Dois grandes estilos

I

A leitura de um dos capítulos mais emocionantes do novo livro de Euclides da Cunha despertou-me a recordação de uma história, que ouvi da boca de um dos meus ascendentes. Acontecimento trágico, cujo teatro foi a escarpa de uma serra, nele figuram como personagem três crianças apenas, imprudentes e malignas. Não o esqueci; e vou referi-lo como mo contou meu avô materno.

Havia nas proximidades do Crato, no Ceará, em 1823, uma família de agricultores que, vivendo pobremente da cultura de cereais, não descurava da educação de dois filhos, que constituíam o seu encanto. Esses meninos frequentavam a escola régia que existia no povoado próximo e faziam diariamente um percurso de mais de meia légua, a pé, para darem as suas lições. Eram vivos, muito espertos; o mais moço, temerário, o que não deixava de trazer os pais em contínuo sobressalto; o outro, porém, tinha medo do escuro e era sempre conduzido pelo irmão.

Essa modesta gente morava na meia-encosta da serra; e não só os dois meninos como outros que residiam nessas mesmas paragens despendiam, quase sempre juntos, na viagem, muito mais tempo do que seria necessário para ida e volta. A razão era muito simples.

As ladeiras corriam entre despenhadeiros, e o caminho era, a cada passo, interrompido por veredas, abertas pelo gado, algumas das quais iam terminar em talhados e precipícios. Tanto bastara para que os rapazitos sentissem a curiosidade aguçada e buscassem todos os dias um passo mais difícil para prolongarem as suas diversões.

Um dia descobriram no termo de uma dessas correrias de cabritos um terrapleno formado por uma pedra, que, destacando-se da vegetação tufosa e luxuriante da encosta, caía a pique sobre o vale que se afundava numa grota sem saída, pelo menos aparente. Quase na vertical, porque a lapa da esplanada era saliente, quem se debruçava da aresta, olhando para baixo, sentia vertigens como se se tivesse alcandorado num balão. “Pedra Talhada” chamava o povo a este sítio; e pela escuridão verde-negra do abismo, onde se entrelaçavam cipoais emaranhados, emergindo aqui, ali, uma gameleira, um cedro, uma aroeira, era inevitável o assombro. Ao contemplá-lo o espectador sentia a pele eriçada sob a revulsão de sentimentos sinistros.

Atravessavam caracarás grasnando, o que dizia que no fundo da grota existia carcaça de bezerro morto pela fome; e o eco retumbava aos gritos do transeunte fazendo crescer a vastidão do vale.

Pois esses meninos achavam encanto indizível em tudo isto. O mais audacioso, entrando pelo mato adjacente, voltou de uma vez contando que topara magnífico divertimento; e levou os companheiros até ao encerro que descobrira e de onde uma enorme aroeira, cujas raízes, como pegões de ponte colossal, se engalfinhavam no coração da serra, abraçando pedregulhos, emergindo justamente da aresta do talhado, pendia sobre o vão da grota à maneira de um desses turcos gigantes que se vêem nos transatlânticos. Dos galhos mais rijos da árvore dependuravam-se grandes cipós, que o vento açoitava de rijo, e, volteando sobre o abismo, andavam ali a incitar o temerário balouço das crianças.

Ao descortinarem este traiçoeiro arranjo da natureza, foi unânime a exclamação. Não podia encontrar-se um melhor balanço, nem mais emocionante, nem mais apropriado a mostrar qual o medroso.

No dia seguinte, ao cair do sol, estavam todos a postos, munidos de corda e laço e de uma pedra para captarem os cipós. A manobra não lhes gastou a paciência; porque dois dos pendentes, cuja segurança verificaram, foram puxados e ligados por um pau, imitando um trampolim.

O mais moço foi o primeiro a tentar a aventura; e não saiu-se mal. Os restantes, aos poucos, se ensaiaram, a princípio com terror, depois mais confiados, de sorte que, no cabo de três dias de exercício, achavam-se todos perfeitamente familiarizados com o pavoroso divertimento sobre a morte.

A audácia foi aumentando. Já agora não era só atirarem-se ao abismo, certos de que voltariam ao ponto de partida, graças à resistência das flexíveis fibras do vegetal, firmados na lapa de onde saíam, montados no trampolim, com a respiração suspensa, olhos acesos, fisgados pela emoção que o perigo enchia de deslumbramentos; os meninos queriam chegar com o balanço a alturas impossíveis.

