Quarta expedição, VI

Pelas estradas. Os feridos

A remoção dos doentes e feridos para Monte Santo era urgente.

Assim, partiram logo as primeiras turmas protegidas por praças de infantaria até ao extremo sul da zona perigosa, Juá.

Começou, então, a derivar lastimavelmente pelos caminhos o refluxo da campanha. Golfava-o o morro da Favela. Diariamente, em sucessivas levas, abalaram dali, em inúmeros bandos, todos os desfalecidos e todos os inúteis, em redes de caroá ou jiraus de paus roliços os enfermos mais graves, outros cavalgando penosamente cavalos imprestáveis e regues, ou apinhados em carroças ronceiras. A grande maioria, a pé.

Saíam quase sem recursos, combalidos, exaustos de provações, afundando, resignados, na região ermada pela guerra.

Era a entrada do estio. O sertão principiava a mostrar um facies melancólico, de deserto. Sugadas dos sóis as árvores dobravam-se murchas, despindo-se dia a dia das folhas e das flores; e, alastrando-se pelo solo, os restolhos pardo-escuros das gramíneas murchas refletiam já a ação latente do incêndio surdo das secas. A luz crua e viva dos dias claríssimos e cálidos descia, deslumbrante e implacável, dos céus sem nuvens, sem transições apreciáveis, sem auroras e sem crepúsculos, irrompendo, de chofre, nas manhãs doiradas, apagando-se repentinamente na noite, requeimando a terra. Deprimia-se o nível das cacimbas. Esgotavam-se os regatos efêmeros, de leitos lastrados de seixos, onde tênues fios de águas defluíam imperceptíveis como nos oueds africanos; e, na atmosfera adurente, no chão gretado e poento, pressentia-se a invasão periódica do regime desértico
sobre aquelas paragens infelizes.

O clima extremava-se em variações enormes: os dias repontavam queimosos, as noites sobrevinham frigidíssimas.

As marchas só podiam realizar-se às primeiras horas da manhã e ao descer das tardes. Mal culminava o Sol era forçoso interrompê-las: todo o seu ardor parecia varar, intacto, o ambiente puríssimo e, refluído pelo solo mal protegido por vegetação rarefeita, aumentar de intensidade. Ao mesmo tempo, dispersos, refletindo em todas as dobras do terreno, os seus raios rebrilhavam, ofuscantes, nos visos das serranias; e pelos ares irrespiráveis e quentes passavam como que fulgurações de queimadas extensas alastrando-se pelos tabuleiros. Assim, a partir das dez horas da manhã, estacionavam as caravanas nos lugares menos impróprios ao descanso, à beira dos cursos d’água ganglionados em poças esparsas, onde a umidade remanente alentava a folhagem das caraíbas e baraúnas altas; junto aos tanques ainda cheios, perto dos sítios em abandono; ou em falta destes, à fímbria das ipueiras rasas salpicando pequenas várzeas sombreadas pelas ramagens virentes dos icozeiros.

Acampavam.

Neste mesmo dia, ao entardecer, mal refeitas as forças, reatavam a rota, progredindo, sem ordem, na medida do vigor de cada um. Saindo unidas da Favela, as turmas a pouco e pouco se distendiam pelos caminhos, fragmentando-se em pequenos grupos; esparsas, afinal, em caminhantes solitários.

Os mais fortes ou mais bem montados avantajavam-se rápidos cortando escoteiros para Monte Santo, alheios ao companheiros retardatários. Acompanhavam-nos logo, conduzidos em redes aos ombros de soldados possantes, os oficiais feridos. A grande maioria não os encalçava; seguia vagarosamente, dissolvendo-se pelos caminhos. Alguns, quando os demais abalavam dos pousos transitórios, se deixavam ficar, quietos, à sombra dos arbustos murchos, de todo sucumbidos de fadigas — enquanto outros, aguilhoados pela sede, mal extinta nas águas impuras das almácegas sertanejas e impelidos pela fome, torcendo o rumo, batiam afanosamente os desvios multívios das caatingas, apelando para os recursos da flora singular transbordante de frutos e de espinhos — e desgarravam, desarraigando tubérculos de umbuzeiros, sugando os cladódios túmidos dos cardos espinescentes, catando os últimos frutos das árvores desfolhadas.

Deslembravam-se do inimigo. A ferocidade do jagunço era balanceada pela selvatiqueza da terra.

Ao fim de poucos dias a tortuosa vereda do Rosário encheu-se de foragidos. Ali estava a mesma trilha que um mês antes haviam percorrido, impávidos ante quaisquer recontros com o adversário esquivo, fascinados pelo irradiar de 4 mil baionetas, sacudidas no ritmo febricitante das cargas. Parecia-lhes agora mais áspera e impraticável — coleando em curvas sucessivas, tombando em ladeiras resvalantes, empinando-se em cerros, tornejando encostas, insinuando-se impacta, entre montanhas.

E reviam-lhe, pasmos, os trechos memoráveis.

