Um morto

Rubem Braga

Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 2 de setembro de 1949
Os que há algum tempo fazem o favor de ler o que escrevo, sabem como sou contrario ao trato, na imprensa, de assuntos que se ligam à vida íntima de alguém. Acho que nem a paixão pessoal nem a política justificam isso.

Tendo resolvido comentar a atitude agora assumida pelo coronel Dilermando de Assis, não me afasto dessa linha. Pelo contrario, venho somente, como já fiz de outras vezes, trazer o meu apelo aos colegas de profissão que dela se desviam para agasalhar, em suas colunas, matéria tão lamentável. Estou certo de interpretar o sentimento dos setores mais representativos da imprensa e da literatura brasileira ao manifestar o profundo mal-estar e o vivo desgosto que está causando a publicação em um vespertino carioca das memórias e explicações do coronel Dilermando de Assis com referências a Euclides da Cunha.

Esta minha crônica é publicada, no Rio, no jornal que é, precisamente, de todos os órgãos da imprensa brasileira, o mais lido por oficiais do Exército. Sei, de meu trato com muitos desses oficiais, o quanto é estimado o coronel Dilermando de Assis, pelas suas qualidades de militar e de homem, entre seus companheiros de farda. Venho por isso mesmo apelar para os oficiais superiores, que lhe são mais próximos, no sentido de demover o coronel Dilermando de Assis de sua Intenção de continuar, na imprensa, o trato de assunto tão penoso.

Segundo tudo o que sei, o coronel Dilermando de Assis, ao matar ao matar Euclides da Cunha e seu filho, agiu sempre em legítima defesa. Isso foi reconhecido pela Justiça, e de ambas as vezes ele foi absolvido. Não consigo compreender o motivo pelo qual tantos anos decorridos, e sem nenhuma provocação, ele vem a público para atacar as suas vítimas.

Se a fatalidade o levou a privar o Brasil de um de seus espíritos mais altos e de um de seus patriotas mais profundos, seria exagero lhe pedir, para sua vítima, a simples homenagem cristã do silêncio? Seria exigência lhe pedir que não viesse agora dizer, sobre o caráter e a personalidade de Euclides essas coisas lamentáveis que está dizendo? Coisas desse teor íntimo não se deve dizer publicamente de um vivo – e definitivamente não se dizem de um morto, que nem sequer deixou quem o pudesse defender.

Recusamo-nos, por isso, a aceitar esse retrato de Euclides que se nos oferece agora o homem que seria o último a ter o direito de julgá-lo. Não conhecemos pessoalmente o coronel Dilermando de Assis nem nos supomos no direito de fazer qualquer julgamento sobre sua pessoa. O que lhe pedimos não é muito: que respeite um morto. Esse morto pertence ao Brasil, que nele venera um dos seus maiores e mais infelizes servidores.

Pensamos bastante antes de escrever esta crônica; e nos sentiríamos mal com a nossa consciência se, por comodismo, fôssemos calar esse protesto. Sabemos perfeitamente o quanto é delicado este assunto e a ele não desejamos de forma alguma voltar. Junto com o nosso protesto, deixamos aqui um veemente apelo ao coronel Dilermando de Assis para que cesse essas publicações. Elas são, por todos os motivos, um desserviço ao Brasil, porque afligem os espíritos e despertam, antes de mais nada, um indizível e profundo mal-estar.

BRAGA, Rubem. Um morto. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 2 set. 1949. EUCLIDESITE. Artigos. São Paulo, 2020. Disponível em: https://euclidesite.com.br/artigos. Acesso em: [data]. Publicado originalmente por Joel Bicalho Tostes no extinto site oficial da família Euclides da Cunha.