Em um desses exercícios o autor da brincadeira conseguiu dar ao balanço um arremessão tão violento, que a chicotada, no desengate do empuxo, levou-o até acima da horizontal. Um horror! Era chegar quase ao centro da grota.

Então os outros ouviram um brado, depois um zuut, como de um projétil que passasse, um risco no espaço, e o trampolim não voltou mais.

O primeiro movimento não se descreve. Os meninos recuaram álgidos, aterrados, sem articular palavra.

– Foi você! Disse, por fim, o irmão mais velho, verde de susto, diante do companheiro, que ajudara a dar o último movimento ao balanço rústico.

– Mas você também ajudou!

E houve uma gritaria desconexa, um alarido sem nome, em que a responsabilidade da catástrofe esmagava-os, ainda buscando empolgar o menos culpado.

Passado o primeiro soçobro, aproximaram-se da aresta da lapa para explorar o fundo da grota; mas recuaram logo como se o abismo ameaçasse por sua vez tragá-los.

Não tinham descoberto nada. A floresta embaixo fechara-se como as ondas de um mar encapelado sobre o corpo de um náufrago.

Choro convulso rompe dos sobreviventes. O irmão da vítima soluçava. De súbito um arranco de corrida. Dir-se-ia que aos infelizes meninos aparecera alguma alma do outro mundo. Esbaforidos, chegaram à vivenda dos pobres pais, que mal compreenderam a história que lhes contavam. Em casa o alarido foi infernal. Acudiram vizinhos; e cada qual que propusesse o expediente menos exequível. Por fim, um mateiro, prático e prudente, lembrou que estavam perdendo tempo, e que o mais acertado era fazerem uma batida no grotão. Arranjaram-se fachos, então, porque a noite já entrara, e desceram em busca do cadáver. As entradas do mato eram difíceis e muito lúgubre; todavia, graças aos instintos de caçador da maior parte dos expedicionários, não tardaram em encontrar o sítio onde devia ter caído a vítima. Com muito trabalho abriram o matagal à foice e penetraram no fundo da grota que ficava justamente por baixo da aroeira. Mas o cálculo estava errado, porquanto o mateiro, apesar do tino característico dessa gente, não contava com a parábola descrita pelo corpo do rapaz, que fora atirado com propulsão violentíssima. Desanimados percorreram a área inteira do vale; mas todo o esforço foi empregado inutilmente. E já se dispunham a esperar que rompesse a aurora para empreenderem uma batida mais minuciosa, quando ouviram uma voz que lhes vinha da encosta vizinha, – uma voz sumida, queixosa, quase lamurienta.

– É a voz do Chico, disse o pai, num hausto de delírio.

Os circunstantes duvidaram. E a superstição criou-lhes na alma a sensação de algum espírito transviado.

O guia, porém, homem resoluto, teve impressão contrária.

– Esperem aí, disse; e sem hesitação trepou pela escarpa em direção ao gemido que repetia.

Os companheiros estacaram. O mateiro sumiu-se na ramagem; poucos minutos decorreram; por fim apareceu em cima.

– Tragam foices e os archotes!

No ponto em que se achava o audaz explorador existia uma capoeira de mato rasteiro, inteiramente coberta de melão de S. Caetano, que um engrazado de cipós sustinha alguns metros sobre o solo.

O sertanejo teve um palpite. Gritou, chamou, tornou a chamar. Afinal ouviu-se nitidamente a voz do menino pedindo que o socorressem.

O processo foi rápido. A foice rompeu os obstáculos e em minutos alcançaram o lugar de onde partiam os gemidos.

Encontraram a suposta vítima suspensa, malferida, mas perfeitamente desperta, amparada pelo engrazado flexível de cipós, arrastado àquela altura por um cedro que as erosões da chuva tinham derreado.

Exame posterior demonstrou que das duas vergas do trampolim apenas uma se tinha desligado devido às repetidas flexões que a ressecaram. Essa circunstância determinara a variação da parábola, que em vez de descrever na seção vertical, fez-se na seção oblíqua, propelindo o corpo de modo que este encontrou logo a curva da encosta no contorno da grota caprichosa.

Posteriormente o rapazinho narrou as sensações que experimentara. A sua queda e o seu ressurgir pareceram-lhe visão.

Despertando, suspenso no matagal, incólume, pensou que talvez sonhava. As vozes dos exploradores chamaram-no então à vida. Não se apavorou. Recordou-se, estremecendo, de como se desprendera lá do alcantil, mas um pasmo inexprimível abafou-lhe o medo, e, por instantes, teve a sensação de que os braços se lhe tinham convertido em asas.