Nas cercanias de Umburanas, o casebre destruído, onde os sertanejos, de tocaia, tinham aferrado de um choque o grande comboio da expedição Artur Oscar; além das Baixas, as margens do caminho debruando-se de ossadas brancas, adrede dispostas numa encenação cruel — recordavam o morticínio de março; numa inflexão antes do Angico, o ponto em que Salomão da Rocha alteara, por minutos, diante da onda rugidora que vinha em cima da coluna Moreira César, a barragem de aço de suas divisões de artilharia; no córrego seco, mais longe, a ribanceira a pique em que tombara do cavalo, pesadamente, morto, o coronel Tamarindo; nas proximidades do Aracati e Juetê, choupanas em ruínas, esteios e traves roídos dos incêndios, cercas arrombadas e invadidas de mato, velhas roças em abandono, estereografando, indelével, o rastro das expedições anteriores…

Perto do Rancho do Vigário, por um requinte de lúgubre ironia, os jagunços cobriram de floração fantástica a flora tolhiça e decídua: dos galhos tortos dos angicos pendiam restos de divisas vermelhas, trapos de dólmãs azuis e brancos, molambos de calças carmesins ou negras, e pedaços de mantas rubras — como se a ramaria morta desabotoasse toda em flores sanguinolentas…

Em torno, sem variantes no aspecto entristecedor, a mesma natureza bárbara. Morros enterroados, formas evanescentes de montanhas roídas pelos aguaceiros fortes e repentinos, tendo às ilhargas, à mostra, a romper, a ossatura íntima da terra repontando em apófises rígidas, ou desarticulando-se em blocos amontoados, em que há traços violentos de cataclismos; plainos desnudos e chatos feitos llanos desmedidos; e, por toda a parte, mal reagindo à atrofia no fundo das baixadas úmidas, uma vegetação agonizante e raquítica, espalhada num baralhamento de ramos retorcidos — reptantes pelo chão, contorcendo-se nos ares num bracejar de torturas…

Choupanas paupérrimas, portas abertas para o caminho, surgiam em vários trechos, ainda não descolmadas, mas vazias, porque as deixara o vaqueiro que a guerra espavorira ou o fanático que indireitara para Canudos.

Eram logo tumultuariamente invadidas, ao tempo que as deixavam outros hóspedes surpreendidos: raposas ariscas e medrosas, saltando das janelas e esvãos da cobertura — olhos em chamas e pelo arrepiado — e atufando-se, aos pinchos, nas macegas; ou centenares de morcegos, esvoaçando desequilibradamente dos cômoros escuros, tontos, rechiantes.

A estância desolada animava-se por algumas horas. Armavam-se redes pelos quartos exíguos, na saleta sem soalho e fora, nos troncos das árvores do terreiro; amarravam-se os muares nas estacas cruzadas do curral deserto; estendiam-se pelas cercas frangalhos de capotes, cobertores e fardas velhas. Grupos erradios circuitavam a vivenda esquadrinhando, curiosos, a horta maltratada, de canteiros invadidos pelas palmatórias de flores rutilantes; e um ressoar quase festivo, de vozes, relembrava, um instante, a quadra feliz em que os matutos ali passavam a vida nas horas aligeiradas pela paz dos sertões. Os mais fortes enveredavam logo para a cacimba pouco distante onde, indiferentes aos retardatários e esquecidos dos que viriam depois e por muitas semanas ou meses ainda fariam a mesma escala obrigatória, se banhavam, lavavam os cavalos suados e poentos e abluíam as chagas no líquido que só se renova de ano em ano, pelas chuvas, passageiras. Volviam com os cantis e marmitas cheios, avaramente sobraçados.

Não raro, alguns bois — rebotalhos de manadas grandes tresmalhadas pelo alvoroto da guerra — ao lobrigarem, de longe, a azáfama que movimentava de novo a paragem a que se haviam aquerenciado, o rancho tranquilo onde tinham sofrido a primeira ferra, para lá abalavam velozmente. Vinham urrando, numa alegria ruidosa e forte. Buscavam o vaqueiro amigo que os campeara outrora e iria, de novo ao som das cantigas conhecidas ou ao toar tristonho do aboiado, levá-lo às soltas prediletas, aos logradouros fartos e às aguadas frescas.

