o litoral vastíssimo?

Mas se parar em qualquer ponto e avançar para o ocidente por um paralelo, pela linha definidora, astronomicamente, da uniformidade climática, deparará transcorridas poucas dezenas de léguas habitats inteiramente outros.

Não estão, nestes exemplos, que multiplicaríamos se quiséssemos, palmares violações das leis gerais dos climas?

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Uma contradição apontada pelo mesmo crítico; diz ele:

…vejo à pág. 70 [O Homem, I, Complexidade do problema etnológico do Brasil] os dizeres categóricos: Não temos unidade de raça. Não a teremos, talvez, nunca. E à pág. 616 [A Luta, Últimos Dias, V, A dinamite] lá está a proposição de que em Canudos se atacava a rocha viva da nossa raça.

Neste salto mortal de 616 – 70 = 546 páginas, é natural que se encontrem coisas disparatadas. Mas quem segue as considerações que alinhei acerca da nossa gênese, se compreende que de fato não temos unidade de raça, admite também que nos vários caldeamentos operados eu encontrei no tipo sertanejo uma subcategoria étnica já formada (pág. 108) [O Homem, II, Causas favoráveis à formação mestiça dos sertões…] liberta pelas condições históricas (pág. 112) [O Homem, II, Uma raça forte] das exigências de uma civilização de empréstimo que lhe perturbariam a constituição definitiva.

Quer isto dizer que neste composto indefinível — o brasileiro — encontrei alguma coisa que é estável, um ponto de resistência recordando a molécula integrante das cristalizações iniciadas. E era natural que, admitida a arrojada e animadora conjetura de que estamos destinados à integridade nacional, eu visse naqueles rijos caboclos o núcleo de força da nossa constituição futura, a rocha viva da nossa raça.

Rocha viva… A locução sugere-me um símile eloquente.

De fato, a nossa formação como a do granito surge de três elementos principais. Entretanto quem ascende por um cerro granítico encontra os mais diversos elementos: aqui a argila pura, do feldspato decomposto, variavelmente colorida: além a mica fracionada, rebrilhando escassamente
sobre o chão; adiante a arena friável do quartzo triturado; mais longo o bloco moutonné, de aparência errática; e por toda a banda a mistura desses mesmos elementos com a adição de outros, adventícios, formando o incaracterístico solo arável, altamente complexo. Ao fundo, porém, removida a camada superficial, está o núcleo compacto e rijo da pedra. Os elementos esparsos, em cima, nas mais diversas misturas, porque o solo exposto guarda até os materiais estranhos trazidos pelos ventos, ali estão, embaixo, fixos numa dosagem segura, e resistentes, e íntegros.

Assim à medida que aprofunda, o observador se aproxima da matriz de todo definida, do local. Ora o nosso caso é idêntico — desde que sigamos das cidades do litoral para os vilarejos do sertão.

A princípio uma dispersão estonteadora de atributos que vão de todas as nuanças da cor a todos os aspectos do caráter. Não há distinguir-se o brasileiro no intricado misto de brancos, negros e mulatos de todos os sangues e de todos os matizes. Estamos à superfície da nossa gens, ou melhor, seguindo à letra a comparação de há pouco, calcamos o húmus indefinido da nossa raça. Mas, entranhando-nos na terra, vemos os primeiros grupos fixos — o caipira, no Sul, e o tabaréu, ao Norte — onde já se tornam raros o branco, o negro e o índio puros. A mestiçagem generalizada produz entretanto, ainda todas as variedades das dosagens díspares do cruzamento. Mas, à medida que prosseguimos, estas últimas se atenuam.

Vai-se notando maior uniformidade de caracteres físicos e morais.

Por fim, a rocha viva — o sertanejo.

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Mas não fujo ainda a nova objeção, porque

se tivemos inopinadamente ressurgida e armada em nossa frente uma sociedade velha, uma sociedade morta, galvanizada por um doido, se tivemos aquilo [continua o crítico] não se compreende como na guerra de Canudos se atacasse a “rocha viva da nossa raça”.