O caráter desse pequeno, entretanto, fundiu-se.

A vivacidade retraiu-se, a petulância refreou-se. Fez-se, taciturno, meditativo; e o diabrete de outrora espantava os pais pelos conceitos que emitia e pela atenção que prestava a tudo com uma curiosidade nova e perfurante.

Não se passa impune, de olhos abertos, através da morte.

A vibração nesses momentos é tão intensa, que tudo quanto é frívolo se elimina; e a alma, combusta, volta à claridade com dupla força de viver.

Euclides da Cunha, seguramente, nunca transitou, como aquela criança, pelo corredor da morte; mas é certo que atravessou uma revolução, durante a qual teve de encarar esfinges e, com o auxílio da imaginação candente que a natureza lhe deu, decifrar enigmas psicológicos de terribilidade inexprimível. Nascido para a poesia e ao mesmo tempo dotado de uma segunda vista, que lhe tornava perigoso o exercício da faculdade de observação, teve de presenciar manifestações tremendas da perversidade humana e andou mais de uma vez resvés pelos alcandores da política de Gloster. Essa passagem acrisolou-lhes os estigmas literários; os acontecimentos expungiram o seu espírito dessa vagabundagem estética, que é a sarna da literatura dos sevandijas.

Todo o calórico, que na sua juventude fazia dele um imprudente senãi um exaltado impenitente, calou na vida do artista com raro êxito; e Os Sertões, obra notável, sobre a qual tive a fortuna de ser um dos primeiros a falar, denunciando-a aos meus patrícios como uma obra surpreendente e de exuberância, tão formosa quanto profunda, canalizaram para o estilo todos os excessos de temperamento que faziam recear do futuro desse moço.

E, pois, eis-me de novo a apreciar o seu talento sob novos e diversíssimos aspectos num livro de fragmentos, no qual não sei o que mais se admire, se o estilo, se a filosofia do ensaísta, se a intuição prática do engenheiro que se dedica ao desbravamento das questões mais difíceis, que conheço, a das entradas do Brasil, caminhos, rios, povoamento, e composição de território e seu razoável aproveitamento.

II

Tem sido praxe entre nós considerar o estilo do Conselheiro rui Barbosa um estilo grandioso e impecável. A magnitude dos assuntos, a autoridade pontifical por todos reconhecida, os seus recursos oratórios, a vasta erudição que enriquece-lhe a memória, a sua familiaridade com as literaturas anglo-saxônicas, tanto poéticas como jurídicas, finalmente o seu grande aparelhamento na língua portuguesa: todos estes elementos juntos não podiam deixar de proporcionar-lhe meios de aperfeiçoar os instrumentos de expressão, de modo a torná-los aptos a produzir os efeitos de um grande estilo. Efetivamente, a frase, nos escritos desse autor, é ampla, numerosa, perfeitamente equilibrada; o período ciceroniano nunca mente ao metro; e vê-se que independente da vernaculidade esse período sente-se escandido por mestre, que não ignora nenhum dos segredos da arte de medir versos latinos. Ele começa sempre pelos tons médios; sobe gradualmente até ao máximo dos agudos; depois desce, caindo de súbito, nos graves, que seguram o efeito da proposição. Essa música é infalível; e não precisa ser arguto para descobrir as vantagens que o pensamento recebe desse recurso oratório, quanto dele dependem a clareza, a intimativa, e uma solenidade muita vez esmagadora.

O velho Quintiliano, que foi mestre nestes assuntos, e se ocupou particularmente do estilo oratório, da eloquência, dos seus segredos, no cap. XI do liv. I das Instituições Oratórias demonstra a necessidade do orador cuidar da melodia da frase; e chega a referir que o grande C. Graco nunca falava em público sem ter ao pé de si um tocador de flauta, o qual mantinha-lhe o diapasão da voz, segundo a conveniência da matéria.

Isto, porém, era a voz emitida na tribuna, a voz viva do elocutor que pode soltar o som com mais ou menos melodia em face de um auditório.

A prosa escrita e lida, porém, dir-se-á que é outra coisa. Se assim fosse então não haveria verso. Mas é o que o cérebro continua a ouvir no silêncio do gabinete; e pela contiguidade dos aparelhos ótico e auditivo, o fenômeno da métrica se reproduz tal qual se o órgão vocal estivesse em plena atividade.