Irrompiam, troteando, no terreiro…

E tinham recepção cruel. A turba faminta circulava-os em tumulto numa assonância de gritos discordantes. Estrondavam as espingardas. Avivados todos os corpos combalidos, arremetiam em monteria doida com os animais surpresos e refluindo logo, estonteadamente, embolados, para a trama do matagal bravio. Depois de se afadigarem em correrias exaustivas, irritando nos espinhos as chagas recém-abertas e agravando a febre, matavam afinal um, dois, três bois no máximo, em tiroteios vivos, que lembravam combates. Carneavam. E quedavam-se, após esses incidentes providenciais, fartos, quase felizes pelo contraste da própria penúria, aguardando o amanhecer para reatarem o êxodo…

Então, naquela quietude breve, salteava-os uma ideia empolgante — um assalto dos jagunços! Viam-se inermes, depauperados, andrajosos e repulsivos quase, lívidos de fome, varridos para o deserto como trambolhos inúteis — e tinham temores infantis. O adversário, que se afoitara com as brigadas aguerridas e levara os assomos cegos ao ponto de ferrar canhões a pulso, trucidá-los-ia em minutos. E a noite descia cheia de ameças…

Valentes endurados no regime bruto das batalhas tinham sobressaltos de pavor ante as coisas mais vulgares e velavam, cautos, a despeito das fadigas, armando os ouvidos aos rumores vagos e longínquos das chapadas.

Torturavam-nos alucinações cruéis. A deiscência das vagens das caatingueiras, abrindo-se com estalidos secos e fortes, soava-lhes feito percussão de gatilhos ou estalos de espoletas, dando a ilusão de súbitas descargas de alguma algara noturna repentina; e as grinaldas fosforescentes das cunanãs irradiavam, ao longe, esbatidas nas sombras, como restos de fogueiras, em torno às quais velassem, em silêncio, expectantes, tocaias inumerosas…

A manhã libertava-os. Deixavam a paragem assombradora. Lá ficavam, porém, às vezes, rigidamente quietos, pelos cantos, os companheiros que a morte libertara. Não os enterravam. Escasseava o tempo. O chão duro, de grés, despedaçaria os alviões, opondo-lhes consistência de pedra. Alguns, depois dos primeiros passos, fraqueavam de vez. Deixavam-se ficar exaustos, pelas curvas do caminho. Ninguém lhes dava pela falta. Desapareciam, eternamente esquecidos, agonizando no absoluto abandono. Morriam. E dias, semanas e meses sucessivos, os viandantes, passando, viam-nos na mesma postura: estendidos à sombra mosqueda de brilhos das ramagens secas, o braço direito arqueando-se à fronte, como se a resguardasse do sol, com a aparência exata de combatentes fatigados, descansando. Não se decompunham. A atmosfera ressequida e ardente conservava-lhes os corpos. Murchavam apenas, refegando a pele, e permaneciam longo tempo à margem dos caminhos — múmias aterradoras revestidas de fardas andrajosas…

Por fim, não impressionavam. Quem se aventura nos estios quentes à travessia dos sertões do Norte afeiçoa-se a quadros singulares. A terra, despindo-se de toda a umidade — numa intercadência de dias adustivos e noites quase frias — ao derivar para o ciclo das secas parece cair em vida latente, imobilizando apenas, sem o decompor, os seres que sobre elas vivem. Realiza, em alta escala, o fato fisiológico de uma existência virtual, imperceptível e surda — energias encadeadas, adormecidas apenas, prestes a rebentarem todas, de chofre, à volta das condições exteriores favoráveis, originando ressurreições improvisas e surpreendedoras. E como as árvores recrestadas e nuas que, à vinda das primeiras chuvas, se cobrem, exuberando seiva, de flores, sem esperar pelas folhas, transmudando em poucos dias aqueles desertos em prados — as aves que tombam mortas dos ares estagnados, a fauna resistente das caatingas que se aniquila, e o homem que sucumbe à insolação fulminante, parecem, jazendo largo tempo intactos, sem que os vermes lhes alterem os tecidos, esperar também pela volta das quadras benfazejas. Por ali ficam, patenteando, por vezes, singulares aparências de vida: as suçuaranas — que não puderam vingar, demandando outras paragens, o círculo incandescente das secas — contorcidas, garras fincadas no chão, como em saltos paralisados; e — à beira das cacimbas extintas — o pescoço alongado, procurando um líquido que não existe, os magros bois, mortos há três meses ou mais, caídos sobre as pernas ressequidas, agrupando-se em manadas imóveis…

Os primeiros aguaceiros varrem, de pronto, esses espantalhos sinistros. A decomposição é, então, vertiginosa, como se os devorassem flamas vorazes. É a sucção formidável da terra, arrebatando-lhes, ávida, todos os princípios elementares, para a revivescência triunfal da flora.

Os foragidos avançavam considerando, de relance, aqueles cenários lúgubres. Empolgara-os de todo o pensamento exclusivo do abandono, no menor tempo possível, do sertão maninho e bruto. O terror e a imagem da própria miséria venciam, por fim, a sobrecarga muscular das caminhadas feitas. Galvanizavam-nos; lançavam-nos desesperadamente pela estrada desmedida em fora…

Seguiam sem que entre eles se rastreassem breves laivos sequer de organização militar. Tendo, na maior parte, por adaptação, copiado os hábitos do sertanejo, nem os distinguia o uniforme desbotado e em tiras. E calçando alpercatas duras; vestindo camisas de algodão; sem bonés ou barretinas, cobertos de chapéus de couro, figuravam famílias de retirantes demandando em atropelo o litoral, fustigados pela seca.

