É um título bizarro, convenham, mas precioso.
Por estes tempos maus de agitações infrenes, cômoda é a feição contemplativa dos que se recolhem à meia-luz da obscuridade e vêem de longe o préstito diabólico das paixões.Os brados das mazorcas, as visagens, truanescas dos conspiradores à la minute, que doidamente se agitará nos liames da própria insânia, tudo o que vibra e urge, aí embaixo, no rez-de-chaussée da política e do bom-senso, chega-lhe aos ouvidos
Como o rumor das asas de um inseto…
segundo o belo endecassílabo de não sei que poeta.
E de fato; como fixar a orientação de um princípio nesse espantoso caos que por aí tumultua assustador, de ideias que não têm vigor e de homens que não têm ideias?
Já fomos oposicionistas; já realizamos diuturnamente a tarefa inglória de Sísifo, tentando sobrepor à imensa mole monárquica o ideal republicano. Nesses bons tempos, porém, era purificadora a incandescência da luta, retemperava-se em seu fervor o aço inquebrável das convicções, e como éramos uma minoria e vivíamos isolados como as águias, criávamos em torno essa maioria subjetiva de ideias, que se deriva das páginas dos livros…
Mas, hoje? Que faz toda essa gente que por aí reage contra não sei o que e perdendo a pouco e pouco a postura magnífica dos valentes, descamba para os lugares-comuns de um gongorismo retumbante ou agita doidamente os guizos da troça, numa alegria incompreensível de bugios satisfeitos?
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Li algures, não sei em que escandalosa crônica de Paris, que Luís Veuillot — o formidável ultramontano — quando sentia-se combalir nas violentas discussões que sustentava, ao invés de revigorar-se pela meditação, dirigia-se complacentemente aos mercados da grande cidade.
Aí, sob um pretexto qualquer, levantava uma questão com as pouco parlamentares mercadoras.
A consequência era fatal e assustadora.
Sob a forma a mais pitoresca estrugiam em torno do velho panfletário as mais arrepiadoras injúrias.
Calmo e feliz — Luís Veuillot, então, abria a carteira e a lápis anotava o desenfreado vocabulário das megeras furiosas.
Pobre do adversário que estivesse nessa ocasião a braços com o inexorável obscurantista…
No outro dia — intactas — as mais grotescas hipérboles do rude argot parisiense caíam-lhe, bravias, redondamente, em cima — como argumentos únicos e supremos e esmagadores…
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Não sei que singular associação esta que tão inoportunamente projetam no curso das considerações que fazia a desairosa silhouette do grande amigo de Pio IX.
Não pretendo estabelecer um símile tão perigoso e logo no início de uma secção. Há uma grande distância da contemplação concreta de um fato à verdade que dele se deriva pela meditação indutiva e eu sou essencialmente contemplativo…
José D’Ávila
Sejamos otimistas. É um dever isto para os que envelheceram a mocidade trilhando as ásperas devezas, a abrupta e alcantilada estrada da propaganda democrática. Não vejamos, como os cronistas elegantes da oposição, um fantasma de Napoleão III no Sr. Floriano Peixoto, para fugir ao qual precisamos dum espantoso Sedan de esperanças e antigos ideais…Quando mesmo, por uma espantosa aberração mental, unicamente admitida numa hipótese ousada, o velho marechal se deslumbrasse a tal ponto pelas magias do poder — nem tudo estaria perdido: restariam inexoráveis e heróicos contra a déspota, os mesmos princípios que o sustentam.Acostumados a uma espécie singular de revoluções feitas de flores e hinos triunfais, adoráveis revoluções que se desfazem em passeatas e discursos e aonde só há uma coisa assustadora — prurido tribunício dos Desmoulins indígenas — ou os ferventes ditirambos com que se rimam depois os perigos problemáticos da jornada, acostumados a isto, o nosso sentimentalismo doentio e burguês agita-se lamentavelmente ante os atos vigorosos e inexoráveis, que traduzem sempre a marcha desassombrada de uma ideia.
E tudo isto é natural e irremediável.
Supõem por acaso, os nossos intransigentes adversários, que a marcha do sistema social faz-se como a translação dos sistemas invariáveis da mecânica, sob o impulso de leis determinadas e positivas?…
Têm a feliz ingenuidade de acreditar que sejam os artigos da Constituição — leis necessárias e fatais, quando a sociologia, apenas esboçada, não pode realizar a previsão no campo dos fenômenos que estuda?
Não acreditam certamente: antes sabem que a elucidação desse problema vai constituir a mais dura tarefa do futuro.
Demais, a história, a comparação histórica, não nos aponta o fato de um povo que não tenha — em sua organização definitiva — pago um doloroso tributo de sangue e demoradas agitações.
Foram precisos doze anos, doze anos malditos de privações e lutas, aos Estados Unidos para, amparados de um lado pela grande alma de Washington e de outro pelo gênio de Hamilton, formarem a Constituição à qual devem um século de prosperidades.
Ainda assim — à luz de um código fundamental, cujos artigos, lentamente — um a um — foram calcados sobre as necessidades que surgiram — para realizarem mais tarde, através dos horrores da secessão, a reforma abolicionista, foi preciso que ao espírito brilhante de Lincoln se aliasse o brilho da espada de Ulysses Grant.