Ora, se é verdade que a melodia, a necessidade do ritmo, obriga o compositor da frase, em muitos casos, a modificar até mesmo a sua sintaxe, para não perturbá-la, como Pierson modernamente o demonstrou, havemos de reconhecer também que o escritor, quando dominado por pensamento profundo, agitado por imaginação poderosa, não se subordinará a essa escravidão, a esse automatismo lírico, e, nestas condições, será o inverso que se há de dar.

Se o escritor pode dominar o instrumento da expressão, longe de se guiar pela melodia, pela harmonia, ele é que subordinará esses fenômenos à sua vontade; e então a melodia e a harmonia tomarão a forma exigida pela natureza, pela intensidade e pela variedade do pensamento.

Não sei se o estilo do Conselheiro Rui Barbosa estará isento de increpação neste particular.

Desconfio, entretanto, que a sensação de monotonia, que experimento, ao ler seguidamente discursos, artigos de polêmica, trabalhos de crítica jurídica, apreciações sobre assuntos sociais, políticos, religiosos, literários, filosóficos, ainda mesmo impressões recebidas no estrangeiro, qualquer trabalho, enfim, oriundo de sua pena adamantina não tem outra explicação.

Tudo nesse escritor subordina-se à correção da frase, à escolha dos vocábulos, à harmonia sempre solene dos períodos. Cuida-se num hieratismo estilístico, que acaba por exaurir a atenção do leitor o mais valente. A impressão geral é a de ter-se transitado por um claustro cheio de ecos vetustos, ou pelas ruas de uma cidade abandonada, onde se encontram, todavia, monumentos sem deuses, palácios desabitados, sepulcros sem defuntos.

De onde procederá essa pobreza de vida no centro de riquezas tão profusas? Riquezas mortas! Vidas empalhadas!

Receio que a minha psicologia esteja errada; em todo o caso examinemos o livro, no qual o autor de tantos e tão variados escritos, livre de outros cuidados, que não fossem literários, ainda mais excitado pela situação de emigrado, que em todos os tempos foi estímulo para alvorecer estilos, comunicando fogo à expressão, preparou-se para lançar o dardo da frase ferindo de Londres a imaginação dos conterrâneos, ansiosos da sua palavra sempre escandida, sempre tersa, sempre percuciente.

Esse livro compõe-se de assuntos diversos, tanto no fundo, como na espécie. É um livro de ensaios, no qual se encontram apreciações sobre o processo do Capitão Dreyfus, sobre as bases da fé, um estudo sobre a guerra chino-japonesa, os perfis dos ditadores Francia e Rosa, um artigo sobre o regime federal, e a resposta ao Sr. A. Celso explicando o que se tem chamado a sua conversão religiosa.

Esses assuntos são todos antagônicos; portanto, pediriam notações musicais diversas e vibrações opostas.

Leiamos, porém, o trecho sobre a iniquidade praticada pela França contra um dos seu mais humildes filhos. A matéria do artigo é eminentemente dramática. Há nesse caso cenas para invocar a extrema piedade dos povos; lances próprios para o epigrama; brutalidades que pediam o látego de Juvenal. O autor do artigo, não obstante tudo isso, preferiu o gênero demonstrativo; e fez um requisitório contra a Justiça daquele país, belo, é verdade, cheio de conceitos e aparelhado das provas morais e até dos depoimentos da imprensa, que transcreve, e a todos deixa convencidos do horror daquele crime. O advogado, entretanto, o promotor da justiça humana, não deixou fonte de onde emergisse a piedade na sua forma lírica, ou propriamente na dramática, a emoção enfim que o período comportava.

Comparado esse libelo com o J’accuse de Zola, verifica-se quanto o sobreexcede em lavores; mas a vibração do estilo do francês cava no nosso espírito impressão mais violenta. É que Zola jogava com os recursos de uma poderosa imaginação.

Escolhamos, todavia, do artigo a que me refiro o seu trecho mais eloquente:

O povo soberano, os partidos e governos, entre as nações sem disciplina jurídica, estão sempre inclinados a reagir contra as instituições que se não dobram aos impulsos das maiorias e às exigências das ditaduras. A lei foi instituída exatamente para resistir a esses dois perigos, como um ponto de estabilidade superior aos caprichos e às flutuações da onda humana. Os magistrados foram postos especialmente para assegurar à lei um domínio tanto mais estrito, quanto mais extraordinárias forem as situações, mais formidáveis a soma de interesses e a força do poder alistados contra ela.