Algumas mulheres, amantes de soldados, vivandeiras-bruxas, de rosto escaveirado e envelhecido, completavam a ilusão.

Oficiais ilustres, o general Savaget, os coronéis Teles e Nery e outros, volvendo feridos ou enfermos, passavam pelo meio desses bandos envoltos numa indiferença doentia. Não recebiam continência. Eram companheiros menos infelizes, nada mais. Passavam, desapareciam céleres, adiante, levantando ondas de pó. E recebiam pelas costas olhares ameaçadores, em que afuzilavam mal sopitados desapontamentos dos que lhes invejavam os cavalos ligeiros.

Os mais ditosos alcançavam por fim, depois de quatro dias de marcha, na trifurcação das estradas do Rosário, Monte Santo e Calumbi, o sítio de Juá, outra casinha de taipas no recosto de uma lomba, pela qual descai o terreno sombreado de juazeiros altos, tendo na frente os sem-fins das chapadas. Julgavam-se salvos. Mais um dia de jornada levava-os ao Caldeirão Grande, a melhor fazenda daqueles lugares, vivenda quase senhoril, ereta sobre um cerro largo, tendo ao sopé as águas de um riacho represadas em açude farto. Aí num raio de poucos quilômetros a natureza é outra. Transfigura-se, movimentando-se em serranias pequenas orladas de vegetação mais viva, e os caminhantes forravam-se, durante algumas horas, à obsessão acabrunhadora dos plainos estéreis e das serras devastadas.

Estavam à entrada do que se chamava — “a base de operações” da campanha.

Ao outro dia prosseguiam para Monte Santo. E, depois de duas horas de caminho, reanimava-os o aspecto da pequena vila, percebida à distância de uma légua. Repontava ridente no ondear dos tabuleiros amplos — casinhas reunidas derramando-se por um socalco suavemente inclinado às plantas da montanha abrupta, em cujo vértice a capela branca, arremessada na altura, destacando-se nítida, a projetar-se no firmamento azul, parecia enviar-lhes, de longe, um aceno carinhoso e amigo.

Ao alcançarem-na, porém, volviam as desesperanças. Era ainda o deserto. O vilarejo morto, vazio, desprovido de tudo, mal os abrigava por um dia. Havia-o deixado a população, caindo na caatinga, consoante o dizer dos matutos, fugindo, amedrontada, por igual do jagunço e do soldado. Uma guarnição exígua tomara conta da praça humílima e lá atravessava, inútil, os dias, numa mandria mais insuportável que as marchas e as batalhas. Fantasiara-se em casarão acaçapado e escuro um hospital militar. Mas este era o pavor e a condenação suprema de todos os feridos e doentes. De sorte que o vilarejo, com as suas vielas tortas, condecoradas de nomes sonoros — rua Moreira César! rua Capitão Salomão! — era uma agravante na região ingrata; era o deserto metido entre paredes e afogado na trama de alguns becos imundos, cheios de detritos e da farragem repugnante dos batalhões que ali tinham acampado, mais deplorável que o deserto franco purificado pelos sóis e varrido pelos ventos.

Os caminhantes ao chegarem, fugindo à parceria incômoda dos morcegos nas casas em abandono, acampavam na única praça quadrangular e grande, disputando a sombra do velho tamarineiro, ao lado do barracão da feira. No outro dia, cedo, cada um por sua conta, largava para Queimadas, renovando a travessia. Eram mais dezesseis léguas extenuantes, mais seis ou oito dias de amarguras, sob o cautério dos mormaços crestadores, adstritos a escalas inevitáveis à borda das cacimbas, por Quirinquinquá — duas vivendas tristes, circuitadas de mandacarus silentes, erectas sobre larga bossa de granito exposto; pelo Cansanção, lugarejo minúsculo — uma dúzia de casas cingidas de ipueiras —, pela Serra Branca, lembrando uma rancharia de tropeiros, de aspecto festivo, ensombrada de ouricurizeiros apendoados; pelo Jacurici; por todas as lagoas de águas esverdinhadas e suspeitas…

Depredações e incêndios

E aquele caminho, então povoado, ermou-se. Os bandos revoltos rompiam-no espalhando estragos, como se foram restos de uma caravana de bárbaros claudicantes. Doentes e feridos, em magotes ameaçadores, de onde transudavam alaridos, imprecações e frases arrepiadoras de angústias e revoltas irrefreáveis, abeiravam-se das choupanas, apelando para a hospitalidade incondicional dos tabaréus. Fizeram a princípio pedidos coléricos, mais irritantes que intimações. Depois o assalto franco. Repruía-lhes o ânimo, escandalizando-lhes a vida tormentosa, o quadro tranquilo daqueles lares pobres, onde deriva, quieta, a existência dos matutos. E varejavam-nos — impulsivamente, numa irreprimível hipnose de destruição — fazendo saltar as portas a coices d’armas, enquanto a família sertaneja, apavorada, fugia para os recessos das macegas. Depois — era preciso uma diversão qualquer estupidamente dramática que lhes distraísse um momento as agonias fundas! — tomando de tições em fogo chegavam-nos aos colmos de sapê. Irrompiam as flamas, num deflagrar instantâneo. Passavam os haustos rijos do nordeste e esparziam as fagulhas pela caatinga seca. Em breve, céleres arrebatadas pelo vento, enoveladas em rolos de fumo cindidos de labaredas, rolando pelas quebradas e transpondo-as, circulando todas as encostas, avassalando o topo dos morros, repentinamente acesos num relampaguear de crateras súbitas, crepitavam as queimadas, inextinguíveis, derramando-se por muitas léguas em roda.

