Almeida Magalhães
O seu grande livro — além do libelo que foi no bom sentido da palavra — que é principalmente a narrativa de um episódio trágico da história republicana.
Outros também escreveram sobre Canudos e entre esses há os nomes ilustres de Aristides Milton, Dantas Barreto e Duque Estrada de Macedo Soares, autores de monografias especializadas e sistemáticas, mas a história da guerra, quem a quiser conhecer vai dessedentar-se em Os Sertões.
O geógrafo, o botânico, o climatologista, o zoólogo, o ecologista em suma, ali aparecem ao lado do etnologista, a serviço do historiador do drama da Troia sertaneja. É um historiador forrado de um sociólogo não há duvidar, mas sempre historiador. Foi Euclides, no Brasil, o escritor mais bem armado para fazer história. Sua cultura variada e sua densa erudição fariam dele o maior historiador nosso se lhe sobejasse tempo para compor uma grande história do Brasil.
Os capítulos que deixou possibilitam adivinhar evidentemente o monumento de escultura da obra totalizada.
Os rumos preferido não eram os comumente perlustrados pela nossa historiografia mais ocupada com a história política que com a cultural e social, mais presa ao litoral, aos grandes núcleos e cidades e esquecida, completamente do “hinterland” onde se processava e evoluía a verdadeira civilização brasileira. Euclides teve a sua vocação de historiador despertada quando, como repórter de um jornal, se viu num cenário bruto e selvagem, virgem e desconhecido, onde se desenrolava o epílogo sangrento daquela diátese social única cujos pródromos, — surgindo na cabanada e na balsiada transformaram-se em manifestações alarmantes generalizadas na cangaceiragem para, afinal, culminarem espetacularmente, em Canudos, nos sintomas que não deixaram margem a erros de diagnóstico.
Esse diagnóstico quem o fez foi Euclides. Está ele exposto, justificado e defendido em Os Sertões. A terapêutica decorre como um consectário lógico e natural. e está também no grande livro.
Contrastes e confrontos, coletânea de artigos e de escritos diversos de épocas diferentes, contam páginas onde o historiógrafo desponta com todas suas qualidades , sempre abordando matéria antes não cuidada por outrem ou apenas ferida superficialmente por algum dos precursores das modernas tendências de escrever história.
Em Peru versus Bolívia, monumento de erudição, o escritor tem oportunidade de revelar outras grandes e indispensáveis virtudes do historiador. Neste livro o que se nota, principalmente é a capacidade do investigador, do homem que foi procurar o material de que se serve nos arquivos, compulsando velha[s] monografias, relatórios e documentos.
Para escrever esse notável trabalho Euclides teve que fazer-se rato dos depósitos de diplomas e papéis do Itamarati.
Além disso houve que atirar-se à leitura e à consulta de geógrafos, astrônomos, meteorologistas e demarcadores de limites do século XVIII, espanhóis e portugueses. Foi preciso fazer-se autoridade na geografia e na história de três países americanos aos quais interessava a questão de limites que agora chegava ao auge no conflito entre o Peru e a Bolívia, conflito que tanto interessava ao Brasil porque envolvia o destino do nosso território do Acre.
Oliveira Lima, pronunciando-se a propósito desse livro escreveu sem exagero: “Sem pretensões a historiador, o senhor Euclides da Cunha achou pois aí meio de fazer história da melhor, assim como, sem ser jurisperito, achou ocasião de revelar familiaridade com o direito das gentes, na sua forma mais progressiva como nos seus aspectos mais afastados. O merecimento maior de seu recente livro como memória diplomática e como alegação jurídica, reside contudo na sua vivacidade e no seu modernismo, na utilização das fontes tradicionais para a evocação palpitante de um passado a que vão se prender as raízes do litígio, e simultaneamente dos episódios recentes na história dos três países limítrofes em suas negociações sobre a extensão territorial ainda em discussão.”
O livro de Euclides, esse Peru versus Bolívia interessou a América inteira e durante muito tempo foi objeto de discussões e polêmicas internacionais que consagraram, no continente, o nome do autor como erudito na geografia, na história e nas questões diplomáticas.
Em À Margem da História, desde o título se depreende qual o assunto tratado pelo escritor. São páginas das melhores na historiografia nacional. O capítulo em que estuda, numa admirável e perfeita visão panorâmica, todo o período em que se estende da Independência à República, é um modelo de síntese histórica que Vicente Licínio Cardoso, aliás exageradamente disse ser muito mais verdadeiro do que a grande obra de Joaquim Nabuco, abrangendo largo período do 2º Reinado. Seriam algumas dezenas de páginas a valer mais que três volumes de uma grande obra consagrada pela crítica e pela admiração nacional.
Fica, em todo caso a referência para salientar a opinião de um espírito esclarecido acerca da capacidade e Euclides da Cunha como historiador.
Manda, porém, a injustiça — que se deixe aqui o testemunho, de alguém que durante quatro anos, conviveu com Euclides, teve com ele comércio literário, emprestando-lhe livros e tendo ocasião de ver quais eram as suas leituras, pelo menos ao tempo em que esteve construindo a ponte de São José do Rio Pardo.
Jose Honório de Silos, perguntado por mim — empenhado então em provar que o Facundo não inspirará a feitura de Os Sertões — se Euclides durante sua estada em São José lia algum livro de Sarmiento, respondeu-me negativamente, — declarando que o escritor lia consultava muito a obra de Joaquim Nabuco.
Foi o eminente historiador do 2º Reinado quem facilitou a tarefa de Euclides. Disto não há dúvida.
É passível, entretanto, que o trabalho deste seja “mais verdadeiro” que o do desbravador do seu caminho, mesmo porque na obra de Nabuco há muito de sentimento o[u] de coração, biografia que é de seu ilustre progenitor.
Em nada diminui o valor do ensaio histórico de Euclides o fato de ter sido composto com os subsídios de Nabuco, uma vez que o panorama debuxado é diferente, perfeito e euclidiano.
Demais o forte em Euclides não era propriamente a historiografia política e sim, a outra, a cultural e social, e principalmente a história em função da geografia e da ecologia humana de que foi sem contestação o precursor entre nós, e que teria mais tarde um avançado continuador em Vicente Licínio Cardoso, principalmente quanto ao fator terra, “esqueleto dos organismos sociais”, “a maior e mais harmoniosa descoberta sociológica do século passado, só atingida com sacrifício, depois de afirmações isoladas ou exageros prejudiciais sobre as raças, os climas e os alimentos humanos”.
Depois de Euclides não é possível divorciar a história da geografia, sob pena de retrocesso à velha história invertebrada, história amorfa e desarticulada, história oficial e acadêmica do século passado, toda absorvida nos fatos heroicos, nos acontecimentos épicos, nas efemérides cívicas e derramando-se em nênias a reis, chefes e magnatas, sem um olhar inteligente para o meio, físico para o teatro que condiciona fatos e homens e que é um dos fatores de sua razão de ser.
Euclides é um avatar na evolução da historiografia brasileira.