I

A leitura de um dos capítulos mais emocionantes do novo livro de Euclides da Cunha despertou-me a recordação de uma história, que ouvi da boca de um dos meus ascendentes. Acontecimento trágico, cujo teatro foi a escarpa de uma serra, nele figuram como personagem três crianças apenas, imprudentes e malignas. Não o esqueci; e vou referi-lo como mo contou meu avô materno.

Havia nas proximidades do Crato, no Ceará, em 1823, uma família de agricultores que, vivendo pobremente da cultura de cereais, não descurava da educação de dois filhos, que constituíam o seu encanto. Esses meninos frequentavam a escola régia que existia no povoado próximo e faziam diariamente um percurso de mais de meia légua, a pé, para darem as suas lições. Eram vivos, muito espertos; o mais moço, temerário, o que não deixava de trazer os pais em contínuo sobressalto; o outro, porém, tinha medo do escuro e era sempre conduzido pelo irmão.

Essa modesta gente morava na meia-encosta da serra; e não só os dois meninos como outros que residiam nessas mesmas paragens despendiam, quase sempre juntos, na viagem, muito mais tempo do que seria necessário para ida e volta. A razão era muito simples.

As ladeiras corriam entre despenhadeiros, e o caminho era, a cada passo, interrompido por veredas, abertas pelo gado, algumas das quais iam terminar em talhados e precipícios. Tanto bastara para que os rapazitos sentissem a curiosidade aguçada e buscassem todos os dias um passo mais difícil para prolongarem as suas diversões.

Um dia descobriram no termo de uma dessas correrias de cabritos um terrapleno formado por uma pedra, que, destacando-se da vegetação tufosa e luxuriante da encosta, caía a pique sobre o vale que se afundava numa grota sem saída, pelo menos aparente. Quase na vertical, porque a lapa da esplanada era saliente, quem se debruçava da aresta, olhando para baixo, sentia vertigens como se se tivesse alcandorado num balão. “Pedra Talhada” chamava o povo a este sítio; e pela escuridão verde-negra do abismo, onde se entrelaçavam cipoais emaranhados, emergindo aqui, ali, uma gameleira, um cedro, uma aroeira, era inevitável o assombro. Ao contemplá-lo o espectador sentia a pele eriçada sob a revulsão de sentimentos sinistros.

Atravessavam caracarás grasnando, o que dizia que no fundo da grota existia carcaça de bezerro morto pela fome; e o eco retumbava aos gritos do transeunte fazendo crescer a vastidão do vale.

Pois esses meninos achavam encanto indizível em tudo isto. O mais audacioso, entrando pelo mato adjacente, voltou de uma vez contando que topara magnífico divertimento; e levou os companheiros até ao encerro que descobrira e de onde uma enorme aroeira, cujas raízes, como pegões de ponte colossal, se engalfinhavam no coração da serra, abraçando pedregulhos, emergindo justamente da aresta do talhado, pendia sobre o vão da grota à maneira de um desses turcos gigantes que se vêem nos transatlânticos. Dos galhos mais rijos da árvore dependuravam-se grandes cipós, que o vento açoitava de rijo, e, volteando sobre o abismo, andavam ali a incitar o temerário balouço das crianças.

Ao descortinarem este traiçoeiro arranjo da natureza, foi unânime a exclamação. Não podia encontrar-se um melhor balanço, nem mais emocionante, nem mais apropriado a mostrar qual o medroso.

No dia seguinte, ao cair do sol, estavam todos a postos, munidos de corda e laço e de uma pedra para captarem os cipós. A manobra não lhes gastou a paciência; porque dois dos pendentes, cuja segurança verificaram, foram puxados e ligados por um pau, imitando um trampolim.

O mais moço foi o primeiro a tentar a aventura; e não saiu-se mal. Os restantes, aos poucos, se ensaiaram, a princípio com terror, depois mais confiados, de sorte que, no cabo de três dias de exercício, achavam-se todos perfeitamente familiarizados com o pavoroso divertimento sobre a morte.

A audácia foi aumentando. Já agora não era só atirarem-se ao abismo, certos de que voltariam ao ponto de partida, graças à resistência das flexíveis fibras do vegetal, firmados na lapa de onde saíam, montados no trampolim, com a respiração suspensa, olhos acesos, fisgados pela emoção que o perigo enchia de deslumbramentos; os meninos queriam chegar com o balanço a alturas impossíveis.