Os foragidos, já agora salvos, suportavam os últimos transes do êxodo penosíssimo requintando nas tropelias, ampliando o círculo de ruínas da guerra e iam-se de abalada para o litoral — ao mesmo tempo miserandos e maus, inspirando a piedade e o ódio — rudemente vitimados, brutalmente vitimando. Chegavam a Queimadas esparsos e exaustos, alguns quase moribundos. Atulhavam os trens da estrada de ferro e desciam para a Bahia.

Primeiras notícias certas

Aguardava-os uma curiosidade ansiosa.

Iam chegar, afinal, as primeiras vítimas da luta que empolgara a atenção do país inteiro. A multidão desbordando da estação terminal da linha férrea, na Calçada, derramando-se pelas ruas próximas até ao forte de Jequitaia, contemplava diariamente a passagem do heroísmo infeliz. E nunca lhe imaginou aspectos tão dramáticos.

Sacudiam-na frêmitos de emoções nunca sentidas.

Os feridos chegavam em estado miserando. Prolongavam pelas ruas da cidade aquela onda repulsiva de trapos e carcaças, que vinham rolando pelas veredas sertanejas o refluxo repugnante da campanha.

Era um desfilar cruel. Oficiais e soldados, uniformizados pela miséria, vinham indistintos, revestidos do mesmo fardamento inclassificável: calças em fiapos, mal os reguardando como tangas; camisas estraçoadas; farrapos de dólmãs sobre os ombros; farrapos de capotes, em tiras, escorridos pelos torsos desfibrados, dando ao conjunto um traço de miséria trágica. Coxeando, arrastando-se penosamente, em cambaleios, titubeantes e imprestáveis, traziam no escavado das faces e na atitude dobrada um traço comovente da campanha. Esta desvendava pela primeira vez sua feição real, naqueles corpos combalidos, varados de balas e de espinhos, retalhados de golpes. E chegavam às centenas todos os dias: a 6 de agosto, 216 praças e 26 oficiais; a 8, 150; a 11, 400; a 12, 260; a 14, 270; a 18, 53; e assim por diante.

A população da capital recebia-os comovida. Como sempre sucede, o sentimento coletivo ampliara as impressões individuais. O grande número de pessoas, identificadas pela mesma comoção, fez-se o expoente do sentir de cada um e, vibrando uníssonas todas as almas, presas do mesmo contágio, e sugestionadas pelas mesmas imagens, todas as individualidades se apagaram no anonimato nobilitador da multidão piedosa que bem poucas vezes apareceu tão digna na História. A vasta cidade fez-se um grande lar. Organizaram-se em toda a linha comissões patrióticas, para agenciar donativos, que espontaneamente surgiram numerosos, constantes. No Arsenal de Guerra, na Faculdade Médica, nos hospitais, nos próprios conventos, se improvisaram enfermarias. Em cada uma dessas os gloriosos mutilados foram postos sob o patrocínio de algum nome ilustre: Esmarch, Claude Bernard, Duplay, Pasteur, jamais tiveram tão bela consagração no futuro.

Avantajando-se à ação do governo, o povo constituíra-se tutor natural dos enfermos, amparando-os incondicionalmente, abrindo-lhes os lares, rodeando-os, animando-os, auxiliando-lhes os passos trôpegos nas ruas. Nos dias facultados às visitas, invadia os hospitais, em massa, em silêncio — religiosamente. Abeiravam-se então os visitantes dos leitos como se neles jazessem velhos conhecidos; tratavam com os doentes menos graves sobre as provações sofridas e lances arriscados ocorridos; e, ao deixarem aquelas trágicas exposições da guerra feitas de traumatismos e moléstias horríveis, levavam, afinal, um juízo claro sobre a luta mais brutal dos nossos tempos. Mas, por um contraste inexplicável, sobre esta comiseração profunda e geral pairava, intenso, um entusiasmo vibrante. Os mártires tinham ovações de triunfadores. E estas despontavam ao acaso, sem combinações prévias, rápidas, espontâneas, incisivas, aparecendo e
desaparecendo em quartos de hora, num desencadear intermitente de movimentos impulsivos. Os dias sucediam-se agitados numa larga movimentação de multidões ruidosas, turbilhonando nas ruas e nas praças, no meio de expansões discordes, numa alacridade singular rorejada de prantos, por meio da qual se fazia a comemoração sombria do heroísmo. Os feridos eram uma revelação dolorosíssima, certo, mas de algum modo alentadora. Naquelas sevícias retratava-se a energia de uma raça. Aqueles homens que chegavam dilacerados pelas garras do jagunço e pelos espinhos da terra eram o vigor de um povo posto à prova do ferro, à prova do fogo e à prova da fome. Abaladas pelo cataclismo da guerra, as camadas superficiais de uma nacionalidade cindiam-se, pondo à luz os seus elementos profundos naqueles titãs resignados e estoicos. Sobre tudo isto um pensamento diverso, não boquejado sequer mas por igual dominador, latente em todos os espíritos: a admiração pela ousadia dos sertanejos incultos, homens da mesma raça, de encontro aos quais se despedaçavam daquele modo batalhões inteiros…