As sociedades, como os indivíduos da vasta série animal, obedecem a uma grandiosa seleção, para o estudo da qual já se fez preciso que apareça um Darwin ou um Haeckel.
As duas leis fundamentais da adaptação e da hereditariedade atuam sobre elas numa escala maior, mais difícil de perceber-se e o progresso, resultante inevitável das ações simultâneas desses dois fatores, nem sempre, em princípio — se manifesta de modo a satisfazer a mórbida afetividade de quem quer que seja.
Presos, vinculados ainda pela hereditariedade ao passado regímen, toda essa agitação que por aí vai, toda essa luta entre o que éramos ontem e somos hoje — é a luta pela adaptação aos novos princípios, princípios que atingiremos lenta mas fatalmente…
Sejamos otimistas, pois.
Tudo o que por aí tumultua num aparente caos de agitações e revoltas é o reflexo de uma vasta diferenciação, através da qual se opera, majestosa, a seleção do caráter nacional.
A ideia republicana segue sua própria trajetória — fatal e indestrutível como a das estrelas — e bem é que lhe demarque o caminho percorrido a triste ruinaria das coisas e dos homens que não valem nada.
Dávila
Acabo de ler uma página iluminada de Spencer, em que o eminente evolucionista — como bom filósofo crente na perfectibilidade humana — vaticina uma idade de ouro, durante a qual por um mais dilatado domínio das forças naturais se satisfaçam mais facilmente as necessidades imperiosas da existência e menos assoberbada de trabalhos, tenha afinal a humanidade tempo de aformosear a vida, pela contemplação do belo na natureza e na arte.O ilustre mestre deixou-se arrebatar demais, pelas tendências profundamente humanas de seu grande espírito.O stuggle for life, a fórmula majestosa da nossa elevação constante, terá a mesma feição autoritária e fatal, embora atuando entre os deslumbramentos da mais alta civilização.
O grande domínio do homem sobre as forças naturais, a que ele se refere, é ilusório, ante o princípio geral da relatividade.
As forças ou leis descobertas criaram fatalmente a necessidade de outras e a humanidade — se tornando cada vez mais forte, para uma luta cada vez maior — realizará através dos séculos a dolorosa lenda de Ahsverus, subjugada às leis que a impulsionam, com o mesmo fatalismo das que fixam no espaço a órbita dilatada do insignificante planeta que a conduz…
Não descansará. Aproximar-se-á da época sonhada pelos filósofos como as assíntotas do ramo desmesurado das hipérboles — indefinidamente — sem nunca atingi-la.
Decorem-na embora os sábios — os incruentos batalhadores que vão através das inúmeras modalidades da existência geral, em busca da verdade — com a cintilação imperecível das leis descobertas ou com as dádivas preciosas da indústria — cada uma destas conquistas é um estimulante enérgico para outras mais ousadas e difíceis.
O mito de uma época ideal toda de paz e descanso afasta-se à proporção que adquirimos meios de atingi-lo e a moderna civilização européia por exemplo — dista tanto dele quanto a barbaria medieval.
O que se dá — assim de um modo geral, no vasto conjunto humano — evidencia-se ainda mais limpidamente, pela consideração especial de cada sociedade.
Cada uma conquista realizada tem, inevitáveis como corolários, outras, relativamente iguais e realmente mais difíceis.
Pelo que nos diz respeito ascendemos rapidamente, vertiginosamente mesmo, pela reforma social da abolição e pela transformação política da República, a toda a deslumbrante grandeza da civilização atual.
Não é para espantar, pois, a ninguém, que o Governo, por mais sólida que seja a sua vontade e correta a sua postura ante o dever — lute para debelar a crise que nos assaltou e que é no entanto tão natural como fenômeno fisiológico da vertigem, nos que atingem rapidamente as grandes altitudes.
Seria realmente adorável, mas ilógico, que a República feita num quarto de hora de audácia — fizesse de pronto a grande felicidade da pátria e não tivéssemos agora, ameaçadores e constantes partidos da sombra, os brados desses que não foram vistos ontem entre os clarões da batalha.
Todo esse acréscimo de fadigas e trabalhos, que requerem a pertinácia estóica dos crentes e dos fortes, há de entretanto ceder, embora não se extingam com ele os que impõem à República a grandeza dos seus próprios destinos.
Ainda bem que o Governo tem a impassibilidade magnífica de Glauco, ante o referver das ondas estrepitosas de ódios e velhas ambições malogradas, que vão lhe estourar aos pés.
Elas passaram afinal — inofensíveis e estéreis e os tristes cavaleiros andantes da discórdia, que se agitam por aí a braços com os moinhos de vento da tresloucada fantasia, choraram afinal sobre a niilidade dos dias sacrificados a uma agitação infecunda.
Dávila
CUNHA, Euclides da. Da Penumbra. EUCLIDESITE. Obras de Euclides da Cunha. Crônicas. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/obras-de-euclides/cronicas/. Acesso em: [data]. Reprod. CUNHA, Euclides da. Crônicas. In: Obra completa. Notas de Olímpio de Sousa Andrade. org. Paulo Roberto Pereira. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. v. 1. pp. 711-3. Originalmente publicadas em O Estado de S. Paulo, em 15, 17 e 19 de março de 1892 sob o pseudônimo José D’Ávila ou Dávila.