Em um desses exercícios o autor da brincadeira conseguiu dar ao balanço um arremessão tão violento, que a chicotada, no desengate do empuxo, levou-o até acima da horizontal. Um horror! Era chegar quase ao centro da grota.

Então os outros ouviram um brado, depois um zuut, como de um projétil que passasse, um risco no espaço, e o trampolim não voltou mais.

O primeiro movimento não se descreve. Os meninos recuaram álgidos, aterrados, sem articular palavra.

– Foi você! Disse, por fim, o irmão mais velho, verde de susto, diante do companheiro, que ajudara a dar o último movimento ao balanço rústico.

– Mas você também ajudou!

E houve uma gritaria desconexa, um alarido sem nome, em que a responsabilidade da catástrofe esmagava-os, ainda buscando empolgar o menos culpado.

Passado o primeiro soçobro, aproximaram-se da aresta da lapa para explorar o fundo da grota; mas recuaram logo como se o abismo ameaçasse por sua vez tragá-los.

Não tinham descoberto nada. A floresta embaixo fechara-se como as ondas de um mar encapelado sobre o corpo de um náufrago.

Choro convulso rompe dos sobreviventes. O irmão da vítima soluçava. De súbito um arranco de corrida. Dir-se-ia que aos infelizes meninos aparecera alguma alma do outro mundo. Esbaforidos, chegaram à vivenda dos pobres pais, que mal compreenderam a história que lhes contavam. Em casa o alarido foi infernal. Acudiram vizinhos; e cada qual que propusesse o expediente menos exequível. Por fim, um mateiro, prático e prudente, lembrou que estavam perdendo tempo, e que o mais acertado era fazerem uma batida no grotão. Arranjaram-se fachos, então, porque a noite já entrara, e desceram em busca do cadáver. As entradas do mato eram difíceis e muito lúgubre; todavia, graças aos instintos de caçador da maior parte dos expedicionários, não tardaram em encontrar o sítio onde devia ter caído a vítima. Com muito trabalho abriram o matagal à foice e penetraram no fundo da grota que ficava justamente por baixo da aroeira. Mas o cálculo estava errado, porquanto o mateiro, apesar do tino característico dessa gente, não contava com a parábola descrita pelo corpo do rapaz, que fora atirado com propulsão violentíssima. Desanimados percorreram a área inteira do vale; mas todo o esforço foi empregado inutilmente. E já se dispunham a esperar que rompesse a aurora para empreenderem uma batida mais minuciosa, quando ouviram uma voz que lhes vinha da encosta vizinha, – uma voz sumida, queixosa, quase lamurienta.

– É a voz do Chico, disse o pai, num hausto de delírio.

Os circunstantes duvidaram. E a superstição criou-lhes na alma a sensação de algum espírito transviado.

O guia, porém, homem resoluto, teve impressão contrária.

– Esperem aí, disse; e sem hesitação trepou pela escarpa em direção ao gemido que repetia.

Os companheiros estacaram. O mateiro sumiu-se na ramagem; poucos minutos decorreram; por fim apareceu em cima.

– Tragam foices e os archotes!

No ponto em que se achava o audaz explorador existia uma capoeira de mato rasteiro, inteiramente coberta de melão de S. Caetano, que um engrazado de cipós sustinha alguns metros sobre o solo.

O sertanejo teve um palpite. Gritou, chamou, tornou a chamar. Afinal ouviu-se nitidamente a voz do menino pedindo que o socorressem.

O processo foi rápido. A foice rompeu os obstáculos e em minutos alcançaram o lugar de onde partiam os gemidos.

Encontraram a suposta vítima suspensa, malferida, mas perfeitamente desperta, amparada pelo engrazado flexível de cipós, arrastado àquela altura por um cedro que as erosões da chuva tinham derreado.

Exame posterior demonstrou que das duas vergas do trampolim apenas uma se tinha desligado devido às repetidas flexões que a ressecaram. Essa circunstância determinara a variação da parábola, que em vez de descrever na seção vertical, fez-se na seção oblíqua, propelindo o corpo de modo que este encontrou logo a curva da encosta no contorno da grota caprichosa.

Posteriormente o rapazinho narrou as sensações que experimentara. A sua queda e o seu ressurgir pareceram-lhe visão.

Despertando, suspenso no matagal, incólume, pensou que talvez sonhava. As vozes dos exploradores chamaram-no então à vida. Não se apavorou. Recordou-se, estremecendo, de como se desprendera lá do alcantil, mas um pasmo inexprimível abafou-lhe o medo, e, por instantes, teve a sensação de que os braços se lhe tinham convertido em asas.