E um longo frêmito tonificador vibrava nas almas. Faziam-se romarias ao quartel da Palma, onde estava ferido o coronel Carlos Teles; à Jequitaia, onde convalescia o general Savaget; e quando este último pode arriscar alguns passos nas ruas, paralisou-se inteiramente toda a azáfama comercial da Cidade Baixa, em ovação espontânea e imensa, que, irradiando de repente e congregando a população em torno do heroico chefe da 2ª coluna, transmudou um dia comum de trabalho em dia de festa nacional.

Baixas

Sobre esta agitação chegavam diuturnamente pormenores que a acirravam. Sabia-se, por fim, positivamente, com rigor aritmético, a extensão do desastre. Era surpreendente.

De 25 de junho, em que trocara os primeiros tiros com o inimigo, até 10 de agosto, tivera a expedição 2.049 baixas.

Detalhavam-nas os mapas oficiais.

No total entrava a 1ª coluna com 1.171 homens e a 2ª com 878. Discriminadamente eram estes os algarismos:

1ª coluna — Artilharia: 9 oficiais e 47 praças feridas; 2 oficiais e 12 praças mortas; Ala de Cavalaria: 4 oficiais e 46 praças feridas; 30 oficiais e 16 praças mortas; engenheiros: 1 oficial e 8 praças feridas; 1 praça morta; Corpos de Polícia: 8 oficiais e 46 praças feridas; 8 oficiais e 24 praças mortas; 5º Batalhão de Infantaria: 4 oficiais e 66 praças feridas; 1 oficial e 25 praças mortas; 7º: 8 oficiais e 95 praças feridas; 5 oficiais e 52 praças mortas; 9º: 6 oficiais e 59 praças feridas; 2 oficiais e 22 praças mortas; 14º: 8 oficiais e 119 praças feridas; 5 oficiais e 42 praças mortas; 15º: 5 oficiais e 30 praças feridas; 10 praças mortas; 16º: 5 oficiais e 24 praças feridas; 10 praças mortas; 25º: 9 oficiais e 134 praças feridas; 3 oficiais e 55 praças mortas; 27º: 6 oficiais e 45 praças feridas; 24 praças mortas; 30º: 10 oficiais e 120 praças feridas; 4 oficiais e 35 praças mortas.
2ª coluna — 1 general ferido; Artilharia: 1 oficial morto; 12º de Infantaria: 6 oficiais e 128 praças feridas; 1 oficial e 50 praças mortas; 26º: 6 oficiais e 36 praças feridas; 2 oficiais e 22 praças mortas; 31º: 7 oficiais e 99 praças feridas; 4 oficiais e 48 praças mortas; 32º: 6 oficiais e 62 praças feridas; 4 oficiais e 31 praças mortas; 32º: 10 oficiais e 65 praças feridas; 1 oficial e 15 praças mortas; 34º: 4 oficiais e 18 praças feridas; 7 praças mortas; 35º: 4 oficiais e 91 praças feridas; 1 oficial e 22 praças mortas; 40º: 9 oficiais e 75 praças feridas; 2 oficiais e 30 praças mortas.

E a hecatombe progredia com uma média diária de oito homens fora de combate. Por outro lado, os adversários pareciam dispor de extraordinários recursos.

Versões e lendas

Transfiguravam-nos, além disto, numa distensão exagerada, as imaginações superexcitadas. Recente mensagem do Senado Federal, onde batera também a onda da comoção geral, tendo requerido, esteada em veementes denúncias, esclarecimentos sobre o terem sido despachadas em Buenos Aires com destino aos portos de Santos e Bahia armas, que tudo delatava se destinarem aos conselheiristas, tal incidente, em que incidiam todas as fantasias, assumiu, ampliado pela nevrose comum, visos de realidade.