Ao falar em sociedade morta, referi-me a uma situação excepcional da gente sertaneja corrompida por um núcleo de agitados (pág. 205) [O Homem, V, Por que não pregar contra a República?]. O mesmo paralelo feito na mesma página com estados idênticos de outros povos delata-lhe o caráter excepcional. De modo algum enunciei uma proposição geral e permanente, senão transitória e especial, reduzida a um fragmento do espaço — Canudos — e a um intervalo de tempo — o ano de 1897.

Nada mais límpido. Encontraríamos perfeito símile nessa misteriosa isomeria, mercê da qual corpos identicamente constituídos, com os mesmos átomos num arranjo semelhante, apresentam todavia propriedades diversíssimas. Assim pensando — e que se não irritem demais as sensitivas do nosso meio científico com mais esta arrancada feroz de nefelibatismo — eu vejo, e todos podem ver, no jagunço um corpo isômetro do sertanejo. E compreendo que Antônio Conselheiro repontasse como uma “integração de caracteres diferenciais, vagos e indefinidos, mal percebidos quando dispersos pela multidão” — e não como simples caso patológico, porque a sua figura de pequeno grande homem se explica precisamente pela circunstância rara de sintetizar, de uma maneira empolgante e sugestiva, todos os erros, todas as crendices e superstições, que são o lastro do nosso temperamento.

*


A própria caatinga ali assume aspecto novo. E uma melhor caracterização talvez a definisse mais acertadamente como a paragem clássica das caatanduvas, etc. (pág. 229). [A Luta, II, Causas próximas da luta]

Isto também sugeriu reparos. Prestadios amadores, estremecendo por todas as corolas da botânica apisoadas pelo meu nefelibatismo científico (eterno labéu!), puseram embargos ao dizer, doutrina (sic) errônea do livro.

E pontificaram: “caatinga (mato ruim) é o resultado não do terreno mas da secura do ar, ao passo que as caatanduvas são florestas cloróticas (mato doente) resultante da porosidade e da secura do solo.” [ 94 ]

Adorável objeção. Começa insurgindo contra o tupi; termina insurgindo-se contra o português.

Caatinga (mato ruim!)… Catanduva (mato doente!)…

Florestas cloróticas… Clorose de uma planta significando, em vernáculo, o seu “estiolamento”, isto é, alteração mórbida determinada pela falta de luz, são originalíssimas aquelas matas nas regiões brasileiras onde vegetam em pleno fustigar dos sóis!

Quanto à célebre doutrina, duas palavras. A discriminação dos aspectos da nossa flora é ainda um problema que aguarda solução clara.

Observando que o aspecto principal da caatinga (mato branco) e o de um cerrado rarefeito e tolhiço; e que o da caatanduva (mato mau, áspero, doente) é o de uma mata enfezada e dura, tracei a frase combatida porque a flórula indicada, diversa da que prepondera no sertão, me despontou aos olhos realmente com a última aparência.

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Notaram-se, em todas as páginas, termos que vários críticos caracterizaram como invenções ou galicismos imperdoáveis. Mas foram infelizes com com os que apontaram. Cito-os e defendo-os.


Esbotenar — esboicelar, esborcinar (Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Cândido de Figueiredo).
Ensofregar — tornar sôfrego (Dicionário Contemporâneo, de Aulete).
Preposterar — inverter a ordem de qualquer coisa (Idem).
Impacto — metido à força (Idem).
Refrão — consideram-no galicismo. Replico com a frase de um mestre, Castilho: “Eis o eterno refrão com que nos quebram o bichinho do ouvido”.
Inusitado — também se considerou francesismo. Em latim, inusitatus.

Não notaram outros. Antes considerassem à pág. 296, linha 6ª [A Luta, Expedição Moreira César, I, Moreira César] a deplorável tortura de um verbo intransitivo que sucessivas revisões não libertaram; e outros que exigem mais séria mondadura.

Euclides da Cunha
27 – 4 – 1903

[ 92 ] Revista do Centro de Letras e Artes, de Campinas, nº 2, de 31 de janeiro de 1903. [N. do E.: Ver Juízos críticos, São Paulo, Nankin Editorial, UNESP, 2003].
[ 93 ] Correio da Manhã, de 3 de fevereiro de 1903.
[ 94 ] Revista do Centro de Letras e Artes.