O caráter desse pequeno, entretanto, fundiu-se.

A vivacidade retraiu-se, a petulância refreou-se. Fez-se, taciturno, meditativo; e o diabrete de outrora espantava os pais pelos conceitos que emitia e pela atenção que prestava a tudo com uma curiosidade nova e perfurante.

Não se passa impune, de olhos abertos, através da morte.

A vibração nesses momentos é tão intensa, que tudo quanto é frívolo se elimina; e a alma, combusta, volta à claridade com dupla força de viver.

Euclides da Cunha, seguramente, nunca transitou, como aquela criança, pelo corredor da morte; mas é certo que atravessou uma revolução, durante a qual teve de encarar esfinges e, com o auxílio da imaginação candente que a natureza lhe deu, decifrar enigmas psicológicos de terribilidade inexprimível. Nascido para a poesia e ao mesmo tempo dotado de uma segunda vista, que lhe tornava perigoso o exercício da faculdade de observação, teve de presenciar manifestações tremendas da perversidade humana e andou mais de uma vez resvés pelos alcandores da política de Gloster. Essa passagem acrisolou-lhes os estigmas literários; os acontecimentos expungiram o seu espírito dessa vagabundagem estética, que é a sarna da literatura dos sevandijas.

Todo o calórico, que na sua juventude fazia dele um imprudente senãi um exaltado impenitente, calou na vida do artista com raro êxito; e Os Sertões, obra notável, sobre a qual tive a fortuna de ser um dos primeiros a falar, denunciando-a aos meus patrícios como uma obra surpreendente e de exuberância, tão formosa quanto profunda, canalizaram para o estilo todos os excessos de temperamento que faziam recear do futuro desse moço.

E, pois, eis-me de novo a apreciar o seu talento sob novos e diversíssimos aspectos num livro de fragmentos, no qual não sei o que mais se admire, se o estilo, se a filosofia do ensaísta, se a intuição prática do engenheiro que se dedica ao desbravamento das questões mais difíceis, que conheço, a das entradas do Brasil, caminhos, rios, povoamento, e composição de território e seu razoável aproveitamento.

II

Tem sido praxe entre nós considerar o estilo do Conselheiro rui Barbosa um estilo grandioso e impecável. A magnitude dos assuntos, a autoridade pontifical por todos reconhecida, os seus recursos oratórios, a vasta erudição que enriquece-lhe a memória, a sua familiaridade com as literaturas anglo-saxônicas, tanto poéticas como jurídicas, finalmente o seu grande aparelhamento na língua portuguesa: todos estes elementos juntos não podiam deixar de proporcionar-lhe meios de aperfeiçoar os instrumentos de expressão, de modo a torná-los aptos a produzir os efeitos de um grande estilo. Efetivamente, a frase, nos escritos desse autor, é ampla, numerosa, perfeitamente equilibrada; o período ciceroniano nunca mente ao metro; e vê-se que independente da vernaculidade esse período sente-se escandido por mestre, que não ignora nenhum dos segredos da arte de medir versos latinos. Ele começa sempre pelos tons médios; sobe gradualmente até ao máximo dos agudos; depois desce, caindo de súbito, nos graves, que seguram o efeito da proposição. Essa música é infalível; e não precisa ser arguto para descobrir as vantagens que o pensamento recebe desse recurso oratório, quanto dele dependem a clareza, a intimativa, e uma solenidade muita vez esmagadora.

O velho Quintiliano, que foi mestre nestes assuntos, e se ocupou particularmente do estilo oratório, da eloquência, dos seus segredos, no cap. XI do liv. I das Instituições Oratórias demonstra a necessidade do orador cuidar da melodia da frase; e chega a referir que o grande C. Graco nunca falava em público sem ter ao pé de si um tocador de flauta, o qual mantinha-lhe o diapasão da voz, segundo a conveniência da matéria.

Isto, porém, era a voz emitida na tribuna, a voz viva do elocutor que pode soltar o som com mais ou menos melodia em face de um auditório.

A prosa escrita e lida, porém, dir-se-á que é outra coisa. Se assim fosse então não haveria verso. Mas é o que o cérebro continua a ouvir no silêncio do gabinete; e pela contiguidade dos aparelhos ótico e auditivo, o fenômeno da métrica se reproduz tal qual se o órgão vocal estivesse em plena atividade.