Completavam-no, justificando e do mesmo passo refletindo o modo de pensar das repúblicas americanas, todas as notícias transmitidas pelos seus órgãos mais sérios. O de mais peso talvez na América do Sul [ 83 ], depois de se referir aos curiosos sucessos da campanha, aditava-lhes pormenores de um simbolismo estranho e pavoroso:

Trata-se de duas missivas que, com intervalo de dois dias recebemos da Sección Buenos-Aires de la unión internacional de los amigos del imperio del Brasil comunicando-nos, por ordem da seção executiva em Nova York, que a referida União tem ainda uma reserva de não menos 15 mil homens — só no Estado da Bahia — para reforçar em caso de necessidade o exército de fanáticos; além de 100 mil em vários Estados do Norte do Brasil e mais 67 mil em certos pontos dos Estados Unidos da América do Norte, prontos a sair em qualquer momento para as costas do ex-Império, todos muito bem armados e preparados para a guerra. Também temos, ajuntam as missivas, armas dos mais modernos sistemas, munições e dinheiro em abundância.
De uma redação, caligrafia e ortografia corretas, estas enigmáticas comunicações trazem à sua frente a mesma inscrição que as subscreve, escrita com tinta que faz recordar a violácea cor dos
mortos, destacando-se as maiúsculas em vermelho, da vermelha cor do sangue.
Ante o quadro formidável de homens e armas que nos oferecem os misteriosos amigos do Império, de forma não menos misteriosa, não sabemos se pensar em uma daquelas terríveis associações que forjam nas trevas seus planos de destruição ou em alguns cavalheiros dados
à mistificação do próximo. Entretanto, pelo que possa haver no fundo de tudo isto, é que fazemos constar e acusamos recebimento das repetidas missivas.

Acreditava-se. A quarta expedição ilhara-se de todo, no território conflagrado, a pique de uma catástrofe. Diziam-no insuspeitos informes. Só do município de Itapicuru, garantia-se, haviam partido 3 mil fanáticos para Canudos, conduzidos por um padre que, aberrando dos princípios ortodoxos, lá se ia comungar das tolices abstrusas do cismático. Pela Barroca passavam centenares de quadrilheiros armados, seguindo o mesmo rumo. Citavam-se nomes de novos cabecilhas. Apelidos funambulescos, como o dos chouans: Pedro, o Invisível, José Gamo, Caco de Ouro; e outros.

Agravando estas conjeturas vinham notícias verdadeiras. Os sertanejos dispartiam pelo sertão em algaras atrevidas: atacaram o termo de Mirandela, guiados por Antônio Fogueteiro; investiram, tomaram e saquearam a Vila de Santana do Brejo; irradiavam para toda a banda.

Alargavam o âmbito da campanha, revelando mesmo lineamentos firmes de estratégia segura. Além do arraial duas novas posições de primeira ordem e defensáveis estavam guarnecidas: as vertentes caóticas do Caipã e as cordas de cerros em torno da Várzea da Ema. Desbordando de Canudos, a insurreição espraiava-se desta maneira pelos lados de um triângulo enorme, em que podiam inscrever-se 50 mil baionetas. Alastrava-se.

Os comboios que partiam de Monte Santo, ainda que reforçados, não por batalhões mas por brigadas, tinham viagem acidentada, tolhida de constantes assaltos. Atingido o Aracati, era indispensável que viessem de Canudos dois ou três batalhões a protegê-los. O sinistro trecho de estrada entre o rancho do Vigário e as Baixas, tornara-se o pavor dos mais provados valentes. Era o lugar clássico do estouro das boiadas e da dispersão dos cargueiros, espantados pelos tiroteios vivos e atropelando pelotões inteiros no recuar precípite da fuga.

E nesses recontros sucessivos, adrede feitos à pertubação das marchas, começara-se a lobrigar, por fim, uma variante do jagunço, auxiliando-o, indiretamente, com outros intuitos. Distinguiam-se entre os claros das galhadas rarefeitas, passando, céleres, no vertiginoso pervagar das guerrilhas, brilhos de botões de fardas, loivos rubros de calças carmesins…

O desertor faminto atacava os antigos companheiros.

Era um lastimável sintoma, completando com um outro caráter a campanha, cuja feição dia a dia se agravava num episodear extremado dos sucessos mais triviais.

Os soldados enfermos, em perene contato com o povo, que os conversava, tinham-se, ademais, constituído rudes cronistas dos acontecimentos e confirmavam-nos mercê da forma imaginosa por que a própria ingenuidade lhes ditava os casos, verídicos na essência, mas deformados de exageros, que narravam. Urdiam-se estranhos episódios. O jagunço começou a aparecer como um ente à parte, teratológico e monstruoso, meio homem e meio trasgo; violando as leis biológicas, no estadear resistências inconceptíveis; arrojando-se, nunca visto, intangível, sobre o adversário; deslizando, invisível, pela caatinga, como as cobras; resvalando ou tombando pelos despenhadeiros fundos, como espectro; mais leve que a espingarda que arrastava; e magro, seco, fantástico, diluindo-se
em duende, pesando menos que uma criança, tendo a pele bronzeada colada sobre os ossos, áspera como a epiderme das múmias…

A imaginação popular, daí por diante, delirava na ebriez dos casos estupendos, apontoados de fantasias.

