Uma pausa de beleza

Henry Bacon

As leguminosas, altaneiras noutros lugares, ali se tornam anãs. Ao mesmo tempo, ampliam o âmbito das frondes, alargando a superfície de contato com o ar, para a absorção dos escassos elementos nele difundidos. Atrofiam as raízes mestres, batendo contra o subsolo impenetrável e substituem-nas pela expansão irradiante das radículas secundárias, ganglionando-as em tubérculos túmidos de seiva. Amiúdam as folhas. Fitam-nas rijamente, duras como cisalhas, à ponta dos galhos para diminuírem o campo da insolação. Revestem de um indumento protetor os frutos, rígidos, as vezes, como estróbilos. Dão-lhes na deiscência perfeita com que as vagens se abrem, estalando como se houvessem molas de aço, admiráveis aparelhos para propagação das sementes, espalhando-as profusamente pelo chão. E têm, todos, sem excetuar uma única, no perfume suavíssimo das flores, anteparos intácteis que nas noites frias sobre elas se alevantam e se arqueiam obstando a que sofram de chofre as quedas de temperatura, tendas invisíveis e encantadoras, resguardando-as… Assim disposta, a árvore aparelha-se para reagir contra o regime bruto.

Euclides da Cunha, Os Sertões, Ed. Nova Cultural, São Paulo, 2002, p. 36. Cotejado com Livraria Francisco Alves, Rio, 28ª ed., 1979, p. 30.

Um escritor, um cientista da Inglaterra, diz que um cientista cria, no seu campo de pesquisa, várias idéias que podem ser verdade ou não, mas que ele não quer verificar na hora, por não constituírem o cerne do seu interesse. Mas ele lança a ideia, no intuito de ou ele, ou um colega, mais tarde voltar a pesquisar o assunto, para confirmar a sua verdade, ou revelar o erro que haja nele. Assim, William Tyndall, um dos líderes da ciência no Séc. XIX, e membro da Sociedade Real, no seu livro Matéria Flutuante no Ar, comenta sobre a função do perfume de uma flor. (Euclides reconhece a sua dívida a Tyndall numa nota de pé de página, expungida da edição “Nova Cultural”). As funções do mel da flor, e da carne doce do fruto, são conhecidas; qual seria a utilidade do perfume? Ele nota que várias plantas têm perfume forte à noite, e lança a sugestão, só de passagem, que talvez a nuvem de partículas que criam o perfume dêem proteção às flores contra as correntes frias noturnas. A família botânica das leguminosas do sertão manifesta, diz Euclides, sem excetuar uma única, esta emanação aromática à noite.

Euclides então toma esta sugestão de Tyndall, e com ela cria uma bela imagem. Ele demonstra aqui que embora ele procurasse o consórcio da ciência e da arte seu objetivo não era científico, mas artístico (as idealizações da arte). Ele supõe que a teoria de Tyndall seja provada. É legítimo para ele fazer isto, pela razão dada. Ora, Abguar Bastos diz que em Os Sertões, temos de galopar pelo Vaza-Barris, e não há onde parar. Mas aqui, considerando as leguminosas, Euclides nos convida a parar, e olhar a estes anteparos intácteis. Da mera sugestão de Tyndall, ele cria as tendas invisíveis e encantadoras, com as quais as plantas se protegem do frio da noite.

Todo mundo lembra a figura usada por Euclides para descrever os melocactos: que parecem como cabeças decepadas e sanguinolentas – uma descrição que temos de admitir que é verdade. Mas devemos também contemplar este outro aspecto das observações do nosso autor, o que muitos críticos não fazem. Gilberto Freyre e Franklin de Oliveira juntos insistem sobre o gosto de Euclides por tudo que era convulso, agressivo, hirtoanguloso, todos estes adjetivos são empregados por eles para descrever a sua obra. Vamos nós evitar o mesmo erro deles. Vamos mirar a beleza e a delicadeza com que Euclides pinta o seu quadro destas flores do sertão, com o seu perfume suavíssimo formando os anteparos intácteis. Se estes existiam de fato no sertão, não sabemos. Mas existiam na imaginação fértil, e delicada, do autor.

BACON, Henry. Uma pausa de beleza. EUCLIDESITE. Artigos. São Paulo, 2012. Disponível em https://euclidesite.com.br/artigos. Acesso em: [data]. Reprodução permitida para fins educacionais e desde que citada a fonte.