Ora, se é verdade que a melodia, a necessidade do ritmo, obriga o compositor da frase, em muitos casos, a modificar até mesmo a sua sintaxe, para não perturbá-la, como Pierson modernamente o demonstrou, havemos de reconhecer também que o escritor, quando dominado por pensamento profundo, agitado por imaginação poderosa, não se subordinará a essa escravidão, a esse automatismo lírico, e, nestas condições, será o inverso que se há de dar.

Se o escritor pode dominar o instrumento da expressão, longe de se guiar pela melodia, pela harmonia, ele é que subordinará esses fenômenos à sua vontade; e então a melodia e a harmonia tomarão a forma exigida pela natureza, pela intensidade e pela variedade do pensamento.

Não sei se o estilo do Conselheiro Rui Barbosa estará isento de increpação neste particular.

Desconfio, entretanto, que a sensação de monotonia, que experimento, ao ler seguidamente discursos, artigos de polêmica, trabalhos de crítica jurídica, apreciações sobre assuntos sociais, políticos, religiosos, literários, filosóficos, ainda mesmo impressões recebidas no estrangeiro, qualquer trabalho, enfim, oriundo de sua pena adamantina não tem outra explicação.

Tudo nesse escritor subordina-se à correção da frase, à escolha dos vocábulos, à harmonia sempre solene dos períodos. Cuida-se num hieratismo estilístico, que acaba por exaurir a atenção do leitor o mais valente. A impressão geral é a de ter-se transitado por um claustro cheio de ecos vetustos, ou pelas ruas de uma cidade abandonada, onde se encontram, todavia, monumentos sem deuses, palácios desabitados, sepulcros sem defuntos.

De onde procederá essa pobreza de vida no centro de riquezas tão profusas? Riquezas mortas! Vidas empalhadas!

Receio que a minha psicologia esteja errada; em todo o caso examinemos o livro, no qual o autor de tantos e tão variados escritos, livre de outros cuidados, que não fossem literários, ainda mais excitado pela situação de emigrado, que em todos os tempos foi estímulo para alvorecer estilos, comunicando fogo à expressão, preparou-se para lançar o dardo da frase ferindo de Londres a imaginação dos conterrâneos, ansiosos da sua palavra sempre escandida, sempre tersa, sempre percuciente.

Esse livro compõe-se de assuntos diversos, tanto no fundo, como na espécie. É um livro de ensaios, no qual se encontram apreciações sobre o processo do Capitão Dreyfus, sobre as bases da fé, um estudo sobre a guerra chino-japonesa, os perfis dos ditadores Francia e Rosa, um artigo sobre o regime federal, e a resposta ao Sr. A. Celso explicando o que se tem chamado a sua conversão religiosa.

Esses assuntos são todos antagônicos; portanto, pediriam notações musicais diversas e vibrações opostas.

Leiamos, porém, o trecho sobre a iniquidade praticada pela França contra um dos seu mais humildes filhos. A matéria do artigo é eminentemente dramática. Há nesse caso cenas para invocar a extrema piedade dos povos; lances próprios para o epigrama; brutalidades que pediam o látego de Juvenal. O autor do artigo, não obstante tudo isso, preferiu o gênero demonstrativo; e fez um requisitório contra a Justiça daquele país, belo, é verdade, cheio de conceitos e aparelhado das provas morais e até dos depoimentos da imprensa, que transcreve, e a todos deixa convencidos do horror daquele crime. O advogado, entretanto, o promotor da justiça humana, não deixou fonte de onde emergisse a piedade na sua forma lírica, ou propriamente na dramática, a emoção enfim que o período comportava.

Comparado esse libelo com o J’accuse de Zola, verifica-se quanto o sobreexcede em lavores; mas a vibração do estilo do francês cava no nosso espírito impressão mais violenta. É que Zola jogava com os recursos de uma poderosa imaginação.

Escolhamos, todavia, do artigo a que me refiro o seu trecho mais eloquente:

O povo soberano, os partidos e governos, entre as nações sem disciplina jurídica, estão sempre inclinados a reagir contra as instituições que se não dobram aos impulsos das maiorias e às exigências das ditaduras. A lei foi instituída exatamente para resistir a esses dois perigos, como um ponto de estabilidade superior aos caprichos e às flutuações da onda humana. Os magistrados foram postos especialmente para assegurar à lei um domínio tanto mais estrito, quanto mais extraordinárias forem as situações, mais formidáveis a soma de interesses e a força do poder alistados contra ela.