Alguns eram rápidos, espelhando incisivamente a energia inamoldável daqueles caçadores de exércitos.

“Viva o Bom Jesus!”

Numa das refregas subsequentes ao assalto, ficara prisioneiro um
curiboca ainda moço que a todas as perguntas respondia automaticamente,
com indiferença altiva:

“Sei não!”

Perguntaram-lhe por fim como queria morrer.

“De tiro!”

“Pois há de ser a faca!” contraveio, terrivelmente, o soldado.

Assim foi. E; quando o ferro embotado lhe rangia nas cartilagens da glote, a primeira onda de sangue borbulhou, escamando, à passagem do último grito gargarejando na boca ensanguentada:

“Viva o Bom Jesus!…”

Um lance épico

Outros tinham delineamentos épicos:

No dia 1º de julho, o filho mais velho de Joaquim Macambira, rapaz de dezoito anos, abeirou-se do ardiloso cabecilha:

“Pai! quero escangalhar a matadeira!”

O astuto guerrilheiro, espécie grosseira de Imanus, acobreado e
bronco, encarou-o impassível :

“Consulta o Conselheiro — e vai.”

O valente abalou, seguido de onze companheiros dispostos.
Transpuseram o Vaza-Barris, cortado em cacimbas. Investiram com a larga encosta ondulante da Favela. Embrenharam-se, num deslizar flexuoso de cobras, pelas caatingas ralas.

Ia em meio o dia. O Sol irradiava a pino sobre a terra, jorrando sem fazer sombras, até ao fundo dos grotões mais fundos, os raios verticais e ardentes…

Naquelas paragens o meio-dia é mais silencioso e lúgubre que a meia-noite. Transverberando nas rochas expostas, refletindo nas chapadas nuas, repelido pelo solo recrestado e duro, todo o calor emitido para a terra reflui, tresdobrado, para o espaço, nas colunas ascensionais dos ares irrespiráveis e candentes. A natureza queda-se, enervada em quietude absoluta. Não sopra a viração mais leve. Não bate uma asa nos ares, cuja transparência junto ao chão se perturba em ondulações rápidas e ferventes. Repousa, estivando, a fauna das caatingas. Pendem, murchos, os ramos das árvores estonadas.

O exército descansava no alto da montanha, abatido pela canícula. Deitados a esmo pelas encostas, bonés caídos sobre o rosto para os resguardar, dormitando ou pensando nos lares distantes, as praças aproveitavam alguns momentos de tréguas, refazendo forças para a afanosa lide. Em frente, derramado sobre colinas — minúsculas casinhas em desordem, sem ruas e sem praças, acervo incoerente de casebres — aparecia Canudos, deserto e mudo, como uma tapera antiga.

Todo o exército repousava…

Nisto despontam, cautos, emergindo à ourela do matagal rasteiro e trançado, de arbúsculos em esgalhos, na clareira, no alto, onde estaciona a artilharia, doze rostos inquietos, olhares felinos, rápidos, percorrendo todos os pontos. Doze rostos apenas de homens ainda jacentes, de rastro, nos tufos das bromélias. Surgem lentamente. Ninguém os vê; ninguém os pode ver. Dão-lhes as costas com indiferença soberana vinte batalhões tranquilos.

Adiante divisam a presa cobiçada. Como um animal fantástico, prestes a um bote repentino, o canhão Whitworth, a matadeira, empina-se no reparo sólido. Volta para “Belo Monte” a boca truculenta e rugidora que tantas granadas revessou já sobre as igrejas sacrossantas. Caem-lhe sobre o dorso luzidio e negro os raios do sol, ajaezando-a de lampejos. Os fanáticos contemplam-na algum tempo. Aprumam-se depois à borda da clareira. Arrojam-se sobre o monstro. Assaltam-no; aferram-no; jugulam-no. Um traz uma alavanca rígida. Ergue-a num gesto ameaçador e rápido…

E a pancada bate, estrídula e alta, retinindo…

E um brado de alarma estala na mudez universal das coisas; multiplica-se nas quebradas; enche o espaço todo; e detona em ecos que atroando os vales, ressaltam pelos morros numa vibração triunfal e estrugidora, sacudindo num repelão violento o acampamento inteiro…

Formaram-se em acelerado as divisões. Num segundo os assaltantes se vêem num círculo de espingardas e sabres, sob uma irradiação de golpes e de tiros. Um apenas se salva — chamuscado, baleado, golpeado — correndo, saltando, rolando, impalpável entre os soldados tontos, varando redes de balas, transpondo cercas dilaceradoras de baionetas, caindo em cheio nas macegas, rompendo-as vertiginosamente e despenhando-se, livre afinal, alcandorado sobre abismos, pelos pendores abruptos da montanha…

Estes e outros casos — exagerado romancear dos mais triviais sucessos — dando à campanha um tom impressionante e lendário, abalavam a opinião pública da velha capital e por fim a de todo o país…

[ 83 ] A Nación, de Buenos Aires, 30 de julho.